Talvez vocês tenham pensado que esqueci de Lindley, ou eu a história dele acabou, mas é que o nosso vírus de estimação(covid) me deixa muito ocupada em falar das coisas atuais, dos nossos administradores, da nossa justiça” injustiça”. que fiquei sem tempo, ou desanimada talvez, para pesquisar e escrever sobre o nosso inglês contrabandista.
Bom o fato é que Lindley continuava em Porto Seguro esperando
a solução das autoridades. O que seria que iriam fazer com ele? Esta pergunta
deve tê-lo atormentado muitas vezes; pior, a pergunta não tinha resposta, pois
ninguém lhe falava absolutamente nada a respeito.
Ele e sua esposa e tripulação continuavam presos, bem verdade
que o Lindley conseguira uma autorização para sair com a sua esposa e andar um
pouco pela cidade. Note-se que ele, por ser mais útil que a esposa, em muitas
oportunidades, lembre-se que o último episódio que contei do inglês foi a caça
ao homem que lhe dera um pouco do pó dourado, tinha maiores oportunidades de
sair da cadeia e conhecer um pouco mais do local onde estavam, embora sempre
estivesse, nessas oportunidades, fazendo algum tipo de trabalho para os
portugueses.
A expedição do pó dourado foi um fiasco, voltaram, ele e a
comitiva, sem achar nada, entretanto Lindley ficou muito satisfeito com a tal
viagem, porque para ele fora um aprendizado quase que cientifico, pois ele
apreciou a região, viu plantas nativas, observou habitantes, como viviam, como
aravam, como criavam o gado, enfim, aprendeu sobre o Brasil.
Pois continuava, ele e sua esposa, aquela vida de miseráveis
prisioneiros, sendo incomodados por todos, pois Lindley é minucioso ao informar
a falta de pudor dos brasileiros e portugueses responsáveis pela cadeia e pela
sua guarda, que entravam nos seus aposentos quando queriam, usam as suas
coisas, incomodavam por demais.
“O capitão mor, cujos aposentos ficam
na parte superior da prisão, toma a liberdade de entrar nos meus sem pedir
licença e nem considerar a situação da minha mulher e a minha, confinados num pequeno
quarto, e sem atender ao fato de que nem todas as horas são próprias para tais
visitas. |Além disso, serve-se constantemente de minhas bebidas, para si próprio
e os amigos, apesar de saber que eu as compro na praça e que não recebo pensão
de alimentos. O juiz ordinário, ou magistrado da cidade, aparece diariamente na
prisão e toma as mesmas liberdades. Hoje de manhã, deu-nos de presente
uma cesta de ovos, pediu um lenço de seda em troca e, sem falar no assunto,
apanhou da parede uma escova de roupas e, sans cerimonie, escovou o chapéu
na nossa frente” (LINDLEY 1805:40) grifo
nosso[1]
Continuando, ele fala das horas das refeições: “Em cada má
refeição que fazemos, temos em primeiro lugar, necessidade de garantir a porta
contra os invasores. E padecemos, diariamente outras mil mesquinharias”. (Idem,
1805: 40)
Agora pensem bem a situação da mulher do inglês, a pobre
coitada sem falar uma palavra em português, sem qualquer companhia feminina que
pudesse, ao menos, ouvir o seu choro, sem contar com ninguém a não ser com o próprio
marido, como deveria ela sentir-se?
E tudo isto continuava sem que nada fosse informado aos dois
a respeito da real situação deles: se iriam ser colocados em liberdade, se
poderiam retornar ao seu país, se a iram devolver o brique, se soltariam a tripulação,
enfim, nada sabiam. As coisas estavam
indo muito mal, a tripulação sofria, estava em situação pior de que a de Lindley
e sua mulher, até fome passavam, tanto que o inglês se viu obrigado a pedir que
a ração fornecida fosse aumentada.
Minha tripulação recebera a quota
mais amarga da severidade. Já comentei a escassez de gênero de q a princípio, e
que foi remediada apenas em promessa e se eu não tivesse conseguido até
então conseguido (com certo risco) enviar-lhes algum auxílio sob a forma de mantimentos
e bebidas, jamais poderia ela ter suportado sua terrível situação. Não
contentes em quase deixar morrer de fome esses tripulantes, um deles foi
cruelmente espancado por queixar-se disso; e há dois dias, por causa de uma
discussão insignificante, foram-lhe arrebatadas suas facas e navalhas, um pobre
diabo foi posto no tronco, existente na masmorra, ficando um mosquete apontado
para a porta-alçapão enquanto a medida era executada(...) (Ibidem, 51).
