quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Garcia D´Avila VIII - O naufrágio da Nau Santa Clara

Praia do Piruí-Arembepe
Eu andava muito preocupada com as aparições o Sr. D´Ávila, o homem não tinha limite e estava em todos os lugares, agora ele já não escolhia a minha casa, estava em qualquer lugar que eu estivesse. Hoje, especialmente hoje, sai para andar pela praia, faço isto sempre, acordo cedo e vou caminhar, vou até o hotel que fica lá no final da praia do Piruí em Arembepe, já chegando  num condomínio de luxo que tem por ali, por trás da Milenium, antiga Tibrás. Vou pen sando em mil coisas, inclusive no próprio Sr. D´ Ávila, mas não imaginei que ele apareceria ali, na praia.
- Estás a andar nua? Que tipo de roupa é este que vestes? Não é roupa de índia, não é roupa de brancos, o que é isto? Não tens vergonhas de mostrar assim os seus pudores?
Reconheci de logo aquela voz, aliás só o Sr. D´Ávila é que falaria comigo assim.  Olhei para os lados e lá estava ele guardando uma certa distância de mim, que estava andando bem à beira d´água. Acho que ele não queria se molhar,
Pôxa Sr. D´Ávila, nem aqui o senhor me deixa em paz?
Arembepe
-Por que eu a deixaria em paz? Não sei porque ficas tão incomodada com a minha presença, devias gostar muito dela, porque es tão sozinha, nunca vejo-te com alguém, estás sempre so naquela casa, só vejo-te em companhia de livros, e daquela madeira preta, pareces que não fazes nada além disto na vida.
Dei risada e continuei andando e olhando o Sr. Garcia se livrado das ondas que insistiam em quebrar na areia bem próximo de onde ele caminhava a seguir-me.  Era muito engraçado, ele todo vestido com suas roupas  de “nobre” tentando se equilibrar na areia.
- Sabias  que houve um naufrágio aqui nesta zona?
-Ouvi falar, mas não sei de muita coisa a respeito.
- A nau foi a “Santa Clara, que ia para a Índia , estando sobre amarra, e foi tanto tempo que sobreveio, que a fez ir à caceia, que foi forçado cortarem-lhe o mastro grande, o que não bastou para se remedear, e os oficiais da nau, desconfiados da salvação, sendo meia noite, deram à vela do traquete para ancorarem em terra e salvaram aas vidas, o que lhe sucedeu pelo contrário, porque sendo esta costa toda a limpa, afastada dos arrecifes, foram varar por cima de uma laje, não se sabendo outra de Pernambuco até a Bahia, a que laje está um tiro de falcão ao mar dos arrecifes onde se esta nau fez em pedaços e morreram neste naufrágio passante de trezentos homens com Luis de Alter de Andrade, que ia por capitão” (SOARES, 1587:71)[1]
- Foi mesmo Sr. Garcia, não sabia que tinha sido nesta proporção, alguém aqui tinha me falado de um naufrágio por estas bandas, mas ninguém tem muita informação a respeito.
- Pois é, morreu muita gente e nada se pode fazer
- Sr Garcia, não se faça de inocente, todo mundo sabe que o Sr mandou os índios mergulharem para pegar o ouro que estava na nau, não só o ouro como pedras preciosas, alguns até afirmam que toda a sua riqueza foi proveniente do que o senhor encontrou na nau.
Arembepe
- Ah sim, eu que não trabalhasse muito e multiplicasse o meu gado, os meus escravos, não fizesse crescer as minhas olarias e não construísse os meus currais e embarcações, para ver se eu tinha algum dinheiro, ou melhor, tinha enriquecido.  Todavia, o vulgo diz o que quer.
- Sr. Garcia  quando se deu este naufrágio?
- Em 1573.
O Frei Salvador também falou deste naufrágio.
-E o que foi que ele disse a respeito, falou em meu nome?
-O que é Sr. Garcia, tá com medo de que, o senhor não disse que a estória do tesouro é  conversa do vulgo?
-É sim, mas diga-me lá o que o Frei Salvador escreveu.
“Também neste tempo deu a nau Santa Clara indo para a Índia, à costa no rio Arembepe à meia-noite, dando por cima de uma laje, um tiro de falcão do recife, e se perderam  mais de trezentos homens, que nela iam com o capitão  Luiz de Andrade.
Dista o rio donde  nau se perdeu cinco ou seis léguas desta cidade, e assim acudiu logo lá muita gente e se tirou do fundo do mar muito dinheiro de mergulho, de que se pagaram per si os búzios, e nadadores, e muitos que nada nadaram.  A isto acudiu o bispo com a excomunhão da Bula da Ceia contra  os que tomam os bens dos naufrágios; não se aproveitou alguma coisa, só sei, que ouvi dizer a um, dali a muitos anos, que aquele fora o tempo dourado para esta Bahia pelo muito dinheiro que nela corria, e muitos índios, que desceram do sertão, e bem dizia dourado e não de ouro, porque para  estes outras coisas se requeriam’ (FREI VICENTE DO SALVADOR, pp65-66).[2]

-Estás a ver: este Frei Salvador não disse nada a respeito de mim.

