domingo, 23 de maio de 2010


Quarenta anos depois.
De repente estava ali; na sua frente, um homem bonito, cinqüentão, grisalho a lhe olhar muito, como se a conhecesse.
Ficou olhando para aquela pessoa, primeiro porque era realmente um homem bonito, segundo porque o olhar daquele cidadão não era de um homem qualquer, terceiro porque tinha quase certeza que já o tinha visto antes.
Bem verdade que não seria estranho, estava na sua terra, no seu ambiente, numa festa em que muitos do seu tempo ainda vão, portanto, poderia encontrar qualquer um dos seus antigos amores, admiradores, colegas, amigos, enfim.
Todavia, aquele olhar já estava deixando-a um pouco sem graça, até porque não estava sozinha, estava em companhia de dois conhecidos, que, por coincidência conheciam o homem. Mesmo depois que os dois companheiros se aproximaram e, sem deixar de ser olhada e olhar para aquela pessoa, ficou distante, esperando que os cumprimentos acabassem e os três, ela e os dois amigos continuassem a caminhada. Entretanto, um dos amigos lhe chamou: Ei! Venha cá, vamos tomar uma cerveja aqui com o nosso amigo!  Ela se aproximou mais um pouco, mesmo assim cautelosa, sabia que já tinha visto aquele rosto, mas não se lembrava onde e quando, e ficou preocupada de realmente conhecer aquela pessoa e não saber de onde, afinal é muito constrangedor alguém lhe conhecer e você, sequer, saber o seu nome.
O amigo que lhe chamou é um advogado em Salvador, e, por isso, achou que poderia ser um contemporâneo de faculdade, não tão próximo como os seus colegas de turma, mas um estudante de direito da sua época. Ledo engano! Antes mesmo que o seu companheiro de caminhada ao Bonfim acabasse a apresentação, o homem virou-se para ela e disse-lhe. Você não é fulana de tal? Você não fez direito e formou em advogada? Você não veraneava em Gameleira na Ilha?
Tomou um susto, mas de repente, a ficha caiu. Voltou no tempo e no espaço: Tinha apenas 17 anos quando conheceu aquele, então, rapaz bonito, embora agora o fosse mais ainda: os cabelos grisalhos lhe deram um grande charme, um plus em quem já era quase perfeito.  Devia ter, em 1972, uns vinte anos, era moreno, corpo musculado, tonificado, na linguagem de hoje, malhado. Pelo que se lembra era meio caladão, não se via esse rapaz no meio de todo mundo, ele sempre estava nos mesmos lugares que ela, mas sempre discreto. Olharam-se muitas vezes, mas parece que ele não tinha coragem de aproximar-se. A sua aproximação acabava em um "boa noite" mais próximo, nada mais.
Com o cidadão tocava violão, e nos idos de 70 o grande vício da juventude, pelo menos em Gameleira, era beber cachaça no coco, que era preparado antes, quando se fazia um buraquinho na casca do coco e colocava cachaça dentro dele, depois, vedava-se este buraquinho e enterrava-se o coco na areia e deixava-se lá por uns dois dias: a dificuldade era saber o lugar onde foi enterrado. Pense aí, muita gente fazendo a mesma coisa em um espaço  não muito grande. A confusão era grande na hora do desenterro. Às vezes tinha até porrada, outras vezes, frustrados, não se encontrava o próprio coco, algum sacana que tinha visto o enterro, promovia o levantamento antes e, adeus ao ópio. Junto com esta cachaça e, para mostrar uma cultura e modernidade, tocava-se violão: Vinicius, Tom Jobim, João Gilberto, Nara Leão, Chico Buarque. Isto quando o ópio ainda não estava a fazer um grande efeito, porque do meio para o fim já se cantava. Roberto Carlos, Golden Boys, Os Fevers, Renato e seus Blue Caps, Leno e Lilian e tantos outros. No auge da cachaça e da pureza dessas festas, hoje certamente apelidá-las-iam de "luaus" cantava-se "la bamba" e era a preferida: "para bailar la bamba se necessita una boca de gracia, una cosita, arriba oh arriba, asi seré, asi será, asi seré": Não estranhem, era assim mesmo ninguém sabia español e a letra era cantada como era entendida, percebida pelo cantador. Porra meu, era ótimo.
A ponte de Gameleira ouviu muitas vezes a música latina sem que identificasse em que língua era cantada.
Em um espaço mínimo de tempo, tudo isto veio à tona, minutos talvez, mas a recordação foi violenta, parecia um filme
Com toda esta reviravolta cerebral ela assentiu que era ela mesma, apertou-lhe a mão e disse-lhe exatamente que o estava reconhecendo, mas até chegar mais perto não o tinha identificado. Os dois companheiros que estavam perto ficaram parados observando o cumprimento dos dois, eles pareciam que, por segundos, esqueceram-se de que estavam com mais pessoas ao redor e que estavam numa festa de largo 40 anos depois.
Ele lhe perguntou se ela se lembrava da jangada que ficava atrás da barraca da ponte. Mais uma vez ela voltou à Gameleira e se viu à noite, na noite estrelada e linda, com apenas um lençol, deitada na jangada a olhar o céu, ouvindo o som do mar, protegida do vento e desfrutando de um espaço disputadíssimo, mas completamente democrático e respeitado: quem chegasse primeiro, com o seu lençol, alguns levavam até travesseiro, tomava posse do espaço e poderia ficar ali toda a noite, dormir e amanhecer como sol queimando o rosto, sem que ninguém incomodasse, perturbasse o sono e a tranqüilidade.  Ali se podia sonhar, namorar, conversar e, até mesmo, como ela fazia, dormir. Partilhou, muitas vezes, essa dormida com aquele rapaz, que nunca tentou lhe encostar um dedo. Dormiam os dois, ambos naquela jangada de quatro madeiras, juntos, porém separados, cada um com o seu sonho, cada um com a sua vontade, talvez uma só vontade, que era afastada pelo medo da conseqüência. Assim ficavam ali, deitados lado a lado, calados, olhando as estrelas, permitindo que elas partilhassem aquela intimidade não íntima, aquela doçura não demonstrada em gestos.
Sim ela voltou no tempo e, naquele momento, olhando o olhar daquele homem percebeu o tempo que ambos perderam por não terem, ao menos tentando, viver um romance, não um grande amor, talvez não estivessem para isto preparados, o momento do grande amor seria naquela hora em que se reencontraram, porque ali sabiam o que queriam e o porquê do querer.
Os dois, entretanto, estavam fadados ao desencontro, porque apesar do abraço apertado, da quentura dos corpos, desta vez, bem colados, seguiram os seus caminhos. Ela continuou andando para o Bonfim, ele se despedindo dos amigos, caminhou para o lado contrário. Uma coisa, entretanto, ficou patenteada com aquele encontro, o que muito bem foi resumido por um amigo que estava a lhe acompanhar: "Este homem foi apaixonado por você. Não é possível, depois de quarenta anos, alguém lembrar o nome de outrem, saber da sua vida, lembrar de detalhes e olhar daquela maneira para uma mulher que já se conheceu há tanto tempo e que já não é mais nenhuma uma jovem". Bem verdade que o comentário foi exagerado, mas ela percebeu que, na vida daquele homem, ela representou alguma coisa, um sentimento maior, uma admiração qualquer, mas, para ela, o melhor de tudo, foi o olhar que viu naqueles olhos claros emoldurados por um cabelo grisalho: Desejo, tesão, surpresa. Repetiu para si mesma.  Estou viva! Sou mulher! Sou bonita!  Dormiu bem naquela noite...




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