Domingo 16h00min do mês de
dezembro, o dia está feio, chove, faz frio, mas nada disso a intimida. Ela muda
a roupa, procura uma domingueira, como se diria no Brasil, chama um taxi e
pede: Cais do Sodré.
O fogueteiro, é assim que os
taxistas são chamados em Lisboa, lhe faz mil e uma perguntas, mas ela não perde
o bom humor, afinal estava indo divertir-se e não queria se aborrecer com nada.
O motorista pergunta-lhe de onde ela é como é costume de todos os portugueses,
taxeiros ou não, e ela responde que é do Brasil. “De certeza de São Paulo”. Não
senhor, do Nordeste ela responde. Ele quase para de dirigir para olhar para
trás. “A menina não tem qualquer jeito
de Nordestina, aliás, se não fosse pelo português do Brasil, passaria,
facilmente, por uma européia”. Ela sorri e pergunta: “Faz alguma diferença de
onde eu sou ou tenha vindo”? E o taxeiro, olhando-a pelo retrovisor diz. “Não, não faz, a menina não ia deixar de ser
bonita sendo de qualquer lugar”. Ela sorri, afinal recebeu um elogio misturando
com um galanteio. Os portugueses homens
são assim, não perdem uma oportunidade.
Pensa consigo, ainda bem que já
está a chegar; já estão em Santos, viera por Algés, era mais perto. Olha o
relógio, 04h30min. “Já começou, quem
será que está a tocar hoje”.
O taxi para na frente da estação
de comboio do Cais Sodré, ela paga a conta, 12 euros, sai do taxi e dirige-se a
faixa de pedestres, para atravessar a rua.
De onde está já pode ver a movimentação das pessoas no andar de cima do
Mercado da Ribeira. Pessoas passam para
lá e para cá. Alguns estão sentados. Há
muitos carros estacionados e muita gente se dirigindo para a porta.
Os homens estão, na sua grande
maioria, vestidos a rigor, isto é: se são mais velhos, se tiverem mais de 60, sempre
estão de terno e gravata: acreditem se quiserem, eles usam, no domingo à tarde,
terno e gravata. As mulheres tiram os seus pois e brilhos dos armários, estão
todas emplumadas, isto as mais velhas. As senhoras têm os cabelos armados, roupas
antigas, que não deixam de ter certo charme, apesar de gastas pelo tempo e muito
fora de época, mas elas têm de vestir para ir ali, afinal tem de impressionar
os parceiros, com exceção de uma delas, uma bem magrinha que estava lá todos os
sábados e domingos e ia com o seu marido, que era cego. A senhora magrinha
estava sempre com algum vestido chamativo e às vezes trocava-o no meio do
baile, era interessante ver aquilo.
Desde o primeiro dia que ali
esteve ficou conhecendo estas pessoas, que sempre lhe deram uma atenção
especial. Ela não entendia bem o motivo,
talvez por ela ser muito diferente das pessoas que freqüentavam o local. Possivelmente tenha chamado atenção pela
maneira de vestir completamente diferente das frequentadoras: algumas, as mais
velhas, mostrando as suas relíquias; as meeiras usando roupas coladas,
mostrando todo o potencial, muitas delas estavam ali para o famoso “engate”,
outras não, estavam ali apenas e tão somente para divertir-se como ela,
entretanto, ninguém deixava de jogar um certo charme sedutor, afinal tinham que
despertar a atenção de alguém que as chamassem para dançar.
Os homens pareciam que tinham um
código de comportamento: quem não estava
na pista, estava ao redor dela com as mãos nos bolsos, observando, escolhendo a
presa. Os mais velhos com calças sociais; os mais novos e os que pensavam serem
novos, de calça jeans, camisas de mangas longas e o pulôver, este último, se
não vestido, jogado nas costas com as mangas enroladas na frente. Alguns, os que se julgavam mais sensuais e
mais irresistíveis, encostavam-se nas paredes, colocando a mão direta em um dos
bolsos e o pé levantado apoiado na parede, procurando uma posição charmosa, e ficavam
ali á espera de escolherem ou serem escolhidos, um olhar bem dado e olhos
encontrados era a senha.
Ela sorria sempre de tudo
isto. Gostava de ver o pedreiro bigodudo
que almoçava no restaurante em Carnaxide todo sujo de tinta, transformado em
galã de telenovela: calça social, camisa pólo ou camisa de listras de mangas
compridas, pulôver jogado à maneira, cabelos arrumados, cortados à direita e
sem sair do lugar, parecia que ele passava algum produto para que o bicho não
movesse. Este senhor sempre estava sozinho.
