Estava em casa. Chovia
muito e eu, que adoro ver a chuva caindo, estava deitada na rede olhando os
pingos grossos acabarem na grama, que estava verdinha, linda. O flamboyant
acumulava gotinhas d`agua nas suas flores grená, que contrastavam com o verde
das folhas; o coqueiro deixava que a água escorresse pelas suas palhas,
engrossando mais o pingo da água. Sim, apesar de estar calma e naquele ambiente
bucólico, não deixava de pensar no sr. Garcia. “Se aquele murro realmente tivesse
acontecido, não sei como estaria o meu rosto: deformado com certeza!
Olhe que algumas vezes me
olhei no espelho, pois a sensação é que tinha mesmo tomado aquela “pera” que o
Sr. Garcia me desferiu. Bom, mas uma coisa era certa, acho que ele
iria desaparecer completamente da minha vida, pois para ele, ele havia mesmo me
batido e o estrago ele bem sabia, era terrível.
Continuei na rede, na
realidade não tinha vontade de fazer nada, a não ser olhar a chuva caindo e
limpando, não só o telhado da casa, como também a minha alma, sim porque era
muito bom o devaneio que aquela cena tão natural me proporcionava. Ficava ali
pensando em tanta coisa boa, que me esquecia das mazelas e até mesmo do “soco”
do Sr. Garcia.
Entretanto, um som de
casco de cavalo nas pedras me tirou daquele gostoso “far niente”. Bom alguém com coragem está andando a cavalo
na chuva. Algum louco, certamente, mas de súbito o som para, pareceu-me que o
cavalo parou lá na porta de casa. Da rede me estiquei toda para olhar na fresta
entre o portão e o chão. Não vi nada, não havia qualquer sombra, mas não gostei
daquilo, pois, tinha a certeza absoluta que o som do casco do cavalo nas pedras
da rua parou ali. De repente: Ai meu Deus! Será que é aquele filho de uma mãe?
Ele tem coragem de vim aqui depois da merda que aprontou?
Fiquei hiperagoniada,
sabia que estava completamente vulnerável, o fato de estar chovendo não tinha
qualquer problema se fosse o Sr. da Torre que estivesse ali na frente de
casa. Droga! Este homem não me deixa em
paz? O que devo fazer para me livrar deste encosto?
Todavia, ao mesmo tempo
que queria que ele se afastasse de uma vez por todas, eu também queria
continuar com estas conversas com ele, pois era muito interessante mesmo, falar
de coisas do passado com alguém que, efetivamente, viveu aquele momento.
Quando olhei novamente
para o portão: Lá vem ele, estava muito arrumado e trazia uma capa por cima da
roupa, que parecia limpíssima, até as botas estavam impecáveis e ele vinha na
direção da rede com uma das mãos para trás.
Quis levantar correndo,
mas ele foi mais rápido de que eu, e já estava ao pé da rede me impedindo de
levantar.
- O Sr. não tem vergonha
não? Faz a merda que fez e ainda tem coragem de vim aqui?
- Vim para pedir-te
desculpas; estou estes dias todos agoniado, pensando como tu estarias, como
estava o teu rosto, mas vejo que me preocupei atoa, porque não vejo nenhuma
marca de nada.
Não sabia se ria ou se
chorava, sinceramente. Ver o espanto do
Sr. Garcia ao ver o meu rosto era mesmo uma graça, mas sabe-lo ali mais uma
vez, sem a perspectiva de livrar-me dele era um transtorno. Não adiantava nada
dizer impropérios, manda-lo embora; ele simplesmente ficava ali o tempo que
quisesse, entrando e saindo na hora que bem lhe entendesse.,
- Vamos lá, tenho uma
coisa para ti.
E dizendo isto estendeu a
mão que estava escondida e eu vi algo brilhando.
-Vamos levanta-te, quero
eu mesmo colocar isto no teu pescoço.
-Sr. Garcia eu não quero
nada, faça o favor de ir-se da minha casa, o senhor me ofendeu bastante.
-Anda cá, desculpa-me vai
lá. Vamos conversar, pergunte o que quiser, faço qualquer coisa para que me
perdoes.
Era mesmo ridículo ver aquele
pequeno homem todo enfatiotado e muito atabalhoadamente pedindo desculpas. Tive que rir da situação e levantei-me da
rede sem pegar na mão que ele estendia.
Vira-te de costas para
que eu possa colocar a gargantilha.
Ri e virei-me, não ia ter
mesmo saída. Senti um ligeiro calafrio, parecia que algo de metal gelado estava
em volta do meu pescoço, comecei mesmo a tremer pensando de como ficara vulnerável. E se o diabo do
homem tentasse garguelar-me.
-Vira-te. Ficou lindo!
Tens um belo colo, es, efetivamente, uma bela mulher.
Caminhei até a cozinha e
olhei-me no vidro do armário. Não vi nada, mas aquela sensação de que algo frio
estava em volta do meu pescoço continuava.
-Gostas? Estou perdoado!
Sim, gosto.
