Doida para o Sr. da Torre aparecer, pois queria mesmo
questionar ele, saber detalhes da fundação da cidade do Salvador, mas parece
que o diabo do homem, como diria minha mãe, tomou azougue, acho que era assim
que ela falava: Sumiu, nada de atender às minhas constantes chamadas.
Miserável! Somente porque quero falar com ele me sacaneia
deste jeito. Deixei par lá e lá se foram cinco longos meses. Eu já estava
disposta a ir a uma sessão espirita para ver se ele aparecia, saber se ele se
tinha ido de vez.
Continuei a estudar a história da Casa da Torre, porque é
realmente fascinante, então um homenzinho sem qualquer expressividade, que veio para o Brasil com
Thomé de Sousa, sem qualquer profissão definida, galgado pelo governador à almoxarife,
vira uma das maiores fortunas da Bahia no século XVI-XVII, realmente era fantástico acompanhar esta história, o que significava, também, e
não poderia ser diferente, estudar a própria Bahia colonial.
Absorta nos meus pensamentos e nos meus livros ouço um
barulho no lado de fora da casa, o dia já estava indo embora, alguns raios de
sol ainda tentavam se esconder das nuvens e do cair da tarde.
Levantei da sala
e fui até o fundo da casa, não vi nada, apenas passarinhos, as malditas pombas
que já vinham para o seu hotel noturno no forro da minha casa, o que me dava um
grande trabalho para espantá-las, e alguns micos, que driblando a morte por
eletrocussão, equilibravam-se pelos fios.
Como não tinha nada, voltei para sala, mas vi um vulto
entrando pela porta lateral da cozinha.
-Quem está aí? Estava
assustada, pois naquele momento não estava a pensar em Garcia D´Ávila, estava
pensando em fechar a casa por causa das muriçocas, isto sim.
Não ouvi nenhuma resposta: mesmo receosa, entretanto, entrei
na casa pelo outro lado e ui olhando os
quartos, banheiro, cozinha e nada, mas quando chego na porta da sala, lá estava
ele todo refestelado na minha poltrona.
-Onde compraste esta cadeira, ela é muito confortável!
Diga-me onde a encontraste que vou comprar uma para Tatuapara.
-Sr Garcia eu comprei todo este conjunto em uma cidade que
chama Santo Antônio de Jesus.
-Santo Antônio de Jesus! Que vila é esta que não conheço?
-Não sei lhe explicar Sr. Garcia, mas fica para os lados lá
de Jaguaripe?
-Jaguaripe?
-Sim, Jaguaripe.
-Lá pelas terras de Fernão Cabral?
-Sim, perto de lá, depois de Nazaré.
-Nazaré? Que Nazaré?
-Oh Seu Garcia esqueça, não sei mesmo como dizer ao senhor o
exato lugar, mas com certeza é mais próximo de Jaguaripe de que daqui.
-A propósito Sr. Garcia, eu queria muito falar da fundação da
cidade de Salvador, mas como o Sr. falou do Sr. Fernão Cabral de Ataíde, me
conte a história dele com a Santidade.
-Santidade? O que é isto?
-Ora Sr. Garcia o senhor está caindo de saber.
-O que eu queria saber é como sabes de tantas coisas, és
muito nova e mulher para saberes tanto.
-Já vos disse Sr. Garcia, livros e o meu pedaço de madeira
preta, lembra dele?
-O que eu acho mesmo é que tu és uma bruxa, isto sim, ou
então és uma alma penada que aparece-me para perturbar-me.
Kkkkkkkkk, desatei a gargalhar, então a alma penada vinha me
dizer que eu é que era uma alma penada! Hilário.
- Olhe que eu também posso dizer isto do senhor: que sois uma
alma penada, mas esqueça esta estória e me conte o que aconteceu de verdade com
o Sr. Ataíde.
- Sabes que o Santo Oficio chegou aqui em 1591, e que muitos
foram, no período da graça, fazer confissões e “entregar” pessoas que eles
achavam que não eram cristãos. Até a filha da mãe da minha própria filha fez
isto, e lá chegou para denunciar a madastra
como cristã nova, que continuava com práticas judaizantes.
-E o Sr. Fernão era cristão novo?
_Se vais ficar a interromper-me não digo mais nada.
-Não Sr. Garcia, vou ficar aqui caladinha, deixe-me apenas
pegar a minha madeira preta para
tomar nota do que o senhor vai falar.