Chegava, ficava rodando por ali e, de repente: “uma presa”! Dirigia-se a uma
das mulheres que estavam, por sua vez, fazendo todo o charme possível para
serem chamadas para dançar, e lá se vão os dois a rodopiar pelo salão. Gostava de ver estas investidas, era muito
interessante, mas a si parecia que ali algum comando era da própria mulher, que demonstrava ser ela a escolher os seus pares, porque se o charme estivesse
sendo jogado para um e outro é que a tirasse para dançar, ela simplesmente
dizia não. Os homens, quando ouviam um não, apesar de ficarem chateados, nada
diziam e, quando muito, saiam com cara zangada, nada além disso. Ela mesma
cansou de dizer não a muitos, mui principalmente a um rapaz novo, que, apesar de
bonito, tinha cara de doido, completamente doido, os olhos dele muito azuis,
pareciam estar sempre fixados em algo, era como se ele utilizasse drogas, nunca
soube se era real ou não, mas sempre se recusou a dançar com ele, embora ele
nunca deixasse de insistir.
Um outro, também jovem, e
completamente maluco, este era de carteirinha, sempre procurava tirá-la para
dançar, ela fugia quase todas às vezes, era só vê-lo encaminhando-se para sua
direção e ela dava um jeito de sair do local, ir ao banheiro, ir ao bar. O cara
além de maluco não cheirava lá muito bem. Esse tinha uma amiga que tinha um
problema na perna, usava aqueles sapatos com uma sola enorme para ficar do
mesmo tamanho da outra perna, mas isto não lhe intimidava, e ela passava a
tarde dançando e feliz.
Havia um rapaz que tinha um
retardo mental, e o seu pai e a sua ama levavam-no para o baile aos domingos.
Um dia, ela ficou com pena do homem-menino e o tirou para dançar. Foi um
alvoroço, todos que estavam próximos ficaram ali olhando-a dançar com o rapaz, fazendo ele rodopiar. Ela sorria muito, e dançou umas três músicas seguidas, já
com a platéia atenta do pai e da ama que, admirados, ficaram ali olhando e
tomando, acha ela, conta dele. No final a ama lhe disse que ela tinha
conseguido algo que ninguém nunca fez: que era fazê-lo rodar, ele não girava
porque tinha medo, e ela o tinha feito girar muitas e muitas vezes, embora
sentisse a pressão da mão dele na sua.
Quando dos intervalos ela ia para
o balcão do bar, pedia um uísque ou um vinho do porto, pagava a conta,
sentava-se, se tivesse lugar, em uma das mesas e ficava naquele salão esperando o
som retornar e olhando as tentativas de "engates" o jogo de sedução, os casais se formando. Nesses momentos, algum segurança se posicionava em lugar estratégico,
o que impediu o cigano moreno dos cabelos brancos, que ia de paletó e gravata,
achando-se belo e sedutor, de aproximar-se.
Ela dava graças a Deus por esta proteção, mui principalmente em relação
a esse senhor, que nem mesmo quando estava com a mulher e filhos; ele levava a
todos para o baile nos domingos, escondia a sua “excitação”. Passava por ela e
dizia alguma coisa não muito cortês, mas que traduzia o seu desejo, a sua
vontade. Um dia ele disse não entender o
que uma mulher tão bonita fazia sozinha num baile da Ribeira. Ela sempre fazia
de conta que não ouvia nada e até sorria, mas não queria qualquer proximidade
com aquele cidadão.
Ouvia muitas estórias, seja no
banheiro, seja perto do palco, havia sempre alguém querendo pegar alguém.
Achava interessante tudo, as roupas, as conversas, “os engates”, os irresistíveis,
garanhões de carteirinha, os respeitadores, os inocentes, as charmosas. Via naquelas vidas a própria
vida, era como se olhasse um espelho. Procurando engates ou não, ali estavam
pessoas solitárias, que precisavam estar com outros em algum momento, para
espantar a tristeza, a solidão, a mesmice do dia a dia.
Viu brigas de mulheres, brigas de
marido e mulher, choros de tristeza. Termino de romances, começo deles, voltas
comemoradas com muito calor, enfim, viu a vida e, realmente, não se perdoaria
se não tivesse frequentado tais bailes.
Dançava com todos, evidentemente com
aqueles que ela pensava que eram mais escrupulosos. Não estava ali para nada,
não queria, como eles diziam, “engate”, queria apenas dançar, e foi o que
muitas vezes fez nos Bailes da Ribeira. Quartas, sextas, sábados e domingos, estes
eram os dias dos bailes, dias que ela esperava ansiosa, pois adorava dançar e
sabia que, apesar de muitos conselhos dos “nobres” de que aquele não era o
lugar para uma pessoa de família, ou uma doutora, enfim, para ela frequentar,
naquelas quatro horas era feliz, era ela mesma e, talvez, tenha feito alguns
felizes.
Espera que tais bailes não tenham
acabado, pois eles são uma verdadeira felicidade para aqueles que,
discriminados pela sociedade, seja porque pobres, seja porque velhos, seja
porque trabalhadores braçais, imigrantes, enfim, por algum motivo não são
aceitos em outros lugares, mas que precisam ser felizes, ter um momento de alegria, de liberdade, de
esperança até.