-Vamos para a sala, quero
sentar-me naquela cadeira confortável e lá perguntas o que quiseres.
-Bom, vamos continuar
aquela nossa conversa sobre a fundação de Salvador.
-Onde ficamos?
-No segundo dia, após a
chegada.
-Bem no segundo dia após
a nossa chegada, depois da recepção que nos foi feita pelo Caramuru, lá na Vila
do Pereira, era hora de procurar, como nos foi ordenado, um lugar para começar
a cidade.
- Sr. Garcia, me satisfaça
uma curiosidade: Onde os senhores dormiram? Aliás onde dormiu todo mundo?
Na nau minha querida,
onde poderíamos mais dormir?
-Sei lá, na casa do
Caramuru?
Casa? Que casa? O Caramuru e a sua família moravam,
como todos os demais índios do local, em choupanas cobertas de palha, nós não
estávamos acostumados com aquilo e não poderíamos dormir ali, até porque não
tinha lugar suficiente.
- Levaram alguma índia
para a nau?
-Estas doidas ou o que? O
Capitão Thomé de Sousa é um homem sério e jamais iria permitir uma coisa desta.
-Não foi isto que soube
Sr. Garcia, tenho informações que os índios costumam oferecer mulheres aos seus
visitantes, inclusive a própria.
-Tens muita coisa nesta
cabeça, estamos falando de Diogo Alvares, que era português, por mais que ele
convivesse com os índios não iria, de maneira alguma, acatar alguns dos
costumes bárbaros deles. Então lá ia ele oferecer a mulher ao Capitão, ou a
qualquer um de nós?
-Está bem Sr Garcia, mas
me diga, o que foi mesmo que foi ordenado ao Thomé de Sousa.
- O Thomé de Souza trouxe
Regimento consigo, aliás além do Regimento de Thomé de Sousa, foram a regimentos
ao Antônio Cardoso de Barros – o que foi nomeado como Provedor-Mor e ao Pero Borges de Sousa o de ouvidor geral e ainda a Pero de Góes o de
capitão mor da costa. Todos estes regimentos foram assinados em Almerim em
dezembro de 1548.
-Almeirim? Por que Almeirim
e não Lisboa?
- Então não sabes, Tu que
sabes de tudo. Foi assinado lá porque o
Rei estava no local onde passava a temporada de inverno.
-Ah! Não sabia disto Sr. Garcia, mas qual a
diferença climática? Almeirim fica tão perto de Lisboa..
- Aquilo lá era uma falta de vergonha.
Todos os anos a mesma coisa, a corte se transferia para lá nesse período e
se
fazia caçadas, saraus, festas,
flertes
De acordo co, Julio Castilho, em
Lisboa Antiga “ à fresca Almeirim afluia todo
que tinha moradia e assentamento e todo o que desejava ter: o cavaleiro ocioso
recém chegado da Índia, o taful que buscava mulher nos estrados do Paço, todos
os estalajadeiros, “mariposas do palácio”namorados dos encantos de Portugal.”
. Sim, mas vamos voltar à chegada e aos
regimentos: E o senhor? Veio com que
instrução
- Nenhuma, mas eu sabia
que o Thomé de Sousa me daria um bom cargo quando aqui chegasse, e foi
efetivamente o que aconteceu, fui nomeado almoxarife.
Sim Sr. Garcia, mas o que
dizia o Regimento de Thomé de Sousa a respeito da fundação da cidade?
- Muita coisa, não tenho
condição de dizer-te tudo que estava naquele regimento. Mais uma coisa sei, o
Rei determinava que Thomé de Sousa se apossasse da fortificação que fora do
donatário Coutinho em Vila Velha, também conhecida como Vila do Pereira e ali ficasse
até que encontrasse um local de melhor conformidade com a os interesses da
coroa em relação à fundação e defesa da cidade a ser estabelecida, que seria a
cabeça de todas as demais capitanias.
-E O Coutinho, o que
aconteceu com ele?
O Coutinho foi devorado
pelos Tupinambás em Itaparica, ele esteve sempre em guerra com os indígenas, a
quem odiava, Quando em 1547 foi morto pelos indígenas, Dom João VI comprou a
capitania de volta à viúva. Na verdade eu não o conhecia, sei destas
informações por ouvir dizer, de certo mesmo só sei o que estava no regimento,
que deveríamos nos apossar das fortificação existente e procurar um novo local
para estabelecer a sede principal do governo.
Sr. Garcia, me diga por
que foi escolhida a Bahia, e não outra capitania? Por que não São Vicente? Que era prospera, ou
ainda Recife?
