Saí
cedo, tinha de pagar a promessa: Ir andando ao Bonfim. De onde? Querem mesmo
saber? Daqui de casa, Jaquaribe, na orla. Todos me diziam e dizem que sou
maluca, mas se eu prometo, tenho de cumprir. Pior é que, que muitas vezes,
paguei a promessa antes de saber se alcaçaria, ou não, êxito no pedido, mas
pago logo para ver livre da obrigação.
Nesse dia não fora diferente, havia prometido ao Sr. do Bonfim esta ida
a pé, e lá se ia eu, sozinha, toda de branco: Patamares, Boca do Rio, Imbuí, Luís
Eduardo, San Martin, Largo do Tanque, Viaduto dos Motoristas, Uruguai, Baixa do
Bonfim, e finalmente: Igreja do Bonfim.
Lateral da Igreja do Bonfim |
Entro
na Igreja, agradeço, e está na hora de voltar. Como sempre, entretanto, apesar
do cansaço, desço o Monte Serrat todinho e vou até a Igrejinha de Humaitá,
adoro a vista, acho aquele lugar uma coisa linda. Fico ali sentada na
balaustrada. A Igreja, como sempre, está fechada, o que é uma pena, porque
adoro ver os azulejos que a decoram.
Estou completamente embevecida; de onde estou posso ver a cidade, os
seus prédios imensos da Vitória e, lá, bem na curvinha, o farol da Barra, que só
sei que e ele porque sei da sua localização desde sempre.
É
tão lindo aquilo ali, que choro emocionada.
Nas pedras que circundam a balaustrada na lateral da igreja, resto dos
presentes ou ebós colocados no mar, é a crendice baiana, gosto até disto, embora suje bastante
a área. Estou tão absorvida que nem percebo alguém se aproxima:
-Bons
dias!
Igreja N.Sra Monte Serrat |
Vista de Salvador da Ponta de Humaitá |
-Bom
dia Sr Garcia, que faz aqui?
-Não
achas que quem devia fazer esta pergunta era eu?
O
Sr. Garcia como sempre, pedante, senhor de si, orgulhosos, cabeça altiva,
olhando-me com uma expressão de desdém.
-Não,
não acho senhor Garcia! Quero mesmo saber o que o senhor faz aqui. Será que
agora não tenho mais paz? O senhor está
em todos os lugares. Já não tenho qualquer momento de privacidade.
-Acordas-te
com a macaca hoje foi? Não fiz a pergunta para ofender-te, mas, para variar,
estás nos meus domínios e eu quero saber o que te trouxe aqui, tão longe de tua
casa?
-Vim
na Igreja do Bonfim e aproveitei e vim aqui na Ponta de Humaitá, que é um dos
mais belos lugares da Baia de Todos os Santos.
-
Igreja do Bonfim? Onde fica, nunca ouvi
falar, aqui em Itapagipe eu só conheço esta aqui, que, como sabes, fui eu que mandei erigir.
-Sei
sim senhor Garcia, como sei.
-Mas
agora ela já não mais te pertence senhor Garcia, o senhor doou aos beneditinos.
-Eu
o que?
Isto
mesmo que o senhor ouviu, no seu testamento o senhor deu a Igreja aos padres do
São Bento.
-De
onde tirastes esta ideia, que testamento? Não vês que estou vivo aqui
conversando contigo.
-Quantas
vezes mais vou dizer ao senhor que és um desencarnado, que, para sorte ou azar
meu, me escolheu para falar de coisas do seu tempo.
-Desencarnado,
o que significa isto?
Não
quis me atrever a falar de morte, e fiquei ali com o desencarnado, com espirito
de luz, etc., mas não dava para ficar falando disto com o Garcia D´Avila, ele
realmente era grosseiro e podia me fazer alguma coisa. Era muito engraçado,
quando eu estava em frente a este homem sempre me dava uma sensação de
insegurança, de medo, as vezes até mesmo pavor.
-
Sabes que eu tinha varias olarias aqui por esta região.
-Sei
sim Senhor Garcia o senhor já me falou disto, mas agora o senhor só tem olhos
para Tatuapara e para norte. Soube que o senhor contratou gente para descer
índios.
-Como
sabes disto?
-
Já
te falei que pelos livros. Também soube que o senhor anda de rusga com os
jesuítas exatamente pela quantidade de indígenas que o senhor possui.
Descendo o Plano Inclinado do Pilar |
-Eles
tem é inveja, porque com esta história de tornar os índios cristãos, eles tem
mão de obra para tudo. Os aldeamentos[1] nada mais são de que
deposito de índios para servir aos jesuítas, e para fornecer mão de obra para os
colonos portugueses.
Como
assim Sr. Garcia, fornecer mão de obra para Portugal?
-Ora,
não te faças de boba. Há um projeto do
governo português e sabes disto, que é a de utilizar a mão de obra indígena
indispensável ao desenvolvimento econômico da colônia, afinal não há quantidade
de mão de obra suficiente vinda de Portugal, temos mesmo é que aproveitar a mão
de obra nativa e os recursos nativos .
Realmente,
ficar ali na Ponta de Humaitá me fazia muito bem, e eu estava muito desligada
do que o senhor Garcia falava, mas era impossível ficar assim muito tempo, o
homem gostava de atenção, e falava, falava, falou tanto que tive de escutá-lo.
