sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Uma nova visita a Lisboa




Lisboa
Estou cá em Lisboa. A cidade está completamente renovada: muitos bares, restaurantes, museus novos, tudo muito bonito. Inúmeras casas sendo remodeladas, sempre com o cuidado de manter a fachada antiga, para não modificar  a fantástica arquitetura. Do Cais do Sodré até a Praça do Comércio o passeio pelo Tejo é fantástico. Apesar do frio, o sol brilha, e as pessoas estão sentadas nas escadarias feitas exatamente para isto, penso eu, aproveitado o mínimo de calorzinho que o sol oferece.
Chego à Praça do Comércio e do Tejo observo o Arco da Rua Augusta. Fenomenal, é lindo, não só lindo, passa para todos um sentimento de poder, uma representação muito grande do poderio.  A rua Augusto com as suas pedras portuguesas que brilham tanto, penso sempre que por muito pisadas, esta apinhada de gente. Não são portugueses, são turistas de muitos lugares, inclusive do Brasil, aliás, muitos são mesmo brasileiros, o que me desperta para questionamento de como vem assim aos montes, estando o Brasil a passar por tantas dificuldades económicas e o euro alcançando a casa  dos  R$4.30. Não sei o que fazem para arrumar dinheiro, eu só estou aqui porque pagaram a  passagem  e estou na casa da Vera, caso contrário estaria  lembrando de Portugal e  chorando de saudades sem nada poder fazer.   
Rio Tejo
Apesar de saber que esta invasão turística é boa para o país, sinceramente, não gosto  dela, porque  ela me impede de ver a minha Lisboa como gosto, andando solitária pelos becos e escadarias da cidade, agora, em cada canto, há uma tasca e lá estão os turistas aos montes, gargalhando, falando alto, maculando a paz de cada recanto  desta  bela e altiva cidade. O Tejo, Ah o meu Tejo! parece passar mais depressa, possivelmente para não ver a quantidade de gente que fica a olhar para ele, talvez, como eu, a chorar mágoas e a pedir-lhe coisas, além de  pisar sobre a sua amada, sem qualquer respeito.
Farol em Cascais
Ainda ontem estive em Cascais e, no trem, vi cinco jovens, acho que alemães; tenho certeza que no país deles jamais fariam isto, e eles estavam sentados  nas poltronas virados para o corredor, ou seja, as pernas passadas por cima dos braços das poltronas; fiquei pedindo a Deus que   um daqueles fiscais bem chatos entrasse na carruagem, mas, não apareceu nenhum. Eles saíram no Estoril, estavam todos quatro rapazes, porque havia uma mulher no meio deles,  com uma garrafa de cerveja na mão, e já pareciam bem alterados.
Enquanto aguardava o trem na estação de Oeiras vi um cidadão que estava sentado com as pernas esticadas, ou seja,  as pernas empatando as pessoas que estavam passando, e o que era pior: se alguém tropeçasse nas pernas dele cairia direito nos trilhos do trem.  Um senhor idoso que ia passado falou para o rapaz encolher as pernas, e o jovem simplesmente destratou o velho que estava reclamando da coisa mais racional possível para um ser humano normal. Fiquei observando a cena : o velho  refilou muito, mas o jovem só tirou a perna na hora que o comboio chegou. O pior disto é que no trem notei que o jovem era português e não um turista.
Igreja de Fátima