Casa da Câmara e Cadeia - Jaguaripe-Bahia |
- Sim, Sr. Garcia esta parte, a gloriosa dele, eu sei, quero
saber mesmo é das práticas de heresia na fazenda dele.
-Heresia? Estás doida, não sei de nada disto. Aliás é melhor
não tocarmos neste assunto, a Inquisição ainda continua aqui, e aquele Heitor
Furtado está doido para colocar as mãos em mim, depois que a Isabel foi lá
dizer que em nossa casa praticávamos coisas proibidas, hábitos judaizantes.
- Sr. Garcia, eu queria saber de uma fonte fidedigna feito o
senhor, mas já que o senhor não quer falar, vou contar o que apurei:
Rio Jaguaripe-Ba |
- Sabes mesmo das coisas, que mais sabes deste caso?
- Que o Governador Teles Barreto mandou acabar de uma vez com
a seita, houve resistência por parte do Fernão Cabral, e então foi designado o Cabral Bernaldino de Grã, que em 1585, entrou
na fazenda de Cabral, queimou a Igreja e levou a imagem e os livros para o
governador.
-O Sr sabe quem fez a denúncia ao Santo Officio?
Já disse-te que nada sei. Soube que ele foi de livre e
espontânea vontade ao Santo Officio e que lá fez a confissão.
-Qual de livre e espontânea vontade Sr. Garcia! Muita gente
já havia falado dele e da Santidade ao Inquisidor Heitor Mendonça Furtado, e se
ele não fosse de livre e espontânea vontade no tempo da Graça, ia ser muito pior
para ele, porque iria ser intimado pela Inquisição e a pena poderia ser bem
diferente. O Sr. bem sabe que ele não era muito bem quisto, mui principalmente
pelos outros donos de fazendas e pelos jesuítas.
- Que disse ele perante o Mendonça Furtado?
Processo de Fernão Cabral de Taide |
“ que haverá seis anos pouco mais ou menos que
se levantou um gentio no sertão com uma nova seita que chamavam Santidade,
havendo um que se chamava papa e uma gentia que se chamava Mãe de Deus e o
sacristão, e tinham um ídolo a que chamavam Maria, que era uma figura de pedra
que nem demonstrava ser uma figura de homem nem de mulher, nem de outro animal,
ao qual adoravam e rezavam certas coisas per contas e penduravam na casa
que chamavam igreja umas tábuas com uns riscos que diziam que eram contas bentas e assim, ao seu modo,
contrafaziam o culto divino dos cristãos.
E estando
este gentio assim alevantado, ele confessante mandou gente de armas para o
fazerem vir do sertão com a qual gente se veio grande parte do gentio, ficando
lá o que chamavam o papa, e ele, confessante, consentiu que o dito gentio se
apresentasse em uma sua aldeia dentro de dita fazenda, onde é morador, e nela
se apresentou o gentio e fez casa a que
chamavam de igreja, onde puseram o ídolo e faziam suas cerimônias como
atrás ficou dito.” [6]
-Ele só disse isto?
- Não Sr.
Garcia ele falou muitas outras coisas, já disse que o processo tem duzentas e poucas páginas.
- Ele não
falou nada sobre a escrava que mandou queimar?
-Oh Sr.
Garcia o senhor não disse que nada sabia sobre o Fernão Cabral, e que ele era
um homem de bem? Um homem de bem não faria uma miséria desta!
- O que
não gosto é de falar dos patrícios, mas tu sabes de tudo e não adianta esconder
nada de ti, vou contar-te:
“ O Ataíde
era muito bruto e duro com os seus escravos, uma vez “estando uma sua negra
inchada de comer terra e quase para morrer, por fazer medo e terror aos outros
que não comessem terra, disse a dois outros negros seus que a botassem na
fornalha, e, depois dele recolhido, os ditos negros a lançaram na fornalha onde
se queimou”. [7]
-Ah Sr Garcia, não foi esta a história que soube,
ele confessou isto, embora tenha dito que fez uma brincadeira e os escravos
levaram a sério, mas na realidade o que aconteceu foi que ele ficou sabendo
que a sua escrava de nome Isabel foi contar a sua esposa, Dona Margarida Costa dos vários casos amorosos, e ele se irritou muito e ordenou ao feitor
Domingos Camacho que queimasse Isabel viva. Além disto, também o Santo Oficio
ficou sabendo que ele admoestou uma sua comadre dentro da Igreja. Estas são
apenas algumas poucas coisas que vieram a público.
