quarta-feira, 28 de março de 2018

O dia da chegada - Garcia D´Ávila X


O Sr. da Torre entrou e eu nem percebi, estava tão ocupada com os problemas, que não percebi que ele estava ali, mais uma vez, sentado na minha sala e me observando.
-Sr. Garcia, quantas vezes já lhe pedi para o senhor não entrar assim? Dê um jeito de me avisar, ainda morro de susto.
-Bati na porta, mas estavas tão concentrada no que estas a fazer que não ouviste.
Me dei conta, neste momento que estava com um livro na mão, mas eu não o estava lendo, estava tão preocupada com os problemas que estão aparecendo a cada dia, que o livro estava apenas aberto, olhava as letras, mas não conseguia assimilar nada.
- Estás muito triste, disse o Sr. Garcia.
- Sim, estou, preocupada com meu filho
- O que? Tens filho?
- Qual a razão do espanto Sr. Garcia: tenho filhos e netos.
-Netos?
-Sim senhor, filhos, netos, marido.
-Marido! Duvido. Nunca vejo ninguém aqui, estas sempre só.
-Coincidência, é que o senhor vem em horários que todos estão a trabalhar.
- Não é possível, quantos anos tem?
-Que indiscrição Sr. Garcia, não se pergunta a uma mulher a sua idade.
-Tenho de perguntar-te sim, pra mim és uma menina ainda, não posso imaginar-te mãe, avó. Nada.
-Agradeço a vossa generosidade. Mas tenho tudo isto mesmo. A propósito, me conte um pouco mais sobre Isabel e sobre seus dois outros filhos.
- Por que faria isto?
Para eu saber mais um pouco de si senhor Garcia
- Não quero mexer com isto, todos mortos. Para que me martirizar com estas lembranças? Disse isto e fechou uma cara daquelas, mas ao invés de se picar e me deixar em paz, quedou-se ali sentado, com aquelas botas sujas na minha sala. Se eu não soubesse que ele era uma alma penada, sinceramente, o pau ia comer, como é que se entra na casa dos outros com tanto barro nos pés, sujando a zorra toda. 
Para quebrar o gelo, perguntei-lhe:  Sabe que dia é hoje?
- Dia 29 de março, acho eu?
-EH Sr Garcia, este dia não vos diz nada?
-Não, fazes anos hoje?
-kkkkkkk, eu não, mas a cidade que o Sr ajudou a fundar sim.
-Como? O que dissestes?
-Estou a dizer que a cidade do Salvador está fazendo anos, está comemorando hoje, dia 29 de março de 2018, 469 anos de fundação.
-Estás  louca? A cidade não tem sequer 42 anos, estamos em 1591 e nós chegamos aqui em 1549, onde achaste este número de anos? Não sabes fazer conta? Não me admira, és mulher!
Fiquei piurça com o Sr. da Torre, como aquele fdp adorava humilhar mulheres, que para ele, e todos os homens da sua época, só serviam mesmo para criar filhos, satisfazerem os seus desejos sexuais e manter uma casa arrumada, aliás, com raras e honrosas exceções, ainda se vê isto em pleno século XXI.  Bom, mas ele não ia alterar em nada as suas convicções se eu xingasse, esbravejasse com ele, quando muito me daria umas boas peras (bofetadas) se lhe aborrecesse muito. Rapaz! Descobri que tinha medo daquele fdm.
-Senhor Garcia, o Sr. não quer me falar um pouco da fundação da cidade, de Thomé de Souza, enfim, de como foi a chegada dos senhores aqui.
-Que queres saber?
-Tudo com detalhes.
-E tu, quando aqui chegastes
-A minha chegada não vem ao caso, quero saber da vossa.
-Quando chegastes como era a cidade?
-Sr. Garcia, o que quero saber é da vossa chegada, e não da minha.
A conversa estava pendendo para um lado que eu não queria, se ele encasquetasse em saber a data da minha chegada estava tudo perdido, já pensou eu dizer que cheguei em 1953 e que foi no hospital espanhol, lá na Barra, e que nos morávamos no Garcia, kkkk o homem desta vez não ia me perdoar de maneira alguma, ia cumprir as suas ameaças e me denunciar mesmo  ao Santo Oficio.
-Sabe senhor Garcia, eu soube que os senhores chegaram aqui em Salvador aos 25 dias do mês de março de 1549?
Torre de Belem -Lisboa-Pt
-Quem disse isto? Está errado. Chegamos aos 29 de março de 1549.
-Foi mesmo senhor Garcia? Ri interiormente; ele tinha caído no laço:  estão informando falsamente as pessoas esta data que falei.
Senti que agora ia ter jogo, ainda bem que pensei rápido e como estratégia falei a data errada. Daí em diante não consegui mais parar o senhor Garcia, que de um só fôlego começou:
“ Zarpamos de Lisboa em 1º de fevereiro de 1549,  trouxemos uns quatrocentos soldados e muitos degredados,. A expedição era composta de 6 unidades: naus Conceição, cujo capitão era o próprio Thomé de Sousa, Salvador, Ajuda e caravelas Leoa, Rainha e um bergantim[1] e ainda outros navios de particulares. Trouxemos entre 200 a 400 soldados, colonos contratados e 400 degredados, além de funcionários e mestres de obras e, como não poderia deixar de ser, seis missionários capitaneados por Manoel da Nóbrega.”[2]
-Oh gente! Não vieram junto com Thomé de Sousa o provedor mor e o ouvidor geral?
-Claro que sim, O provedor Mór foi nomeado desde Lisboa e era o Antônio Cardoso de Barros, que inclusive era donatário do Ceará e veio capitaneando a nau Salvador, e Pero Borges de Sousa como Ouvidor Geral, e Pero de Góes, por conhecer bem a nossa costa como Capitão Mór, ficando encarregado da sua vigilância.[3] 
- Sr. Garcia, este Pero Borges fazia o que em Portugal?
-É um homem de bem,
-Acho que o Sr. está enganado, ele não era tão homem de bem assim, conta-se que ele
-Como ousas?
-Oh Sr. Garcia! Aqui nós já estamos acostumados com estes malfeitores que, por ter a proteção do Rei(Governo), se dão de santo, quando tem um passado por demais comprometedor.
-Como sabes disto?