E assim as coisas continuavam, Lindley continuava em compasso
de espera, enquanto isso era chamado para atender a pessoas enfermas, amigos
das autoridades evidentemente, entretanto, um rebuliço na prisão, isto
ocasionado pela volta do desembargador Claudio que se ausentara para ir até
Caravelas, quebrou a normalidade, segundo o inglês:
“O desembargador Claudio chegou de Caravelas
com seis presos, eram os principais moradores do lugar: o juiz ordinário, o tesoureiro
e os membros do Senado arrancados dos seus lares por terem desobedecido às
ordens militares de um tenente enviado pelo governador da Bahia para melhor regulamentar
a exportação da farinha. (ibidem idem 48)
Essa chegada de presos modifica, de alguma maneira, a vida
prisional do inglês. “Houve mudança geral na prisão a fim de acomodar os recém-chegados,
autorizados a receber E assim as coisas continuavam, um tempo de espera os
amigos. “Graças aos céus ainda conservei meu pobre quarto, sem qualquer alteração,
tendo, porém, receio de outra visita à masmorra” (Ib. Idem 48)
“A janela do meu pequeno aposento dá
para uma passagem estreita, formada pela parte posterior da prisão e por uma
casa ao lado, que foi escolhida como local conveniente para o recolhimento dos
presos de Caravelas; dêsse modo serei doravante obrigado a manter fechada a
minha janela e aguentar um quarto escuro. Quando chegará a hora da libertação (”
Ib idem 49)
Os presos tinham regalias, podiam ser visitados na cadeia por
amigos, que, segundo o inglês, chegavam a qualquer hora e em grandes números,
não importando se fosse noite ou dia.
Notem leitores, notem bem a quantidade de informações que nos
traz essa passagem da narrativa de Lindley a respeito da nossa Bahia. É bom que
se faça, inclusive, uma comparação com os dias atuais:
A demora na apuração dos fatos, a burocracia infernal que
existia: O inglês foi preso, lhe tiraram o seu “barco”, prenderam a sua
tripulação, lhe jogaram, em princípio num calabouço, criaram uma “comissão”,
que veio diretamente da Bahia (capital da província” para apurar tais fatos (contrabando
de pau brasil), que, como já se sabe, não existiu. O inglês estava preso por
não ter feito o que eles disseram que foi feito, acreditem, foi bem assim. Até se pode dizer que houve uma tentativa de realizar
a conduta, entretanto, o próprio Lindley desistiu, quando soube da ilegalidade daquele
comércio.
É preciso lembrar que o Lindley não se ofereceu para comprar
o pau brasil, ele foi procurado pelo João Dantas Coelho e seus filhos, que lhes
ofereceram a mercadoria (uma aparente legalidade do comércio) porque se o próprio
desembargador da província garantiria o comércio, não podia parecer ao inglês, que
essa atividade era ilegal. A corrupção estampada em poucas linhas, envolvendo
as maiores autoridades.
Ainda que reconhecendo que o Lindley deveria ter um tratamento “especial”, afinal todos os envolvidos sabiam
que ele não praticara qualquer crime,
pois não se achou qualquer madeira (pau brasil) no seu brique, como se admitir que em uma prisão, porque ele estava mesmo na
prisão, e não em um hotel de baixa categoria, ele era prisioneiro e não
hóspede, pudesse ter acesso a bebidas
alcóolicas, e não só, além de ter isto
nos seus míseros aposentos, também,
embora a isso fosse obrigado, compulsoriamente, dividia o álcool com os oficiais que deveriam estar
ali como autoridades que eram, para, inclusive,
salvaguardar
a vida do próprio prisioneiro e dos demais presos?
O tratamento especial que era dado aos “grandes” da localidade.
Não interessa o motivo pelo qual essas pessoas foram presas, e a diferença do
que era dado aos presos de menor importância a exemplo dos membros da
tripulação de Lindely. As atrocidades que eram cometidas em nome da justiça.
Os cargos ocupados pelos novos prisioneiros mostram como a
atividade pública era imbricada com a atividade particular (negócios), confundindo-se
até. Observem ainda que, as autoridades (senadores, juiz ordinário, tesoureiro)
foram presos porque desobedeceram a ordens que determinavam uma regulamentação
do comércio da farinha.
Lindley com a sua tripulação já estavam no cárcere há 3
meses, vide que a prisão se dera em julho, e já era setembro sem que nada se
resolvesse.
Mas os demais padecimentos do inglês (que não pararam por aí)
ficam para uma próxima oportunidade, porque o texto ficaria muito longo e
aborrecido, porque acho sempre que a injustiça apesar de nos trazer indignação,
de tanto ser repetida, se torna aborrecida, parece que triunfa diante da
legalidade, e passa a ser uma “normalidade”, o que não quero passar para quem
se dá ao trabalho de ler esse texto, que faz parte da história do nosso Brasil,
embora uma página lamentável dela.
[1]
LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil, Londres, 1805. Brasiliana,
Vol. 343, Direção de Américo Jacobina Lacombe, trad. Thomaz Newlands Neto, São
Paulo, Cia Editora Nacional 1969