quinta-feira, 5 de abril de 2018

Falando com o Sr. Garcia D´Avila sobre a Santidade de Jaguaripe


Doida para o Sr. da Torre aparecer, pois queria mesmo questionar ele, saber detalhes da fundação da cidade do Salvador, mas parece que o diabo do homem, como diria minha mãe, tomou azougue, acho que era assim que ela falava: Sumiu, nada de atender às minhas constantes chamadas.
Miserável! Somente porque quero falar com ele me sacaneia deste jeito. Deixei par lá e lá se foram cinco longos meses. Eu já estava disposta a ir a uma sessão espirita para ver se ele aparecia, saber se ele se tinha ido de vez.

Continuei a estudar a história da Casa da Torre, porque é realmente fascinante, então um homenzinho sem qualquer  expressividade, que veio para o Brasil com Thomé de Sousa, sem qualquer profissão definida, galgado pelo governador à almoxarife, vira uma das maiores fortunas da Bahia no século XVI-XVII, realmente  era fantástico acompanhar  esta história, o que significava, também, e não poderia ser diferente, estudar a própria Bahia colonial.

Absorta nos meus pensamentos e nos meus livros ouço um barulho no lado de fora da casa, o dia já estava indo embora, alguns raios de sol ainda tentavam se esconder das nuvens e do cair da tarde
Levantei da sala e fui até o fundo da casa, não vi nada, apenas passarinhos, as malditas pombas que já vinham para o seu hotel noturno no forro da minha casa, o que me dava um grande trabalho para espantá-las, e alguns micos, que driblando a morte por eletrocussão, equilibravam-se pelos fios. 

Como não tinha nada, voltei para sala, mas vi um vulto entrando pela porta lateral da cozinha.

-Quem está aí?  Estava assustada, pois naquele momento não estava a pensar em Garcia D´Ávila, estava pensando em fechar a casa por causa das muriçocas, isto sim.

Não ouvi nenhuma resposta: mesmo receosa, entretanto, entrei na casa pelo outro lado e  ui olhando os quartos, banheiro, cozinha e nada, mas quando chego na porta da sala, lá estava ele todo refestelado na minha poltrona.

-Onde compraste esta cadeira, ela é muito confortável! Diga-me onde a encontraste que vou comprar uma para Tatuapara.

-Sr Garcia eu comprei todo este conjunto em uma cidade que chama Santo Antônio de Jesus.

-Santo Antônio de Jesus! Que vila é esta que não conheço?

-Não sei lhe explicar Sr. Garcia, mas fica para os lados lá de Jaguaripe?

-Jaguaripe?

-Sim, Jaguaripe.

-Lá pelas terras de Fernão Cabral?

-Sim, perto de lá, depois de Nazaré.

-Nazaré? Que Nazaré?

-Oh Seu Garcia esqueça, não sei mesmo como dizer ao senhor o exato lugar, mas com certeza é mais próximo de Jaguaripe de que daqui.

-A propósito Sr. Garcia, eu queria muito falar da fundação da cidade de Salvador, mas como o Sr. falou do Sr. Fernão Cabral de Ataíde, me conte a história dele com a Santidade.

-Santidade? O que é isto?

-Ora Sr. Garcia o senhor está caindo de saber.

-O que eu queria saber é como sabes de tantas coisas, és muito nova e mulher para saberes tanto.

-Já vos disse Sr. Garcia, livros e o meu pedaço de madeira preta, lembra dele?

-O que eu acho mesmo é que tu és uma bruxa, isto sim, ou então és uma alma penada que aparece-me para perturbar-me.

Kkkkkkkkk, desatei a gargalhar, então a alma penada vinha me dizer que eu é que era uma alma penada!  Hilário.

- Olhe que eu também posso dizer isto do senhor: que sois uma alma penada, mas esqueça esta estória e me conte o que aconteceu de verdade com o Sr. Ataíde.