-Documentos Sr. Garcia, livros, estudiosos que se debruçaram na história.- Pois não é que esse homem, que chegara ao Brasil com a nobre função de aplicar a justiça, era nada mais nada menos de que um ex-funcionário público português, que foi condenado por desvio de verbas públicas quando da construção do aqueduto, o que só foi descoberto porque a obra não pode ser concluída por falta de verbas[4].

-Isto não pode ser verdade, grita o Sr. Garcia.

É sim Sr Garcia, ele inclusive deveria cumprir pena de três anos afastado do exercício de qualquer função pública, entretanto, foi nomeado, apenas um ano e meio depois da sentença de condenação, para exercer o cargo de Ouvidor Geral, trazendo uns documentos assinado por El Rey, que determinava a “todas as autoridades e moradores da colônia lhe obedeçam e cumpram inteiramente as suas sentenças, juízos e mandados em tudo o que ele fizer e mandar” [5]
Farol da Barra-Salvador-Ba
Os seus poderes eram imensos e equiparados aos desembargadores da Casa de Suplicação do Reino. Este desclassificado  era a autoridade suprema da justiça territorial no Brasil. Conhecia por ação nova, dos casos crimes, para o que tinha alçada até morte natural inclusive, quanto aos escravos, peões, christãos, gentios livres, devendo, porém, nos casos em que, segundo o direito, coubesse a pena de morte, inclusive, tratando-se de pessoas dessa qualidade, proceder nos respectivos feitos afinal e despacha-los com o governador geral, sem apelação, se fossem conformes os seus votos; e, no caso de discordância, deviam ser os autos, com os réus, remetidos ao corregedor em Lisboa, para sentença. (MAX FLEIUSS:1922-21).
Para aqueles que tivessem menos posses, “pessoas de mor qualidade”, Pero Borges poderia aplicar a pena de degredo de até cinco anos. Tinha ainda competência para causas cíveis, com alçada de sessenta mil reis.
O Senhor da Torre ficou olhado para mim com uma cara indecifrável, mas com certeza não era uma cara boa, parecia estar mesmo muito intrigado, afinal ele viera com este homem, que ficou por aqui durante muito tempo, e ao que parece ele não sabia deste detalhe, e mais uma vez olhou-me e disse: és mesmo uma bruxa, vou saber desta história direito e se isto não for verdade, hás de pagar caro esta ofensa a um homem tão ilustre.-
Ruínas Castelo Garcia DÁvila-Ba
Sr Garcia, isto é verdade sim, mas de que adianta o senhor procurar isto agora, já se passou muito tempo, mas não defenda este “canalha”, ele desviou em proveito próprio dinheiro público, tanto que a obra  do aqueduto não pode ser concluída, resultando em que os indignados vereadores escreveram para o Rei pedindo à investigação que foi autorizada, chegando-se à conclusão de que o homem fizera mesmo o desvio do dinheiro, sendo condenado a devolver aos cofres públicos o valor correspondente à quantia desviada e a ficar afastado por três anos de exercício de cargo público. Imagine Sr. Garcia! O valor desviado foi de 114.064 reis e é este  miserável que veio para cá para punir, coitados, indígenas, escravos, e toda e qualquer pessoa que cometesse qualquer crime. Pior que
Ponta de Humaitá vista da Pedra Furada.Ba
tudo Sr. Garcia é que ele veio nomeado pelo mesmo Rei que autorizou a investigação anterior.
O Sr. Garcia estava mudo, só me olhava com um olhar que não consegui definir: incredulidade! Raiva!. Surpresa!. Não sei, mas ele tomou mesmo um baque com aquelas notícias todas que eu, pobre mortal e mulher, estava lhe dando.
Eu, aproveitando este fraquejamento do Sr. da Torre, continuei:   O Sr. sabe que com uma ficha desta o homem foi nomeado e conseguiu que lhe pagasse salários antecipados. Uma vergonha! Eu só queria saber se este desgraçado devolveu o dinheiro. O Thomé de Sousa retornou ao Reino, e, quando da chegada do segundo governador, e o senhor sabe disto, o desgraçado do Pero Borges passou a responder, também, pelo cargo de provedor mor, ou seja, ele lidava com as finanças da Colônia.  Não dá para acreditar, mas foi assim mesmo.
Quando acabei de falar vi o Sr. Garcia levantando e, sem me dizer adeus, desapareceu. Era sempre assim, ele ficava injuriado quando eu falava dos defeitos dos seus pares, dos seus “homens bons” e ele não tinha como contra argumentar.
Baía de Todos os Santos - Salvador-Ba
É, falei para mim mesmo: Acho que este dia da chegada vai ser muito prolongado, pois se de cada pessoa que veio com o Sr. Garcia eu descobrisse um erro, ia demorar sair do dia 29 de março de 1549.
Por do Sol no Porto da Barra-Ba
Resta-me apenas parabenizar Salvador, que, apesar de tudo, continua linda e maravilhosa,  e esperar que o STF dê uma decisão correta e justa no dia 04 de abril,  que retire do cenário político nacional  os milhares de corruptos que se dizem inocentes, ainda que com tantas provas já coletadas!



[1] Bergantim – embarcação do tipo galé, de um a dois mastros e velas redondas ou velas latinas. Levava trinta remos e era utilizado como elemento de ligação, exploração, como auxiliar de armadas e em outros serviços do gênero.
[2], Ver FLEIUSS Max, História Administrativa do Brasil Segunda Edição, Recife, Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1925, pg 13-15,
[3] Idem.
[4] Ver. PEREIRA DE ALMADA, V de S.  Elementos para um Dicionário de Geografia e História Portuguesa, 1888, Elvas. Portugal
[5] Regimento que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548, Lisboa, AHU, códice 112, fls. 1-9.


quinta-feira, 22 de março de 2018

D O V I S H!!!!!!!!!!


