terça-feira, 4 de maio de 2010

És, por acaso, mulher?

És, por acaso, mulher?

Pensava que, aos cinquenta e poucos anos, já tinha passado de tudo na vida, mas naquele dia passou a ter a certeza que não.
Um som de chegada de mensagem no seu celular lhe tiraria do sério durante todo o dia e mais alguns: O número era desconhecido, clicou no ler a mensagem e vejam só: “Eu nunca vou te abandonar em nenhum sentido, eu te amo e quero ficar com você, você não sabe a falta que me faz, me perdoe, não erro mais”. Adiante desta mensagem, fora do corpo dela, a complementação: “Esta mensagem me foi enviada por fulano de tal, já que vocês estão juntos, diga a ele para me deixar em paz”. Logo em seguida a certificação, o número que enviara a mensagem a quem agora lhe enviava,era um número para lá de conhecido, afinal passara muitos anos a ligar para este.
Num gesto quase que automático reencaminha a mensagem a quem teria enviado à enviante, com o pedido de respeito pela sua pessoa.
Uma raiva intensa cresceu no seu peito, não só pelo só fato da situação, já em si ridícula, mas pelo simples fato de ser mulher. Sim, porque naquele momento teve que concordar com o personagem de Soren Kierkegaard no Banquete (1845)[1], quando Constantino, no momento da sua fala sobre o amor e a mulher diz:”Ninguém chegará a compreender a mulher se não a julgar na categoria da facécia”[2]. Aliás, a palavra facécia não deve ser conhecida de muita gente, e, até mesmo quem um dia possa ler, apenas para saber que Kierkgaard existe, ainda que só depois de ler este texto, desconhecerá o termo, nem o autor nem a palavra é conhecida por todos os mortais, só muitos poucos têm este privilégio, que não seria divido com uma mensagista massagista. Certamente a pessoa que lhe enviou a mensagem não deve saber o que isto significa, e não há que se admirar por isto, afinal, também para um outro personagem da obra, a mulher está na ordem da estética, e não na ordem da moral. Se a ordem é da estética, o que importa é o belo, o aparente, o que se vê, o presente, nada além disto. A ordem da estética máscara o ser, porque ele não se apresenta com o seu original, que está mascarado, exatamente, pela ordem do aparente, do “estar”.
Atualmente, a ordem da estética é o comando, e todos esquecem da ordem da moral, daquela que nos faz o que realmente somos. O ser desprovido da ordem moral afasta-se de todos os princípios, porque não saber distinguir o certo do errado. Se não se distingue o certo do errado, qualquer coisa é válida, não há que se ter qualquer parâmetro, seja para agredir, seja para fazer bem, seja para qualquer coisa, os gestos se repetem e se reproduzem apenas porque são necessários a vida, ao quotidiano. Não se pensa em resultados ou consequências, a satisfação do momento é o que vale; O outro não existe, portanto, não há que se importar com ele. A ordem é de se desfazer, exatamente, deste outro, que no momento incomoda.
Sim, mas isto não afasta o que se estar a falar, o de ser mulher e de ter vergonha desta condição, isto nos termos em que postos pelos menos por três dos personagens do “Banquete” que embora tenha personagens que fazem apologia da mulher, no final também estão a desfazer dela, porque apenas lhe faz um objeto do prazer masculino, e por isso mesmo, há que ser bem tratada pelo que proporciona ao sexo forte.
Pois o certo é que aquela mensageira, mensagista, massagista, sabe-se lá o que, deve ser mesmo uma mulher nos termos em que postos pelos personagens do Banquete, o ser insensato, não capaz de pensar, ridículo como ridículo foi quem lhe mandou a mensagem, exatamente, porque, também segundo os personagens de Kierkgaard, os homens se tornam ridículos quando se apaixonam, principalmente quando se apaixonam por pessoas que não tem discernimento como o caso da “mulher” de quem se está a falar.