- Sabes que o Santo Oficio chegou aqui em 1591, e que muitos foram, no período da graça, fazer confissões e “entregar” pessoas que eles achavam que não eram cristãos. Até a filha da mãe da minha própria filha fez isto, e lá chegou para denunciar a madastra  como cristã nova, que continuava com práticas judaizantes.

-E o Sr. Fernão era cristão novo?

_Se vais ficar a interromper-me não digo mais nada.

-Não Sr. Garcia, vou ficar aqui caladinha, deixe-me apenas pegar a minha madeira preta para tomar nota do que o senhor vai falar.

Casa da Câmara e Cadeia - Jaguaripe-Bahia
- Fernão Cabral de Ataíde chegou ao aqui m 1552, veio com a sua esposa Dona Margarida Costa, recebeu a sesmaria de Jaguaripe onde se instalou. Era um homem de bem e     ajudou muito os governadores, quando os índios começaram amotinamentos. Foi confiada a ele ( a parte financeira)  a missão de acabar com a Santidade. Ele financiou tudo e confiou a Domingos Fernandes Nobre, mameluco língua[1] e pombeiro, a missão  de descer estes índios  e acabar com a seita denominada Santidade. Sabes que o “O Rio Jaguaribe é tamanho como o Douro, mas, mais aprazível na frescura, navega-se até a cachoeira que está a cinco léguas da barra é água doce, a qual o salgado com força da maré faz recuar até a cachoeira. Junto da cachoeira virando sobre a mão direita, para baixo está um engenho de água de Fernão Cabral de Ataíde, obra mui formosa e ornada de nobres edifícios de casas de vivenda e de outras oficinas e de uma igreja de São Bento, mui bem acabada, o qual engenho está feito nas terras del-rei que estão livres de todo o foro que costumam por os capitães”[2]

- Sim, Sr. Garcia esta parte, a gloriosa dele, eu sei, quero saber mesmo é das práticas de heresia na fazenda dele.

-Heresia? Estás doida, não sei de nada disto. Aliás é melhor não tocarmos neste assunto, a Inquisição ainda continua aqui, e aquele Heitor Furtado está doido para colocar as mãos em mim, depois que a Isabel foi lá dizer que em nossa casa praticávamos coisas proibidas, hábitos judaizantes.

- Sr. Garcia, eu queria saber de uma fonte fidedigna feito o senhor, mas já que o senhor não quer falar, vou contar o que apurei:
Rio Jaguaripe-Ba
O Sr. Fernão Cabral de Ataíde era mesmo um próspero dono de Engenho pelas bandas de Jaguaripe, tinha muitos escravos e sempre era requisitado para missões, tanto para financiá-las, como para fornecer soldados(escravos). O seu engenho era próspero e precisava de muita mão de obra. Quando foi instado a acabar com a santidade fez com que o Tomacaúna[3] os convencesse a vim se instalarem na sua fazenda. É evidente que ele não fez isto para ser bonzinho, fez isto porque para si era conveniente, era uma mão de obra fácil.  Alguns vieram, embora o chefe que dizem se chamar Antônio que era o Papa, não veio para a fazenda do Ataíde, continuando no sertão.  O Fernão Cabral, inteligentemente, para segurar os indígenas, mamelucos e até negros dentro da sua fazenda utilizando-os em proveito próprio sem qualquer despesa, permitiu que eles continuassem com a Santidade[4], com a idolatria e suas crenças, chegando, inclusive a participar delas.[5]

- Sabes mesmo das coisas, que mais sabes deste caso?

- Que o Governador Teles Barreto mandou acabar de uma vez com a seita, houve resistência por parte do Fernão Cabral, e então foi designado o  Cabral Bernaldino de Grã, que em 1585, entrou na fazenda de Cabral, queimou a Igreja e levou a imagem e os livros para o governador.


-O Sr sabe quem fez a denúncia ao Santo Officio?

Já disse-te que nada sei. Soube que ele foi de livre e espontânea vontade ao Santo Officio e que lá fez a confissão.