Você sabe o que"dovish"? kkkkkk. Hoje, pela manhã, vendo o canal Blomberg, que diga-se de passagem é em inglês e eu entendo pouquíssimo do que ali se fala, embora saiba, pelas manchetes,kkkkk, do que se está comentando no momento, "facebooK" e "Sarkosy", além de Trump, este último figura cativa no canal, me deparo com a seguinte manchete, uns quadradinhos que aparecem na lateral da tela :" Surpresa dovish do BC deve levar ao fechamento da curva dos juros". Susto da zorra!  Que diabos estão falando, o que dovish? algum funcionário que por ser tão mínimo teve o seu sobrenome começado com letra minúscula? Alguma agência de classificação de crédito que novamente desqualificou o Brasil? bom o fato é que o nome estava lá e eu curiosa sem saber interpretar aquela manchete que falava inclusive do "fechamento da curva dos juros", isto já me traz mais preocupação ainda, porque apesar da tal da selic estar em 6, alguma coisa, sem que que o consumidor tenha sentido isto em qualquer operação, quanto pior as bancárias, uma notícia de fechamento da curva do juros me deixa com  a nítida impressão que vai se congelar a taxa de juros, ela não vai mais descer nem um pouco. O certo é que fui procurar ver o que era a tal  dovish e, o nosso querido "google" me deixa letrada: dovishkkkkkkkkkkk, dovish! Não se assustem, dovish é uma tendência de tratamento mais maleável do juros, da inflação, e outras medidas econômicas., que esta presente no Banco Central. Quem quiser entender muito melhor, eu só coloquei isto aqui para que ninguém tome o mesmo susto que eu, procure no google e saberá .Deixo apenas um conselho para aqueles que colocam estas manchetes, sejam mais simples, o povo não entende os termos que são utilizados e, assim ficam  como eu, "bosta n`àgua."

segunda-feira, 19 de março de 2018

O que eu queria que você soubesse


Antes mesmo de conhece-lo já ouvia falar dele, pois assim que passei no vestibular de Direito, no ano de 1973, o meu pai disse-me: Vais ser aluna do professor Raul Chaves.  Fiquei intrigada, pois não sabia que o meu pai conhecia este senhor, sim, este senhor, porque naquela época da minha vida o Dr. Raul era aquele senhor do qual meu pai falava com tanta veemência.  Meu pai conhecera o Dr. Raul na Renner, loja tradicional de roupas masculinas que tinha na Avenida Sete, na altura do Relógio de São Padro, onde o Dr. comprava os famosos ternos brancos de linho, aliás, que o meu pai também usava, porque tinha de se apresentar bem no trabalho, no qual era uma espécie de modelo vivo.
Fui para a faculdade curiosa, pois queria saber quem era aquele Dr, do qual meu pai falava tão efusivamente.
Os dias se passaram na faculdade, e eu continuava ouvindo falar do homem sem ter a chance de conhece-lo, porque nos primeiros dois semestres do curso o aluno não pega Direito Penal, entretanto, quis o destino me dar uma mãozinha, ou melhor, uma mãozona, pois no segundo semestre do ano em que entrei na faculdade conheci o pai de meu filho.
Por ter conhecido o acadêmico Valdir tive a oportunidade de conhecer Ângela e Pedro, e soube que ela era filha de Dr. Raul e, por causa disto, por ser Valdir amigo dos dois acima mencionados, tive a honra de privar da intimidade da casa do mestre e conhece-lo .
Nunca na minha vida vou esquecer aquela casa branca de janelas verdes no Chame-chame, jamais, em tempo algum: aquela casa presenciou um início, o durante e o fim de uma relação, para mim começada para a vida toda, mas isto não e o mais importante neste momento. Naquela casa privei da intimidade do Dr., Raul e de toda a sua família. Fui acolhida por todos, Dona Myrthes, Lana, Reyne, Raul, Yvone e Antonio Luis, e,  particularmente, pela Ângela, que junto com Pedro viraram quase os meus anjos da guarda por muito tempo, não só meus, mas também do meu filho, que tinha dentro daquela casa  “papeiro”, “colher de pau” e até uma mamadeira, isto para me poupar de levar todas as tralhas quando para lá fosse e  muito amor e atenção.