-Eu
não disse-te que esta história de dividir o Brasil em dois governos não ia dar
certo? O Rei determinou que fosse restaurado o governo geral com sede aqui,
tudo como era antes.
Vista Forte São Marcelo |
-
Eu sei sim, isto aconteceu no ano de 1577, acho eu, e a determinação foi dada Governo Português e foi nomeado o Governador
Geral do Brasil, o Sr. Lourenço da Veiga. Como foi o governo dele Sr. Garcia?
-
Como posso saber, o homem mal acabou de chegar, mas ao que parece que é um
homem enérgico e de coragem.
-
Pelo que li, é sim e ele vai ter muitos problemas na Paraíba.
-Paraiba?
-Sim
senhor Garcia na Paraíba
-Ele
vai de expulsar franceses e dominar os potiguares, que o senhor sabe, são
guerreiros e a maior nação indígena do Brasil no nordeste, além de aliados dos
franceses.
-Já
se foram muitas expedições e ninguém consegue detê-los.
-Pois
é, mas o Lourenço da Veiga vai enviar uma nova expedição, que será organizada
por Chistovão Barros[2] e Cosme Rangel[3], mas também esta expedição
não teve grande êxito.
-
O Senhor não vai fornecer homens para esta expedição Sr. Garcia?
Igreja da Misericórdia - dia da festa de Santa Barbara |
-Ainda
não fui solicitado, o governador acabou de chegar, e tú és que estás a informar
que esta expedição sairá daqui, tu e tuas bruxarias e adivinhações.
-Tá
bom senhor Garcia, um dia falaremos mais sobre isto. Todavia, o senhor deve
saber que a qualidade do pau brasil[4] da Paraíba é reconhecida
pelos estrangeiros, e é por isto mesmo que os franceses e holandeses insistem
em visitar o nosso litoral e se juntarem aos índios. [5]
De
repente o Sr. Garcia disse-me: Vou embora, tenho de visitar as olarias e ver o
gado que ainda se encontra aqui, mas quero saber mais a respeito deste novo
governador. Ele já está bem velho e não sei quanto tempo vai aguentar,
portanto, quero saber antes de todos o
que vai acontecer nesse período que ele vai governar, e tu podes informar-me.
Dizendo isto virou-se de costa e desapareceu atrás da Igreja, deixando-me, mais
uma vez, atônita com a dúvida se tudo isto ocorrera mesmo, ou era fruto da
minha imaginação e da minha grande vontade de saber a história deste meu imenso
Brasil e, principalmente, da minha terra - a Bahia.
[1] Aldeamento- eram os ajuntamentos indígenas
que eram organizados coordenadamente, em lugares escolhidos pelas autoridades coloniais, para
onde vinham os índios de diversas
povoações, após o descimento, que era a retirada dos índios da sua própria aldeia
para se reunirem nas comandadas pelos missionários, para que se convertessem ao
cristianismo. Esta estratégia fazia parte da política colonial portuguesa em
relação aos gentios, que deveriam se converter ao cristianismo, abandonar a sua própria cultura, enfim, deixarem de ser bárbaros
para adentrarem ao mundo civilizado, embora, na realidade, este foi o caminho
encontrado pelos portugueses para a utilização de mão de obra barata,
completamente dócil. A contribuição da Companhia de Jesus foi fundamental nesta
estratégia, e embora o pretexto da conversão dos adultos e a educação das
crianças tenha sido observado, não afastou a utilização da mão de obra indígena,
sem quaisquer ônus, pelos próprios missionários jesuítas, proprietários de
grandes extensões de terra. Sobre os indígenas do Brasil ler: HEMMING John ,
Ouro Vermelho,.São Paulo, Edusp2007, (tradução Carlos Eugenio Marcondes de
Moura).
[2] Chistovão de Barros - Provedor Mor da Fazenda e foi Provedor da Santa Casa de Misericórdia
em1587
[3] Cosme Rangel de Macedo veio para o
Brasil como Ouvidor Geral, com a doença do governador Lourenço da Veiga, fez parte da
Junta que governou o Brasil até a chegada do novo governador Manoel Telles
Barreto,
[4] Pau Brasil – denominado pelos indígenas – ibirapitanga.
[5] Segundo os historiadores,” desde 1570, os índios,
insuflados pelos franceses, com quem conviviam nas terras da Paraíba e Rio
Grande, incursionavam em Itamaracá e Olinda, ameaçando a florescente Capitania.e
em 1574 ocorreu o massacre e Tracunhaém, resultante do ato do cristão-novo Diogo
Dias, senhor de engenho em Goiana, a 60 Km da futura capital
paraibana e a 40 Km de Itamaracá, reter uma cunhã potiguara, filha do
principal Iniguaçu, que havia se casado com um mameluco. O principal da tribo
não gostou desse seqüestro e, instigado pelos franceses, assaltou o
engenho, matando todos os seus moradores. Da família de Diogo Dias escaparam
dois filhos, porque não se encontravam no engenho. Envaidecidos dos seus
feitos, passaram os índios a fustigarem a ilha de Itamaracá, preocupando os habitantes
de Olinda, os quais temiam a qualquer momento um ataque indígena.” Luiz Hugo
Guimarães, Historia da Paraíba – www..ihgp.net/luizhugo/a_conquista da paraiba.htm.
acessado em 31/07/2018.