Cheguei em casa com vontade de escrever de Portugal e para Portugal, mas como ia me emocionar muito  não o fiz, o faço agora, aproveitando a tranquilidade da casa da Vera, no nono andar de um prédio em Oeiras, de onde posso ver umas boa parte da cidade e, ao longe, o Castelo dos Mouros em Sintra, vendo ainda todo o contorno da serra. Sim, gosto desta paz, do lugar, da vista)embora preferisse ver o Tejo, claro), penso que poderia viver aqui para sempre; claro que não nas circunstâncias em que me encontro, mas  viver mesmo, morar, estar aqui para sempre para poder andar por Lisboa vagarosamente para vê-la como deve de ser. Sair sem ter qualquer hora para voltar, sem estar preocupada em ir para outro lugar, porque tem de ser tudo rápido. Queria sentir Lisboa minuto a minuto, desfrutar do Tejo, ir com calma à Merendinha do Arco, encontrar com os meus “velhos amigos”. Ah! Mas como isto está distante de mim, assim tenho de correr mesmo, ir aonde quero, e são tantos os lugares!,  com tempo  marcado.
Ainda não fui a Belém, nem sei se irei, mas como aquele sitio é tão vivo dentro de mim, e não só de mim, como dos portugueses e mui particularmente, dos brasileiros em geral, vou declinar mesmo, entretanto, só a lembrança de Belém me transporta para  um outro mundo, um outro tempo, aquele dos descobrimentos, e eu fico pensando como seria a partida daqueles homens, que deixavam as suas esposas, mães, pais, filhos, para se aventurarem em “mares antes nunca d´antes navegados[1]”. Devia ser horrível para todos. O sentimento de pavor ao se pensar no não retorno dos entes queridos devia ser uma tristeza imensa.
Por um momento lembro do diabo do Sr. Garcia Dávila, e até rezo para que ele não me apareça aqui, mas não posso deixar de pensar que ele era um homem muito do estranho; então será que ninguém chorou a sua partida? Por que diabos ele não fala disto nas suas aparições?  Não é possível que ele não tenha deixado ninguém por aqui. Será que nem mesmo a senhora sua mãe se importou?
Fico pensando nisto e vou me encaminhando para  o Cais do Sodré, porque estou voltando para casa já,  desisti de ficar em Lisboa, tá uma confusão danada de gente para lá e para cá. Lembro-me que do comboio posso ver a Torre de Belém nitidamente, é um belo passeio inclusive, ir de comboio do Cais Sodré a Cascais, uma delícia mesmo. Meu pensamento continua no tempo dos descobrimentos, pois dá uma vontade danada de chorar, parece que participei daquela história e vi alguém parti para não mais voltar, um português bigodudo que ia casar comigo, mas foi descobrir novas terras e cá deixou-me, o que me faz vim todos os dias no cais para esperar o seu retorno. Dou risada com o pensamento e percebo que estou reproduzindo, em mim, um pedaço da música  que a Carminho canta. “Na beira do cais quem me vê já me conhece, sou aquela que não esquece que é do mar que tu virás”; dou risada sozinha, quase gargalho: Tá doida mulher! Penso comigo.
A Torre está bem nítida a meu lado e chego a ouvir os suspiros de dor, os soluços abafados com lenços brancos,  que acenam para aqueles que, sem olhar para trás, para evitarem maior sofrimento ainda, e para também esconderem as lágrimas, por terem de demonstrar a firmeza, a macheza dos homens portugueses,  embarcam nas naus que estão a se preparar para partir, e isto me leva, outra vez a Camões :
“A gente da cidade aquelle dia
(Huns por amigos, outros por parentes
Outros por ver somente) concorria,
Saudosos na vista, e descontentes,
E nós, com a virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes,
Em procissão solemne a Deos orando,
Para os batéis viemos caminhando.[2]
Em tão longo caminho, e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavam
As mulheres com choro piedoso, Os homens com suspiros que arrancavam,
Mãis, esposas, irmaõs, que o temeroso, Amor mais confia, acrescentavam
A desesperação o frio medo
De já não nos tornar a ver tão cedo[3]