Vivi meu romance, participei de natais, de festas de aniversário, cantei as músicas de Ângela, vi a felicidade dentro daquela casa, aprendi o que é respeito pelo próximo e como um simples gesto podia significar tanto amor.
O Dr. Raul tinha uma maneira especial de me tratar, era muito galanteador e me deixava muito sem graça quando, participando da mesa de refeição dos Chaves, ele me olhava e dizia-me que eu tinha um perfil grego. Lógico que eu achava ótimo, afinal não é todo mundo que tem um perfil grego e muito menos ter isto confirmado por Raul Chaves.
Lembro-me um dia, quando todos estávamos nos preparando para sair, uma confusão danada naquela casa, pois todos os amigos dos filhos do mestre eram ali acolhidos, e havia muita gente para tomar banho se arrumar, enfim. Eu estava lá esperando a minha hora do banheiro, quando o Dr. Raul abriu a porta do quarto dele e me ofereceu o banheiro da sua suíte, onde ninguém entrava, para que eu tomasse banho. Claro eu recusei, afinal, sabia do seu espaço sagrado. O seu quarto era ligado ao seu escritório através de uma escada interior. Eu achava aquilo fantástico e sempre pensei em ter um espaço assim para mim, aliás, ainda penso. Ficava fascinada não só por este detalhe, mas por tudo, livros e mais livros, alguns empilhados ao lado da mesa de trabalho, muitas coisas naquele recanto de saber. Bom, mais estou falando do banho. Recusei, mas ele insistiu tanto que fui tomar o banho, e o meu maior dilema era o sabonete. Vou tomar banho com o sabonete do casal! Oh meu Deus que dilema cruel!. O que fazer? Tomei o banho, usei o sabonete, agradeci e fui me arrumar.
Rapaz, nunca pensei que um banho iria ter tanta repercussão. Então a Esmeralda tomou banho no banheiro de meu pai?  Usou o sabonete dele? Ninguém estava acreditando muito, mas o fato é que foi assim mesmo.
Bom, então posso ter isto comigo para o resto da vida, eu tomei banho no banheiro do Dr. Raul Chaves e Dona Myrthes.
De outra feita, lembro-me, ele queria me levar para uma viagem com ele para que eu o secretariasse. Não fui. Não deu certo.
Um dia eu cheguei na casa dele e ele me perguntou se eu estava aborrecida com ele por algum motivo. Eu disse que não, e ele falou assim não me pareceu no avião. Avião! Que avião Dr Raul? E ele passa a relatar o episódio. Disse-me ele que estava num avião, acho que indo para São Paulo, não lembro bem, e que eu estava sentada em uma das poltronas, Falou comigo de onde estava e eu não respondi: intrigado,  depois que ele estava instalado e que o avião levantou vôo, ele foi até a minha poltrona e, quando abriu a boca para falar comigo notou que não era eu, e sim uma pessoa bem parecida. Dei risada, e disse “ deve ser uma pessoa muito parecida comigo mesmo para o senhor confundir, mas estranho apenas o fato do senhor achar que era eu e que não queria falar consigo, isto seria um impossibilidade.”
Pois é, nunca tive uma aula com o Dr. Raul na faculdade, mas não precisaria de aulas na faculdade, porque as aulas que ele me deu dentro da sua casa, permitindo que eu desfrutasse da sua intimidade, vendo um pai, um marido, um amigo, um pequeno grande homem,  que sabia receber e dar amor, é impagável e vale mais que qualquer aula de direito, porque ele me deu lições de vida.

