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Praia do Piruí-Arembepe |
- Estás a andar nua? Que tipo de
roupa é este que vestes? Não é roupa de índia, não é roupa de brancos, o que é
isto? Não tens vergonhas de mostrar assim os seus pudores?
Reconheci de logo aquela voz,
aliás só o Sr. D´Ávila é que falaria comigo assim. Olhei para os lados e lá estava ele guardando
uma certa distância de mim, que estava andando bem à beira d´água. Acho que ele
não queria se molhar,
Pôxa Sr. D´Ávila, nem aqui o
senhor me deixa em paz?
Arembepe |
Dei risada e continuei andando e
olhando o Sr. Garcia se livrado das ondas que insistiam em quebrar na areia bem
próximo de onde ele caminhava a seguir-me. Era muito engraçado, ele todo vestido com suas
roupas de “nobre” tentando se equilibrar
na areia.
- Sabias que houve um naufrágio aqui nesta zona?
-Ouvi falar, mas não sei de muita
coisa a respeito.
- A nau foi a
“Santa Clara, que ia para a Índia , estando sobre amarra, e foi tanto tempo que
sobreveio, que a fez ir à caceia, que foi forçado cortarem-lhe o mastro grande,
o que não bastou para se remedear, e os oficiais da nau, desconfiados da salvação,
sendo meia noite, deram à vela do traquete para ancorarem em terra e salvaram
aas vidas, o que lhe sucedeu pelo contrário, porque sendo esta costa toda a
limpa, afastada dos arrecifes, foram varar por cima de uma laje, não se sabendo
outra de Pernambuco até a Bahia, a que laje está um tiro de falcão ao mar dos
arrecifes onde se esta nau fez em pedaços e morreram neste naufrágio passante
de trezentos homens com Luis de Alter de Andrade, que ia por capitão” (SOARES,
1587:71)[1]
- Foi mesmo Sr. Garcia, não sabia
que tinha sido nesta proporção, alguém aqui tinha me falado de um naufrágio por
estas bandas, mas ninguém tem muita informação a respeito.
- Pois é, morreu muita gente e
nada se pode fazer
- Sr Garcia, não se faça de
inocente, todo mundo sabe que o Sr mandou os índios mergulharem para pegar o
ouro que estava na nau, não só o ouro como pedras preciosas, alguns até afirmam
que toda a sua riqueza foi proveniente do que o senhor encontrou na nau.
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Arembepe |
- Sr. Garcia quando se deu este naufrágio?
- Em 1573.
O Frei Salvador também falou
deste naufrágio.
-E o que foi que ele disse a
respeito, falou em meu nome?
-O que é Sr. Garcia, tá com medo
de que, o senhor não disse que a estória do tesouro é conversa do vulgo?
-É sim, mas diga-me lá o que o
Frei Salvador escreveu.
“Também neste tempo deu a nau Santa
Clara indo para a Índia, à costa no rio Arembepe à meia-noite, dando por cima
de uma laje, um tiro de falcão do recife, e se perderam mais de trezentos homens, que nela iam com o
capitão Luiz de Andrade.
Dista o rio donde nau se perdeu cinco ou seis léguas desta
cidade, e assim acudiu logo lá muita gente e se tirou do fundo do mar muito
dinheiro de mergulho, de que se pagaram per si os búzios, e nadadores, e muitos
que nada nadaram. A isto acudiu o bispo
com a excomunhão da Bula da Ceia contra
os que tomam os bens dos naufrágios; não se aproveitou alguma coisa, só
sei, que ouvi dizer a um, dali a muitos anos, que aquele fora o tempo dourado
para esta Bahia pelo muito dinheiro que nela corria, e muitos índios, que
desceram do sertão, e bem dizia dourado e não de ouro, porque para estes outras coisas se requeriam’ (FREI
VICENTE DO SALVADOR, pp65-66).[2]
-Estás a ver: este Frei Salvador não
disse nada a respeito de mim.
-Sim, ele não citou o seu nome, mas
todos sabem que o senhor foi quem mandou os índios mergulharem para catar o
tesouro
-Já disse-te disse que isto é conversa
mole! Então a nau vai a pique em 1573, depois de 24 anos que estou cá, e foi o
ouro que tirei dela é que me deixou rico?
Em 1573 eu já tinha meu gado, minhas olarias, minha casa em Tatuapara,
meus currais, era vereador, fazia parte da fidalguia, era um dos “homens bons
da cidade”, enfim, eu já estava rico.
