terça-feira, 20 de junho de 2017

Quatro décadas depois

Era uma segunda feira como outra qualquer. Fôra para a faculdade como era normal, teria aula de Introdução ao Estudo de Direito, ou Teoria Geral do Direito, com Machado Neto, que, mais uma vez, e com certeza, iria falar de Cossio. Ela não entendia zorra nenhuma, mas ficava atenta e isto lhe dava um imenso cansaço mental. Depois das primeiras duas horas teria aula de Constitucional com o professor Modesto, e não se lembra mais quer aula teria após esta. 
Acabada a jornada da manhã iria para o Terreiro, para a faculdade de medicina, onde, estranhamente, teria aula de Filosofia com o professor Fernando, depois voltaria para casa no seu busu, toda amassada e pronto, estudar um pouco se fosse possível, pois não é nada fácil estudar filosofia e direito em uma casa onde vivem umas dez pessoas. Não há concentração certa, mas tinha de ser assim.
O Universo, entretanto, resolveu meter o dedo na rotina daquela menina, e após as três primeiras horas de aula ela foi à cantina da escola, fora comer um pãozinho delicia, que ela chamava de “pão cebeludo”, por causa dos fiapos de queijo que ficavam em cima deles.
Como sempre, o dominó estava comendo no centro, os jogadores, quase sempre os mesmos, em uma outra mesa o carteado, era assim que os universitários passavam o tempo entre uma aula e outra, ou substituíam as aulas pela brincadeira.
De repente ela ouve alguém dizer que iam fazer um sambão e que o pessoal do samba estava se reunindo. Ela não era desta turma, mas essa segunda feira mudou tudo.  
Já não voltou para a aula, dali mesmo, junto a alguns colegas, que não eram da sua turma, todas eram de turmas anteriores, entretanto ela conhecia a todos por força de   ser amiga de uma outra colega delas, a quem conhecia há muito tempo, antes de ter passado no vestibular.. 
Confusão danada. Quantos carros tem? Quantas pessoas? Cadê os instrumentos?  Quanto se tem de dinheiro?  Uma vaquinha começa, pouco dinheiro, mas suficiente para algumas batidas, e ainda tinha o dinheiro do pobre do “Percutino”, dinheiro de cliente que ele teria de devolver, mas que fora descoberto pelos colegas que não perdoaram. Ela calhou de ir no fusca verde, ela e mais umas seis a sete pessoas, todos encolhidos, mas felizes, jovens vivendo os seus momentos. Acomodou-se exatamente na direção do retrovisor de onde podia ser vista pelo motorista e foi exatamente o que aconteceu. Os olhares se encontraram algumas vezes, em princípio por puro acaso, depois o acaso deu lugar à intenção.. A cada olhada algo ia crescendo, não sabia mesmo o que, mas sentia vontade de fixar aquele olhar, era como um ima, mas era impossível, afinal o olhador era o motorista que não podia se desviar   tanto a sua atenção.
O carro parou em um boteco em Brotas, ali se vendia uma batida, e ficaram ali durante algum tempo. Brotas!, por ironia do destino, começava ali uma, estória de amor. A ironia estava no fato de que, por muito tempo na sua infância, frequentara aquele bairro, onde a sua família, pelo lado paterno, morava, aliás, Brotas devia se chamar Brotalicia (mistura de Brotas com Galícia), pois ali morava uma grande parte da colônia espanhola.(galegos)
Sim, tudo começou ali, olhares, cuidados especiais, gentilezas, mas não parou por aí, e todos embarcaram novamente nos carros. Ela foi convidada a ir na frente, mas declinou, era melhor que uma pessoa mais gorda fosse à frente, ela iria atrás, pois assim mais pessoas entrariam no carro. E assim foi feito. Ela olhava o retrovisor e via olhos que procuravam os seus. Durante todo o percurso foi assim, olhos e sorrisos, enfim, o jogo da sedução continuava e ela estava realmente gostando disso.
Pararam em Itapuã e muito samba num bar que hoje já não existe mais, aliás como o bar, tanta coisa se foi, parece até que nunca existiram.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Viva a Santo Antonio

Estou completamente emocionada, vou caminhando vagarosamente subindo a ladeira que vai me levar até a Sé de Lisboa. Hoje é um dia especial. Lisboa está em festa, aliás, em festas, por onde ando vejo as pessoas sorrindo, felizes. Velhos, pobres, adultos, crianças, homens, mulheres, jovens todos unidos em um só desejo, participar da grande festa da cidade.

As velhotas e velhotes são os mais alegres, parecem que esperam o mês de junho para colocar para fora toda a vontade de viver, mesmo com todos os problemas. Todos saem de suas casas: arraias vão pipocar aqui e ali, em uma praça perto, ou uma praça distante, não interessa, o arraial vai acontecer.
Há uma multidão se encaminhando para a Sé. A rua já está fechada para carros e os passeios já estão cercados; passam poucos carros, somente os carros autorizados, agora é só esperar. Consigo chegar na Sé, depois de ter passado pela Igreja de Santo Antônio de Lisboa, aliás, o responsável por tudo isto que está prestes a acontecer.