Se tornam eles ridículos porque se igualam as mulheres no que respeita a paixão. Esquecem-se de que o que é de dois, não necessariamente, se deve compartilhar com outros. O amor deve ser silencioso, viver de gestos entre os parceiros, crescer com eles. Para que a divulgação deste amor? Será que esta divulgação não seria uma forma de não amar? Será que é preciso que outrem saiba da sua intimidade com o ser amado? Será que fazer com que outrem pareça ridículo diante do outrem é amar? Não se acredita.
Por isso mesmo, aquela que recebeu a mensagem da massagista, mensagista, mensageira, se sentiu tão infame de ser uma mulher, porque quem lhe enviou a mensagem era, também, uma mulher.
Teve de concordar que “A condição de mulher é muito singular. É um ser feito de elementos tão complexos, que um só predicado não o pode exprimir; e quando os predicados se acumulam, vemos que ele se contradizem de tal forma que com tal contradição só a mulher se pode harmonizar e, o que mais é, se pode sentir feliz. [...] Com efeito, para os românticos, num instante a mulher é tudo, e no instante seguinte a mulher é nada; assim, nunca se sabe ao certo qual a verdadeira significação da mulher na vida humana. A infelicidade da mulher está em não poder conhecer a sua situação e o seu valor, exactamente porque é mulher”.[3]
Pronto aí está. A mensagista massagista não sabe o valor mesmo que tem como mulher, se bem soubesse jamais se colocaria na situação em que se pôs, não colocaria o seu amor no ridículo de se pensar apaixonado por um ser que não pensa, um ser que é incapaz de avaliar que um gesto pode por fim a um tudo que nunca existiu, a não ser na mente frívola de uma massagista, que idealiza uma vida com quem não lha pode dar. Enquanto ridículo, ou melhor, ridicularizado pela cegueira da paixão estética, continuará consigo, sabendo, inclusive, nos poucos momentos de lucidez, o mal que isto lhe estar a fazer. As queixas, embora também ridículas, demonstram o quão se é ridículo mesmo, porque não há como se esconder que uma mensageira massagista pode lhe causar vexames em determinados lugares. Pior é quando se tem minimamente consciência disto e, ridiculamente, não se sabe com que intenção, isto é verbalizado exatamente para quem não o deveria, a pessoa que recebeu a mensagem.
Seria muito bom que a mensagista massagista pudesse ler isto. Talvez não entendesse, talvez até pensasse que isto seria uma apologia a si, talvez tentasse enviar uma outra mensagem, certamente nos termos em que mandou a primeira, acha-se difícil, mas não impossível, para quem não pensa, para quem, nos termos dos personagens do Banquete, é uma mulher.
Quem recebeu a mensagem tem vergonha de sê-lo,nos termos aqui postos. E ainda que assim não fosse, ainda que tudo fosse favorável a “mulher”, não estaria nunca satisfeita de estar nesta condição, pois, nunca gostaria de ser identificada com a mesma palavra atribuída à mensageira massagista, e teria de concordar, indiscutivelmente com Vitor: Ser mulher é já uma infelicidade; mas infelicidade maior é não ver essa infelicidade”[...] Que Platão agradeça aos deuses por ter sido contemporâneo de Sócrates, invejo-o; que o faça por ter nascido grego, invejo-o também; mas quando dá graças a Deus de ter nascido homem e não mulher, estou de alma e coração com ele. Se eu tivesse nascido mulher, e pudesse então compreender o que compreendo agora, que terrível seria isso para mim; se eu tivesse nascido mulher e se me visse por conseguinte incapaz de compreender a minha sorte, isso então é que seria muito mais terrivel para mim!”[4]
Terrível é, tudo isto, para as mulheres que são, realmente, MULHERES.[5]
[1] Kierkgaard,S. O Banquete- In Vino Veritas, Lisboa, Guimarães & Cia Editores, 1954,(trad. Alvaro Ribeiro).
[2] Idem, p. 115
[3] Ibdem, p.132-133
[4] Ibdem. p.145.
[5] No Banquete os amigos se encontram para, em nome do vinho, falarem verdades (In vino veritas) e olhem, as mulheres, o resultado. Esclareça-se, ainda, que Soren Kierkgaarden viveu de 1813-1855.

Nenhum comentário:

Postar um comentário