quinta-feira, 15 de março de 2018

O Sr. da Torre e a Vereança


Estava no comboio entre o Cais Sodré e Cascais e, passando pela Torre de Belém lembrei-me do Sr. da Torre fiquei imaginando como teria sido a sua partida. Confesso que este pensamento me deixou muito triste, não por causa do Sr. Garcia D´Ávila, embora a lembrança dele, que desencadeara todo o pensamento, me deixava aflita, pois pensei no sofrimento daqueles que partiam e daqueles que viam partir os seus filhos, esposos, pais.
Torre de Belém -Pt´
Este pensamento me incomodou anto que fiquei mesmo triste e perguntando-me, quem teria ido se despedir do Sr. Garcia D´Ávila.  Uma irmã, sua mãe, um irmão?  Continuo sem saber, porque a vida do Garcia antes de sua ida para o Brasil é uma verdadeira incógnita. Ninguém fala nada, e alguns arriscam a dizer que ele era criado de Tomé de Souza, sendo criado no sentido de ser criado na casa, e não criado no sentido de empregado.
Por causa destes pensamentos fui reler os Lusíadas de Camões, pois lembrei que tem uma passagem que ele fala literalmente desta partida dos portugueses para mares longínquos e, para ratificar os meus temores e tremores, pois o pensamento me angustiava tanto que me dava arrepios, encontrei:

   
     