-Qual de livre e espontânea vontade Sr. Garcia! Muita gente já havia falado dele e da Santidade ao Inquisidor Heitor Mendonça Furtado, e se ele não fosse de livre e espontânea vontade no tempo da Graça, ia ser muito pior para ele, porque iria ser intimado pela Inquisição e a pena poderia ser bem diferente. O Sr. bem sabe que ele não era muito bem quisto, mui principalmente pelos outros donos de fazendas e pelos jesuítas.

- Que disse ele perante o Mendonça Furtado?

Processo de Fernão Cabral de Taide
Falou muito pouco, mas o processo inteiro rendeu quase 250 fólios(pgs) Disse:
 “ que haverá seis anos pouco mais ou menos que se levantou um gentio no sertão com uma nova seita que chamavam Santidade, havendo um que se chamava papa e uma gentia que se chamava Mãe de Deus e o sacristão, e tinham um ídolo a que chamavam Maria, que era uma figura de pedra que nem demonstrava ser uma figura de homem nem de mulher, nem de outro animal, ao qual  adoravam e rezavam  certas coisas per contas e penduravam na casa que chamavam igreja umas tábuas com uns riscos que diziam  que eram contas bentas e assim, ao seu modo, contrafaziam o culto divino dos cristãos.
E estando este gentio assim alevantado, ele confessante mandou gente de armas para o fazerem vir do sertão com a qual gente se veio grande parte do gentio, ficando lá o que chamavam o papa, e ele, confessante, consentiu que o dito gentio se apresentasse em uma sua aldeia dentro de dita fazenda, onde é morador, e nela se apresentou o gentio e fez casa a que  chamavam de igreja, onde puseram o ídolo e faziam suas cerimônias como atrás ficou dito.”  [6]

-Ele só disse isto?

- Não Sr. Garcia ele falou muitas outras coisas, já disse que o processo tem duzentas e poucas páginas.

- Ele não falou nada sobre a escrava que  mandou queimar?

-Oh Sr. Garcia o senhor não disse que nada sabia sobre o Fernão Cabral, e que ele era um homem de bem? Um homem de bem não faria uma miséria desta!

- O que não gosto é de falar dos patrícios, mas tu sabes de tudo e não adianta esconder nada de ti, vou contar-te:

“ O Ataíde era muito bruto e duro com os seus escravos, uma vez “estando uma sua negra inchada de comer terra e quase para morrer, por fazer medo e terror aos outros que não comessem terra, disse a dois outros negros seus que a botassem na fornalha, e, depois dele recolhido, os ditos negros a lançaram na fornalha onde se queimou”. [7]

-Ah  Sr Garcia, não foi esta a história que soube, ele confessou isto, embora tenha dito que fez uma brincadeira e os escravos levaram a sério, mas na realidade o que aconteceu foi que  ele ficou sabendo que a sua escrava de nome Isabel foi contar a sua esposa, Dona Margarida Costa dos vários casos amorosos, e ele se irritou muito e ordenou ao feitor Domingos Camacho que queimasse Isabel viva. Além disto, também o Santo Oficio ficou sabendo que ele admoestou uma sua comadre dentro da Igreja. Estas  são apenas algumas poucas coisas que vieram a público.

-Sabes qual foi a condenação dele?

pg processo Fernão Taide
Sei sim, mas o senhor sabe que ele foi preso em setembro, logo após a confissão, porque foi pego tentando fugir com a família. Ele foi preso e entregue ao alcaide  da prisão do Santo Oficio em 19 de setembro de 1591. Foi condenado sendo o auto de fé privado em 23.08.1592, abjuração leve, penitências espirituais, mil cruzados de despesas do Santo Oficio e degredo para fora do Brasil.[8]

-Vou ter de tomar muito cuidado contigo. Sabes demais e eu não gosto disto. Sabes de coisas que nem mesmo eu sei.