-Sabes
qual foi a condenação dele?
pg processo Fernão Taide |
-Vou ter
de tomar muito cuidado contigo. Sabes demais e eu não gosto disto. Sabes de
coisas que nem mesmo eu sei.
-O Senhor
está com medo que eu descubra o que acontecia lá em Tatuapara?
- Rapaz!
Não sei para que diabos fiz este comentário! O homem levantou da poltrona e foi
para cima de mim, ficou possesso e só não me bateu mesmo, ou melhor, só não
senti o seu tapão porque ele era mesmo um espirito, do contrário estava eu aqui
com um olho roxo, com certeza. Agrediu-me e se foi.
- Ah ia
esquecendo, O Fernão de Ataide não cumpriu qualquer degredo, aliás como sói
acontecer, até hoje, com os que tem dinheiro e prestigio, o que ficou muito bem
demonstrado ontem, quarta feira dia 04 de abril, no julgamento do HC pelo STF em que restou claro que, somente aqueles
que tem dinheiro(escuso ou não) para pagar a advogados caríssimos, inclusive e vergonhosamente,
ex ministros do STF, usam de todos os
recursos para se livrarem do cumprimento da sua pena.
É, acho que só mais 500 anos para uma mudança radical, onde se
possa realmente falar em igualdade, em democracia, em garantias de direitos individuais,
em justiça célere e eficaz e em respeito às instituições.
[1] O
língua – o intérprete
[2]
Gabriel Soares de Souza, Tratado Descritivo do Brasil, 1587, pg 136.
[3]
Tomacaúna, alcunha de Domingos Fernandes
Nobre, era um mameluco famoso sertanista, que viveu dezoito anos com um índio, depois virou um sertanista que
fazia reconhecimento de trilhas indígenas. Teve muito sucesso como traficante
de escravos e isto se deve ao relacionamento que tinha com os índios. “Os
índios denominavam-no “sobrinho” e o consideravam feiticeiro. Se os comboios de
índios ameaçavam fugir para o litoral
durante a longa jornada, ele os intimidava por meio de sua magia. Assim sendo
gozava o que havia de melhor em ambas as sociedades, era respeitado como
traficante de escravos e sertanista pelos colonos; era honrado como um grande
pajé pelos índios. Confessou à Inquisição que “muitas vezes disse que não
queria vir se do sertão, pois nele tinha muitas mulheres e comia carne dos dias
defesos e fazia o mais que queria sem ninguém lhe tomar conta” MENDONÇA:,
Primeira Visitação, apud John Hemming,
Ouro Vermelho, São Paulo, EDUSP, 2007.pp237-238.
[4]
SANTIDADE era uma seita dos indígenas,
mas dela participavam mamelucos e negros, os índios acreditavam, porque isto
lhes fora dito pelos sacerdotes da seita, que não precisariam trabalhar, porque
os mantimentos por si próprio haviam de nascer e que quem não cresse naquela
santidade se havia de converter em paus e pedras e que a gente branca se havia
de converter em caça para eles comerem) idem, pg. 238.
[5]
Para maiores detalhes ver. VAINFAS, Ronaldo- A heresia dos Índios, catolicismo
e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo, Cia das Letras,1995; CLAZANS José.
Fernão Cabral de Ataíde e a Santidade de Jaguaripe, Salvador, EDUNEB, 2011.:
CARDOSO, Jamile Oliveira Santos Bastos. Ecos da Liberdade. A Santidade de
Jaguaripe entre os alcances e limites da colonização cristã. Salvador, 2015
(dissertação de mestrado apresentada à UFBA FFHC) https://repositório.ufba.
Acessado em 05.04.2018
[6]
VAINFAS, Ronaldo(org) Santo Oficio da Inquisição de Lisboa- Confissões da
Bahia, Coleção Retratos do Brasil, , São Paulo, Cia das Letras.1997. pp 63-66.
Todo o processo inquisitorial pode ser visto no Arquivo da Torre do Tombo,
através do arquivo digital:
digitarq.dgarq.gov.pt
PT.TT-TSO/IL/28/14636.
[7] Idem,
pg 66 – Confissão do próprio Fernão Cabral de Taíde.
[8]
Vide segunda página do processo no arquivo digital da Torre do Tombo.
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