Me posiciono o lado da Igreja da Sé, dali vejo quase tudo e ainda tenho a possibilidade de comprar uma imperial. A Igreja está fechada ao público. Os canais de televisão já estão posicionados, há entrevistas e gente querendo aparecer de qualquer maneira. Eu estou no meu espaço, de onde posso ver, sem ser vista, pois não gosto desta exposição, não consigo perceber como o povo faz questão de ficar em frente à câmera.

De repente mais e mais pessoas chegam e ao longe ouço as sirenes dos carros e motos da polícia, que vem abrindo caminho para um cortejo que desconheço. Estou ansiosa, falam tanto deste evento que acontece todos os anos e agora eu tenho a oportunidade de estar aqui e participar dele, que estou mesmo curiosa e ansiosa. As pessoas vibram, Ônibus chegam, muitos deles, de onde descem pessoas vestidas a rigor, mulheres de longos, cabelos arrumados, homens de terno, crianças, enfim, todos estão arrumados para uma grande solenidade. Alguém junto de mim explica que são os convidados. Eles saem dos ônibus e adentram à catedral da Sé, somente eles podem entrar. O público tem de ficar do lado de fora, a Igreja não comportaria a multidão que se aglomera para ver tudo.
De repente um buzinaço, olho para a ladeira e vejo  um carro lindo se aproximando, visualizo um Rolls Royce, Que maravilha! A seguir mais um carro antigo, depois mais outro, e outro, e outro, todos trazendo as noivas.
Eles vão parar em frente a catedral e deles saem noivas felizes, radiantes, cada uma com o sorriso mais largo que a outra, afinal elas foram escolhidas em meio há muitas que se candidataram a este casamento que é feito todos os anos e patrocinado pela Prefeitura de Lisboa. Este ano foram dezesseis, n ão sei se o número é fixo.

O público delira, é mesmo fantástico poder participar disto e ver tudo tão de perto.

As noivas entram, a televisão filma, entrevistas, etc. Todos participam e estão mesmo muito felizes, a gente pode sentir que aquilo não é ´falso.

As noivas estão lá dentro. A rua continua fechada e o povo ali esperando a saída delas. A cerimônia demora. O sol está forte, mas ninguém arreda o pé. Já estou na quarta ou quinta cerveja. O xixi já começa com as suas ameaças. Tenho de procurar um local para desaguar. Olho em volta. Não vejo nada que possa parecer com uma casa de banho. Tenho de arrumar um lugar, senão vou fazer feio. Tenho de perder o meu lugar. Desço a ladeira até a Igreja de Santo Antônio, ali tem um restaurante que tem um dos melhores, se não o melhor, pastel de bacalhau de Lisboa. Vou ter que comer alguns (eles são pequeninos) e aproveitar e ir até o sanitário, apesar da vergonha que tenho de fazer isto, mas não dá para aguentar.  É o que faço. Tomo, apesar da vontade intensa de ir ao banheiro, outra imperial, tinha de justificar o “mijador”, após a segunda imperial tomo coragem e vou ao sanitário. 

Um alivio total e pronta para mais dez imperiais e para ver a saída das noivas, que agora começam a aparecer à porta da igreja.

Elas saem mais felizes do que entraram, cada uma com o seu séquito parentes, que ordeiramente se dirigem aos seus ônibus já posicionados.

A esta altura a coisa fica monótona e eu resolvo voltar ao restaurante dos pasteis de bacalhau. 

Descubro que tem moela e peço uma, sento à mesa, a única que sobrava, só tem dois lugares, um deles divido com um estranho, fazer o que? Tomo mais umas duas imperiais e saio descendo a ladeira para alcançar a rua Augusta, já são quase três horas da tarde. Lisboa faz um calor imenso.  Caminho pela augusta e chego ao Rossio. A cidade vibra, v ou para os lados da praça da figueira de lá vou entrar pela mouraria a dentro, vi umas barracas armadas em um larguinho eu fica após entrada do restaurante do Zé da Mouraria.

Bingo, já tem movimento. Aquilo ali vai pegar fogo mais tarde, a sardinhada  vai comer no centro, vai ter dança e tudo mais. Vejo, defronte onde sentei, uma mesa enorme em frente a uma casinha com duas janelas e uma portinha, e de cara associei à casa da Mariquinhas da qual a Amália Rodrigues fala na música. Há na casa cortininhas de renda, lindas por sinal. Há flores na jardineira que fica na janela e há, ao lado da mesa grande uma churrasqueira que começa a trepidar.  À mesa há senhoras,senhores e crianças: Ouço um sotaque conhecido,  e vejo que naquela mesa estão uns seis ou sete brasileiros, integrados à comunidade eles curtem  como os portugueses  a festa de Santo Antônio.

Fico ali, bebo, como chouriço assado, converso com os patrícios. Sei que vou ter saudades deste dia. 
Logo mais vou para a Avenida da Liberdade ver o desfile das marchas.  Marcha da Mouraria, Marcha de Alfama e muitas outras. Penso que Alfama ganha. Vamos ver, o importante e participar, sorrir, ver a alegria e é assim que oi dia 13 vai chegar..


Viva a Santo Antônio!