Cascais Pt
A gente da cidade aquelle dia

(Huns por amigos, outros por parentes
Outros por ver somente) concorria,
Saudosos na vista, e descontentes,
E nós, com a virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes,
Em procissão solemne a Deos orando,
Para os batéis viemos caminhando.
Em tão longo caminho, e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavam
As mulheres com choro piedoso,
 Os homens com suspiros que arrancavam,
Mãis, esposas, irmaõs, que o temeroso, Amor mais confia, acrescentavam
A desesperação o frio medo
De já não nos tornar a ver tão cedo

      Já a vista pouco a pouco se desterra
      Daquelles  patrios montes que ficavam,
      Ficava o charo Tejo e a fresca serra
      De Cintra  e nella os olhos se alongavam
      Ficava-nos também na amada terra
     O coração que as mágoas la deixavam
     e já depois que toda se escondeo
     Não vimos mais, em fim, que o mar, e o Ceo"[1]  

Praça do Comercio Pt 
Vocês podem bem  assimilar, através dos versos deste ilustre português, que participou de tantas viagens, portanto ele mesmo sentindo a dor da partida e a dor de quem ficou à espera de quem podia,  como se sofria em cada uma destas despedidas.

Bom, mas eu não podia ficar assim tão triste e deprimida, afinal estava em Lisboa e tinha de me animar para aproveitar muito a terrinha do Sr Garcia D´Avila, e ai já comecei a me preocupar com ele. Será possível que ele podia aparecer por ali! Fiquei apreensiva só de pensar na possibilidade. Imaginei a cena: o Sr. Garcia me enchendo a paciência, me perguntando coisas e eu calada, sem poder responder nada, porque estava no comboio e muita gente a me olhar. Que droga que seria!  Procurei afastar o pensamento do Sr. Garcia, mas parecia que o homem estava querendo aparecer de qualquer maneira.
Felizmente ele não apareceu nem ali e nem em lugar algum, enquanto eu estava em Lisboa. Pensei até em ir em Rates, mas desisti.
Cheguei em Salvador e, chegando em casa, ao abrir a porta, e isto era quase meia noite, quem é que está de um lado para outro na varanda: O Sr. da Torre, que parecia muito irritado.
Logo atrás de mim estava o meu irmão, e eu vi o Sr. da Torre vindo na minha direção  indignado e bradando. Dei uma recuada e meu irmão perguntou-me: o que houve? Você está amarela! Viu alguma coisa aí?
Não, nada, penso que é a emoção de estar chegando em casa mesmo.
- Por que você não diz a ele que eu estou aqui? Ou melhor, este homem aí não está a ver-me?
Não podia responder nada e deixei o Sr. Garcia falando sozinho, o que o irritou mais ainda.
Meu irmão ajudou-me com as malas, olhou a casa toda e em seguida foi embora, e aí foi que eu pude me dirigir ao Sr. Garcia, que estava mesmo irritadíssimo
-Quem é este moleque que veio ai consigo?
-Meu irmão Sr. Garcia, meu irmão.
-Nunca disseste-me que tinhas irmãos!
-O Sr nunca me perguntou.
- Onde ele mora?
-Tenho vários irmãos e cada um mora em um lugar, aqui em Arembepe, e em outros lugares em Salvador, uma delas mora em Sergipe Del Rey
- Onde? Sergipe Del Rey! É outra que vive nas minhas terras sem pagar-me foro?
- Sei lá Sr. Garcia se esta parte, onde ela mora, é vossa.
- Isto agora não interessa? Onde estivestes? Vim aqui inúmeras vezes e não estavas em casa.
- Viajei Sr Garcia, fui em Portugal?
- Onde? Em que nau viajastes? Não soube de nenhuma partindo por estes tempos, tampouco de nenhuma chegada de qualquer nau hoje.
 acesso à Capela Sistina-Vaticano
Fontana de Trevi - It
Meu Deus, como explicar a este homem que fui de avião?. Era melhor não.
Como fui não vem ao caso, mas o certo é que fui e estou chegando agora, como o senhor pode ver. Estive na Itália e em Portugal.
-Itália? Que fostes fazer na Itália?
-Fui ver o Papa?
-O que! Tu fostes ver o Papa, a troco de que?
- A troco da fé Sr Garcia, apenas isto.
- E ele recebeu-te?
-Não, não o vi
-Tinha graça, ele jamais receberia uma mulher sem eira nem beira.
Dei risada, então era assim que aquele filho da mãe me via, uma mulher sem eira nem beira, talvez até uma desclassificada.