      Já a vista pouco a pouco se desterra
      Daquelles  patrios montes que ficavam,
      Ficava o charo Tejo e a fresca serra
      De Cintra  e nella os olhos se alongavam
      Ficava-nos também na amada terra
     O coração que as mágoas la deixavam
     e já depois que toda se escondeo
     Não vimos mais, em fim, que o mar, e o Ceo"[4]  

Lágrimas escorrem por minha face, felizmente estou chegando em Oeiras. Saio do comboio e, como uma mágica, todo este pensamento se esfuma e sigo para a casa da Vera, como Camnões vou ver, ainda que por hoje, a Serra de Sintra.















[1] Canto Primeiro I do LUSIADA  de Camões. – Lusiadas de Luis de Camoens, Tomo I, Lisboa, Typografia Lacerdina 1805 pg 1.
[2] Idem,  Canto IV LXXXVIII, pg.154
[3] Ibdem  Canto IV LXXXIX pg 155
[4] Ibdem,  Canto Quinto III g.162, 
OBS - A edição citada dos Lusíadas pertence ao acervo pessoal de Vera Correia.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Garcia D´Avila VIII - O naufrágio da Nau Santa Clara

Praia do Piruí-Arembepe
Eu andava muito preocupada com as aparições o Sr. D´Ávila, o homem não tinha limite e estava em todos os lugares, agora ele já não escolhia a minha casa, estava em qualquer lugar que eu estivesse. Hoje, especialmente hoje, sai para andar pela praia, faço isto sempre, acordo cedo e vou caminhar, vou até o hotel que fica lá no final da praia do Piruí em Arembepe, já chegando  num condomínio de luxo que tem por ali, por trás da Milenium, antiga Tibrás. Vou pen sando em mil coisas, inclusive no próprio Sr. D´ Ávila, mas não imaginei que ele apareceria ali, na praia.
- Estás a andar nua? Que tipo de roupa é este que vestes? Não é roupa de índia, não é roupa de brancos, o que é isto? Não tens vergonhas de mostrar assim os seus pudores?
Reconheci de logo aquela voz, aliás só o Sr. D´Ávila é que falaria comigo assim.  Olhei para os lados e lá estava ele guardando uma certa distância de mim, que estava andando bem à beira d´água. Acho que ele não queria se molhar,
Pôxa Sr. D´Ávila, nem aqui o senhor me deixa em paz?
Arembepe
-Por que eu a deixaria em paz? Não sei porque ficas tão incomodada com a minha presença, devias gostar muito dela, porque es tão sozinha, nunca vejo-te com alguém, estás sempre so naquela casa, só vejo-te em companhia de livros, e daquela madeira preta, pareces que não fazes nada além disto na vida.
Dei risada e continuei andando e olhando o Sr. Garcia se livrado das ondas que insistiam em quebrar na areia bem próximo de onde ele caminhava a seguir-me.  Era muito engraçado, ele todo vestido com suas roupas  de “nobre” tentando se equilibrar na areia.
- Sabias  que houve um naufrágio aqui nesta zona?
-Ouvi falar, mas não sei de muita coisa a respeito.
- A nau foi a “Santa Clara, que ia para a Índia , estando sobre amarra, e foi tanto tempo que sobreveio, que a fez ir à caceia, que foi forçado cortarem-lhe o mastro grande, o que não bastou para se remedear, e os oficiais da nau, desconfiados da salvação, sendo meia noite, deram à vela do traquete para ancorarem em terra e salvaram aas vidas, o que lhe sucedeu pelo contrário, porque sendo esta costa toda a limpa, afastada dos arrecifes, foram varar por cima de uma laje, não se sabendo outra de Pernambuco até a Bahia, a que laje está um tiro de falcão ao mar dos arrecifes onde se esta nau fez em pedaços e morreram neste naufrágio passante de trezentos homens com Luis de Alter de Andrade, que ia por capitão” (SOARES, 1587:71)[1]
- Foi mesmo Sr. Garcia, não sabia que tinha sido nesta proporção, alguém aqui tinha me falado de um naufrágio por estas bandas, mas ninguém tem muita informação a respeito.
- Pois é, morreu muita gente e nada se pode fazer
- Sr Garcia, não se faça de inocente, todo mundo sabe que o Sr mandou os índios mergulharem para pegar o ouro que estava na nau, não só o ouro como pedras preciosas, alguns até afirmam que toda a sua riqueza foi proveniente do que o senhor encontrou na nau.
Arembepe
- Ah sim, eu que não trabalhasse muito e multiplicasse o meu gado, os meus escravos, não fizesse crescer as minhas olarias e não construísse os meus currais e embarcações, para ver se eu tinha algum dinheiro, ou melhor, tinha enriquecido.  Todavia, o vulgo diz o que quer.
- Sr. Garcia  quando se deu este naufrágio?
- Em 1573.
O Frei Salvador também falou deste naufrágio.
-E o que foi que ele disse a respeito, falou em meu nome?
-O que é Sr. Garcia, tá com medo de que, o senhor não disse que a estória do tesouro é  conversa do vulgo?
-É sim, mas diga-me lá o que o Frei Salvador escreveu.
“Também neste tempo deu a nau Santa Clara indo para a Índia, à costa no rio Arembepe à meia-noite, dando por cima de uma laje, um tiro de falcão do recife, e se perderam  mais de trezentos homens, que nela iam com o capitão  Luiz de Andrade.
Dista o rio donde  nau se perdeu cinco ou seis léguas desta cidade, e assim acudiu logo lá muita gente e se tirou do fundo do mar muito dinheiro de mergulho, de que se pagaram per si os búzios, e nadadores, e muitos que nada nadaram.  A isto acudiu o bispo com a excomunhão da Bula da Ceia contra  os que tomam os bens dos naufrágios; não se aproveitou alguma coisa, só sei, que ouvi dizer a um, dali a muitos anos, que aquele fora o tempo dourado para esta Bahia pelo muito dinheiro que nela corria, e muitos índios, que desceram do sertão, e bem dizia dourado e não de ouro, porque para  estes outras coisas se requeriam’ (FREI VICENTE DO SALVADOR, pp65-66).[2]

-Estás a ver: este Frei Salvador não disse nada a respeito de mim.