-O Senhor está com medo que eu descubra o que acontecia lá em Tatuapara?

- Rapaz! Não  sei para que diabos fiz este comentário! O homem levantou da poltrona e foi para cima de mim, ficou possesso e só não me bateu mesmo, ou melhor, só não senti o seu tapão porque ele era mesmo um espirito, do contrário estava eu aqui com um olho roxo, com certeza. Agrediu-me e se foi.

- Ah ia esquecendo, O Fernão de Ataide não cumpriu qualquer degredo, aliás como sói acontecer, até hoje, com os que tem dinheiro e prestigio, o que ficou muito bem demonstrado ontem, quarta feira dia 04 de abril, no julgamento do HC  pelo STF em que restou claro que, somente aqueles que tem dinheiro(escuso ou não) para pagar a advogados caríssimos, inclusive e vergonhosamente, ex ministros do  STF, usam de todos os recursos para se livrarem do cumprimento da sua pena.

 É, acho que só mais  500 anos para uma mudança radical, onde se possa realmente falar em igualdade, em democracia, em garantias de direitos individuais, em justiça célere e eficaz e em respeito às instituições.




[1] O língua – o intérprete
[2] Gabriel Soares de Souza, Tratado Descritivo do Brasil, 1587, pg 136.
[3] Tomacaúna, alcunha de  Domingos Fernandes Nobre, era um mameluco famoso sertanista, que viveu dezoito anos  com um índio, depois virou um sertanista que fazia reconhecimento de trilhas indígenas. Teve muito sucesso como traficante de escravos e isto se deve ao relacionamento que tinha com os índios. “Os índios denominavam-no “sobrinho” e o consideravam feiticeiro. Se os comboios de índios ameaçavam fugir  para o litoral durante a longa jornada, ele os intimidava por meio de sua magia. Assim sendo gozava o que havia de melhor em ambas as sociedades, era respeitado como traficante de escravos e sertanista pelos colonos; era honrado como um grande pajé pelos índios. Confessou à Inquisição que “muitas vezes disse que não queria vir se do sertão, pois nele tinha muitas mulheres e comia carne dos dias defesos e fazia o mais que queria sem ninguém lhe tomar conta” MENDONÇA:, Primeira Visitação, apud  John Hemming, Ouro Vermelho, São Paulo, EDUSP, 2007.pp237-238.
[4] SANTIDADE  era uma seita dos indígenas, mas dela participavam mamelucos e negros, os índios acreditavam, porque isto lhes fora dito pelos sacerdotes da seita, que não precisariam trabalhar, porque os mantimentos por si próprio haviam de nascer e que quem não cresse naquela santidade se havia de converter em paus e pedras e que a gente branca se havia de converter em caça para eles comerem) idem, pg. 238.
[5] Para maiores detalhes ver. VAINFAS, Ronaldo- A heresia dos Índios, catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo, Cia das Letras,1995; CLAZANS José. Fernão Cabral de Ataíde e a Santidade de Jaguaripe, Salvador, EDUNEB, 2011.: CARDOSO, Jamile Oliveira Santos Bastos. Ecos da Liberdade. A Santidade de Jaguaripe entre os alcances e limites da colonização cristã. Salvador, 2015 (dissertação de mestrado apresentada à UFBA FFHC)  https://repositório.ufba. Acessado em 05.04.2018
[6] VAINFAS, Ronaldo(org) Santo Oficio da Inquisição de Lisboa- Confissões da Bahia, Coleção Retratos do Brasil, , São Paulo, Cia das Letras.1997. pp 63-66. Todo o processo inquisitorial pode ser visto no Arquivo da Torre do Tombo, através do arquivo digital:  digitarq.dgarq.gov.pt  PT.TT-TSO/IL/28/14636.
[7] Idem, pg 66 – Confissão do próprio Fernão Cabral de Taíde.
[8] Vide segunda página do processo no arquivo digital da Torre do Tombo.

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