-Sim, ele não citou o seu nome, mas todos sabem que o senhor foi quem mandou os índios mergulharem para catar o tesouro

-Já disse-te disse que isto é conversa mole! Então a nau vai a pique em 1573, depois de 24 anos que estou cá, e foi o ouro que tirei dela é que me deixou rico?  Em 1573 eu já tinha meu gado, minhas olarias, minha casa em Tatuapara, meus currais, era vereador, fazia parte da fidalguia, era um dos “homens bons da cidade”, enfim, eu já estava rico.
- Começo notar que o Sr. Garcia estava a ficar nervoso; é que ele efetivamente não gostava de ser contrariado.
 Eu continuava a falar do naufrágio, e ele parecia estar mais preocupado em não se molhar com as ondas de que com qualquer outra coisa, erar muito engraçado vê-lo correr das ondas, porque eu ficava me perguntando, será que espirito se molha?
Era já difícil para mim achar que o homem da Torre era só um espírito, é que, para mim, ele era tão real, tão palpável, embora eu nunca tenha, sequer me atrevido a tocá-lo; primeiro não saberia a sua reação, aliás garanhão como ele era e com o que ele já tinha dito-me a respeito de me levar para Tatuapara, todo cuidado era pouco: segundo porque eu tinha medo mesmo, sei lá, se eu pegasse nele e sentisse mesmo ele vivo, real! Acho que eu teria uma sincope.
-  Diga-me lá homem, quanto de ouro foi tirado do navio, e é verdade mesmo que o Bispo lhe excomungou?
Arembepe
-Então achar que o Bispo ia me excomungar? Eu que  vivia ajudando as autoridades, recebendo visitadores na minha, fazendo doações ao clero, permitindo que aldeamentos fossem instalados nas minhas terras, ia ser excomungado? Mais fácil seria  mandar o Bispo embora.
-Tenho uma curiosidade grande para saber como o Sr. Tornou-se vereador
- Por que?  Qual o seu interesse neste assunto?
-Bom Sr. Garcia, eu queria saber mesmo como foi, porque na atualidade um vereador é eleito pelo povo.
-Kkkkk, é o que? Eleito pelo povo! Estás parva ou o que para dizer uma barbaridade desta? Então o povo sabe lá de nada, ainda mais aqui nesta terra onde quem não é índio, é mameluco, quem não é mameluco é negro escravo, e quem não é nada disto são portugueses que vieram para cá como degradados, gente da gentalha de Portugal.
-Que coisa retrógada senhor Garcia, e as pessoas que vieram para ajudar na construção e povoamento da cidade, não conta?
Uma meia dúzia de profissionais especializados.
-E as mulheres Sr. Garcia, as mulheres que para cá vieram, elas não contam?
- Não, não contam, além do mais, algumas mulheres que vieram parar aqui também vieram por conta do cumprimento da pena de degredo. Algumas eram feiticeiras e foram condenadas pelo Santo Oficio, quando aqui foi instalado em 1591, a exemplo de Maria Violante, Arde-lhe o Rabo, outras era taberneiras, mundanas. As que vieram com seus maridos, pouco ou quase nada poderiam fazer, a não ser cuidar da casa e dos criados, as vezes com eles se confundindo.
-Arde-lhe o Rabo? Que alcunha é esta? Por que a chamavam assim?
Não sei, não a conheço, só ouvi falar.
Conte-me mais Sr. Garcia s ore a vereança, como o senhor foi escolhido
 Como me tornei vereador! Ora então eu não sou um dos homens mais ricos destas terras, não faço parte dos “homens bons”[3] desta terra! Não tenho interesse em fiscalizar as coisas de mais perto e de fiscalizar os atos do Governador e demais administradores?
- Vamos Sr Garcia, diga-me lá como foi. Acho muito interessante que o sr tenha sido vereador com tantos interesses que o senhor tinha a defender em benefício próprio.
-Senti, olhando-o de soslaio, que êle não gostou muito deste comentário, também vi que, apesar de não ter gostado tinha um sorriso maroto nos lábios.
Piruí - Arembepe
Sei que o Sr. E o Gabriel Soares eram vereadores.
Estás muito bem informada, isto mesmo, eu o Gabriel éramos vereadores na época.
O que um vereador fazia mesmo?
-Olhe eu estou muito cansado, vou-me agora.
Dizendo isto, simplesmente desapareceu, e eu terminei a minha caminhada pela praia, agradecendo a Deus que não tinha ninguém por ali, pois, se tivesse alguma alma por aquelas bandas,certamente constataria o que todos dizem de mim, que sou maluca e que estou piorando, pois  agora dei para falar sozinha, conversando com uma pessoa imaginária.







[1] SOARES. Grabriel S. Tratado Descritivo do Brasil, 1587, pg 71
[2] Frei Vicente do Salvador, Historia do Brasil, p. 65
[3] Homens bons – homens que participavam da vida pública, homens ricos, livres, proprietários, de sangue limpo, no Brasil, os senhores de engenho, os grandes proprietários de terras, os donos dos gados.

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