-Sim, ele não citou o seu nome, mas todos sabem que o senhor foi quem mandou os índios mergulharem para catar o tesouro

-Já disse-te disse que isto é conversa mole! Então a nau vai a pique em 1573, depois de 24 anos que estou cá, e foi o ouro que tirei dela é que me deixou rico?  Em 1573 eu já tinha meu gado, minhas olarias, minha casa em Tatuapara, meus currais, era vereador, fazia parte da fidalguia, era um dos “homens bons da cidade”, enfim, eu já estava rico.
- Começo notar que o Sr. Garcia estava a ficar nervoso; é que ele efetivamente não gostava de ser contrariado.
 Eu continuava a falar do naufrágio, e ele parecia estar mais preocupado em não se molhar com as ondas de que com qualquer outra coisa, erar muito engraçado vê-lo correr das ondas, porque eu ficava me perguntando, será que espirito se molha?
Era já difícil para mim achar que o homem da Torre era só um espírito, é que, para mim, ele era tão real, tão palpável, embora eu nunca tenha, sequer me atrevido a tocá-lo; primeiro não saberia a sua reação, aliás garanhão como ele era e com o que ele já tinha dito-me a respeito de me levar para Tatuapara, todo cuidado era pouco: segundo porque eu tinha medo mesmo, sei lá, se eu pegasse nele e sentisse mesmo ele vivo, real! Acho que eu teria uma sincope.
-  Diga-me lá homem, quanto de ouro foi tirado do navio, e é verdade mesmo que o Bispo lhe excomungou?
Arembepe
-Então achar que o Bispo ia me excomungar? Eu que  vivia ajudando as autoridades, recebendo visitadores na minha, fazendo doações ao clero, permitindo que aldeamentos fossem instalados nas minhas terras, ia ser excomungado? Mais fácil seria  mandar o Bispo embora.
-Tenho uma curiosidade grande para saber como o Sr. Tornou-se vereador
- Por que?  Qual o seu interesse neste assunto?
-Bom Sr. Garcia, eu queria saber mesmo como foi, porque na atualidade um vereador é eleito pelo povo.
-Kkkkk, é o que? Eleito pelo povo! Estás parva ou o que para dizer uma barbaridade desta? Então o povo sabe lá de nada, ainda mais aqui nesta terra onde quem não é índio, é mameluco, quem não é mameluco é negro escravo, e quem não é nada disto são portugueses que vieram para cá como degradados, gente da gentalha de Portugal.
-Que coisa retrógada senhor Garcia, e as pessoas que vieram para ajudar na construção e povoamento da cidade, não conta?
Uma meia dúzia de profissionais especializados.
-E as mulheres Sr. Garcia, as mulheres que para cá vieram, elas não contam?
- Não, não contam, além do mais, algumas mulheres que vieram parar aqui também vieram por conta do cumprimento da pena de degredo. Algumas eram feiticeiras e foram condenadas pelo Santo Oficio, quando aqui foi instalado em 1591, a exemplo de Maria Violante, Arde-lhe o Rabo, outras era taberneiras, mundanas. As que vieram com seus maridos, pouco ou quase nada poderiam fazer, a não ser cuidar da casa e dos criados, as vezes com eles se confundindo.
-Arde-lhe o Rabo? Que alcunha é esta? Por que a chamavam assim?
Não sei, não a conheço, só ouvi falar.
Conte-me mais Sr. Garcia s ore a vereança, como o senhor foi escolhido
 Como me tornei vereador! Ora então eu não sou um dos homens mais ricos destas terras, não faço parte dos “homens bons”[3] desta terra! Não tenho interesse em fiscalizar as coisas de mais perto e de fiscalizar os atos do Governador e demais administradores?
- Vamos Sr Garcia, diga-me lá como foi. Acho muito interessante que o sr tenha sido vereador com tantos interesses que o senhor tinha a defender em benefício próprio.
-Senti, olhando-o de soslaio, que êle não gostou muito deste comentário, também vi que, apesar de não ter gostado tinha um sorriso maroto nos lábios.
Piruí - Arembepe
Sei que o Sr. E o Gabriel Soares eram vereadores.
Estás muito bem informada, isto mesmo, eu o Gabriel éramos vereadores na época.
O que um vereador fazia mesmo?
-Olhe eu estou muito cansado, vou-me agora.
Dizendo isto, simplesmente desapareceu, e eu terminei a minha caminhada pela praia, agradecendo a Deus que não tinha ninguém por ali, pois, se tivesse alguma alma por aquelas bandas,certamente constataria o que todos dizem de mim, que sou maluca e que estou piorando, pois  agora dei para falar sozinha, conversando com uma pessoa imaginária.







[1] SOARES. Grabriel S. Tratado Descritivo do Brasil, 1587, pg 71
[2] Frei Vicente do Salvador, Historia do Brasil, p. 65
[3] Homens bons – homens que participavam da vida pública, homens ricos, livres, proprietários, de sangue limpo, no Brasil, os senhores de engenho, os grandes proprietários de terras, os donos dos gados.