- Começo notar que o Sr. Garcia estava
a ficar nervoso; é que ele efetivamente não gostava de ser contrariado.
Eu continuava a falar do naufrágio, e ele
parecia estar mais preocupado em não se molhar com as ondas de que com qualquer
outra coisa, erar muito engraçado vê-lo correr das ondas, porque eu ficava me
perguntando, será que espirito se molha?
Era já difícil para mim achar que
o homem da Torre era só um espírito, é que, para mim, ele era tão real, tão
palpável, embora eu nunca tenha, sequer me atrevido a tocá-lo; primeiro não
saberia a sua reação, aliás garanhão como ele era e com o que ele já tinha
dito-me a respeito de me levar para Tatuapara, todo cuidado era pouco: segundo
porque eu tinha medo mesmo, sei lá, se eu pegasse nele e sentisse mesmo ele
vivo, real! Acho que eu teria uma sincope.
-
Diga-me lá homem, quanto de ouro foi tirado do navio, e é verdade mesmo
que o Bispo lhe excomungou?
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Arembepe |
-Tenho uma curiosidade grande
para saber como o Sr. Tornou-se vereador
- Por que? Qual o seu interesse neste assunto?
-Bom Sr. Garcia, eu queria saber
mesmo como foi, porque na atualidade um vereador é eleito pelo povo.
-Kkkkk, é o que? Eleito pelo
povo! Estás parva ou o que para dizer uma barbaridade desta? Então o povo sabe
lá de nada, ainda mais aqui nesta terra onde quem não é índio, é mameluco, quem
não é mameluco é negro escravo, e quem não é nada disto são portugueses que
vieram para cá como degradados, gente da gentalha de Portugal.
-Que coisa retrógada senhor
Garcia, e as pessoas que vieram para ajudar na construção e povoamento da
cidade, não conta?
Uma meia dúzia de profissionais
especializados.
-E as mulheres Sr. Garcia, as
mulheres que para cá vieram, elas não contam?
- Não, não contam, além do mais,
algumas mulheres que vieram parar aqui também vieram por conta do cumprimento
da pena de degredo. Algumas eram feiticeiras e foram condenadas pelo Santo
Oficio, quando aqui foi instalado em 1591, a exemplo de Maria Violante, Arde-lhe
o Rabo, outras era taberneiras, mundanas. As que vieram com seus maridos, pouco
ou quase nada poderiam fazer, a não ser cuidar da casa e dos criados, as vezes
com eles se confundindo.
-Arde-lhe o Rabo? Que alcunha é
esta? Por que a chamavam assim?
Não sei, não a conheço, só ouvi
falar.
Conte-me mais Sr. Garcia s ore a
vereança, como o senhor foi escolhido
Como me tornei vereador! Ora então eu não sou
um dos homens mais ricos destas terras, não faço parte dos “homens bons”[3]
desta terra! Não tenho interesse em fiscalizar as coisas de mais perto e de
fiscalizar os atos do Governador e demais administradores?
- Vamos Sr Garcia, diga-me lá
como foi. Acho muito interessante que o sr tenha sido vereador com tantos
interesses que o senhor tinha a defender em benefício próprio.
-Senti, olhando-o de soslaio, que
êle não gostou muito deste comentário, também vi que, apesar de não ter gostado
tinha um sorriso maroto nos lábios.
Estás muito bem informada, isto
mesmo, eu o Gabriel éramos vereadores na época.
O que um vereador fazia mesmo?
-Olhe eu estou muito cansado,
vou-me agora.
Dizendo isto, simplesmente
desapareceu, e eu terminei a minha caminhada pela praia, agradecendo a Deus que
não tinha ninguém por ali, pois, se tivesse alguma alma por aquelas bandas,certamente
constataria o que todos dizem de mim, que sou maluca e que estou piorando, pois
agora dei para falar sozinha,
conversando com uma pessoa imaginária.
[1]
SOARES. Grabriel S. Tratado Descritivo do Brasil, 1587, pg 71
[2]
Frei Vicente do Salvador, Historia do Brasil, p. 65
[3]
Homens bons – homens que participavam da vida pública, homens ricos, livres,
proprietários, de sangue limpo, no Brasil, os senhores de engenho, os grandes
proprietários de terras, os donos dos gados.
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