-Sabe Sr Garcia pensei muito no senhor enquanto estava em Portugal, principalmente quando estive em Belém: Quem foi chorar a sua vinda para o Brasil?
-Ninguém foi chorar a minha vinda para o Brasil, eu vim com o Tomé de Souza e quem se despediu de nós foi a esposa e a família dele, afinal eu morava na casa dele.
-Por que o senhor morava na casa dele?
O homem me olhou de uma maneira que parecia querer me matar, tive, imediatamente, de mudar o rumo da prosa.
-Senhor Garcia, como foi que o senhor se tornou vereador?
- Fui escolhido entre os homens bons da cidade?
-Como era feita esta escolha?
-Então não sabes? Sabes de tudo e não sabes disto?
-Não, não sei, eu gostaria muito de saber de tudo, mas não sei.
-Bom fui vereador em 1591, na vigência das Ordenações Manuelinas, embora já existissem as Ordenações Filipinas, que ainda não tinha sido promulgada. A esta época eu era já muito rico e influente, fazia parte do que se denominava “homens bons” e, portanto, podia participar da lista para concorrer à vereança. Se fazia uma lista com o nome do homens bons, escolhe-se dos listados três nomes para cada oficio. Tais nomes  são colocados nos pelouros e, no final do ano, estes pelouros são abertos e aí fica-se sabendo quem serão os vereadores, juízes do período.[2]    
- Quais as funções do vereador Sr. Garcia?
- As funções dos vereadores estão descritas nas Ordenações Manuelinas[3], somos responsáveis pelos bens dos concelhos, suas aguas, posturas, comércio,enfim. Mas qual é mesmo o vosso interesse em saber destas coisas?
-Quem sabe quero ser uma vereadora
-kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk, nunca, es mulher e mulheres não participam das listas.
- Saiba Sr. Garcia, que na atualidade as mulheres participam de toda a vida politica dom país, podem ser vereadoras, deputadas, senadoras, Juízas, procuradoras, ou seja: podem exercer qualquer profissão.
-Estás a sonhar, em que época vives? Lugar de mulheres é na cozinha, cuidando da casa e servindo aos seus homens.
- No vosso tempo Sr. Garcia, no vosso tempo.
Notei que o Senhor da Torre estava ficando, como sempre, possesso, pois ele tinha um tic especial, começava a ficar vermelho, a voz ficava alterado e começava a bater o pé no chão, mas o que eu podia faze. Na realidade eu queria mesmo era aborrecê-lo um pouco para ele ir logo embora, afinal eu tinha acabado de chegar e estava cansada.
-Vou-me embora, estás muito ousada hoje, deve ser, se é que é real que fostes ao Reino, o que duvido, a não ser que sejas mesmo uma bruxa, influências dalgumas mulheres da terra.
Achei ótima a decisão do Sr. da Torre de ir embora, ele já estava saindo todo zangado, quando, antes de chegar ao portão, virou-se e disse:
Só escapas da Inquisição porque gosto de ti, apesar das suas loucuras, e ainda vou levar-te para Tatuapara, onde vais viver comigo e me dar os herdeiros que quero.
Confesso que tremi com estas últimas palavras, o fato dele ser espirito e da impossibilidade do seu desejo materializar-se, não me deixava tranquila, muito prelo contrário, cada dia eu ficava muito mais preocupada, quanto pior quando lembrava de Dona Flor e seus dois maridos. Nem queria pensar na hipótese de, ainda que no campo espiritual este homem tocasse em meu corpo, Ave Maria! Jesus é mais!
E fui deitar-me rezando pela alma do Sr, da Torre                                                                                                                                                             



[1] Luis de Camões, Os Lusíadas [1] Canto IV e V do LUSIADA  de Camões. –  Tomo I, Lisboa, Typografia Lacerdina 1805 pgs 154,155 e 162 - A edição citada dos Lusíadas pertence ao acervo pessoal de Vera Correia.
[2] Pelouros eram pequenas bolas de cera onde era introduzido um papel com o nome da pessoa que fora escolhido para vereador ou para Juiz Ordinário. No final de cada ano fazia-se o sorteio e o nome que estivesse na bola sorteada é que era o vereador ou o Juiz no ano seguinte.
[3] Título XLV do Livro I das Ordenações Manuelinas e LXVI  do Livro I das Ordenações Filipinas