- Posso lhe garantir que
não sei, entretanto, logo no início do Regimento podíamos ver:
Eu, ElRei, faço saber a vós, Tomé de
Sousa, fidalgo de minha casa, que vendo eu quanto serviço de Deus e meu é
conservar e enobreceras Capitanias e povoações das terras do Brasil e dar ordem
e maneira com que melhor e mais seguramente se possam ir povoando, para exalçamento
da nossa Santa Fé e proveito de meus Reinos e Senhorios, e dos naturais deles,
ordenei ora de mandar nas ditas terras fazer uma fortaleza e povoação grande e
forte, em um lugar conveniente, para daí se dar favor e ajuda às outras
povoações e se ministrar justiça e prover nas cousas que cumprirem a meu
serviço e aos negócios de minha Fazenda e a bem das partes; e por ser informado que a Bahia de todos os Santos é o lugar mais
conveniente da costa do Brasil para se poder fazer a dita povoação e assento,
assim pela disposição do porto e rios que nela entram, como pela bondade,
abastança e saúde da terra, e por outros respeitos, hei por meu serviço que na
dita Bahia se faça a dita povoação e assento, e para isso vá uma armada com
gente, artilharia, armas e munições e todo o mais que for necessário. E pela
muita confiança que tenho em vós, que em caso de tal qualidade e de tanta
importância me sabereis servir com aquela fidelidade e diligência, que se para
isso requer, hei por bem de vos enviar por Governador às ditas terras do
Brasil, no qual cargo e assim no fazer da dita fortaleza tereis a maneira
seguinte, da qual fortaleza e
terra da Bahia vós haveis de ser Capitão:
1 – Ireis por Capitão-mor da dita armada e
fareis vosso caminho direitamente à dita Bahia de todos os Santos, e na dita
viagem tereis a maneira que levais por outro Regimento.
2 – Tanto que chegardes à dita Bahia,
tomareis posse da cerca que nela está, que fez Francisco Pereira Coutinho, a
qual sou informado que está povoada de meus vassalos e que é favorecida de
alguns gentios da terra e está de maneira que pacificamente, sem resistência,
podereis desembarcar e aposentar-vos nela com a gente que convosco vai;
sendo caso que a não acheis assim e que
está povoada de gente da terra, trabalhareis po-la tomar o mais a vosso salvo e
sem perigo da gente que puder ser; fazendo guerra a quem quer que vos resistir,
e o tomardes posse da dita cerca será em chegando ou depois, em qualquer tempo
que vos parecer mais meu serviço.
3 – Tanto que estiverdes na posse da dita
cerca, mandareis reparar o que nela está feito e fazer outra cerca junto dela,
de valos e madeira ou taipal, como melhor parecer, em que a gente possa estar
agasalhada e segura, e como assim estiver agasalhado, dareis ordem como vos provejais
de mantimenos da terra, mandando-os plantar, assim pela
gente que levais como pela da terra, e por
qualquer outra maneira por que se melhor puderem haver, e, porém, se vos
parecer que será mais meu serviço desembarcardes no lugar onde se houver de
fazer a fortaleza, fá-lo-eis assim.
4 – Ao tempo que chegardes à dita Bahia,
fareis saber, por todas as vias que puderdes, aos Capitães das Capitanias das
ditas costas do Brasil, de vossa chegada, e eu lhes tenho escrito que tanto que
souberem vos enviem toda ajuda que puderem de gente e
mantimentos e as mais cousas que na terra
tiverem; das que vos podem ser necessárias, e que notifiquem a todas as pessoas
que estiverem nas ditas Capitanias e tiverem terra na dita Bahia de todos os Santos,
que as vão povoar e aproveitar nas primeiras embarcações que o forem para a
dita Bahia, com a declaração de que não indo nas ditas primeiras embarcações
perderão o direito que nelas tiverem e se darão a outras pessoas que as
aproveitem, e que da dita notificação façam autos e vo-los enviem.
5 – Eu sou informado que a gente que
possui a dita terra da Bahia é.uma pequena parte da linhagem dos Tupinambás, e
que poderá haver deles nela, de cinco até seis mil homens de peleja, os quais ocupam
ao longo da costa, para a parte do Norte., até Totuapara, que são seis léguas,
e pelo sertão até entrada do Peraçuu, que serão cinco
léguas, e que tem dentro da dita Bahia a
Ilha de Taparica e outras três mais pequenas, povoadas da dita nação, (...) (grifo nosso)
- Tatuapara?
-Sim, Tatuapara já
se sabia existir Don Esmeralda, qual o espanto? Cansei, este Regimento é
enorme, e ele é que era mesmo a nossa Carta Administrativa, tudo que se teria
de fazer nestas plagas estava ali, o Rei Dom João III foi muito cuidadoso e
especificou bem qual seria o trabalho do Thomé de Sousa, os seus poderes e
deveres.
OH seu Garcia não
vá embora agora não, quero saber mais.
- Vou sim, está
ficando tarde, continua chovendo e tenho de ir para o Tatuapara, estamos organizando um ataque aos índios que estão invadindo algumas
fazendas na região, e não podemos deixar
isto acontecer, temos que mostrar quem é
que manda, portanto tenho de ir, porque
todos estão me esperando, afinal, sou um líder, o maior fornecedor de braços
desta terra, sem mim nada acontece.
E dizendo isto desapareceu.
Fiquei ali algum
tempo pensando naquela figura tão prepotente, e esta prepotência me fez lembrar
alguns políticos atuais, que parecem ter o Rei na barriga, Sarney, Collor de
Melo, Lula da Silva, e tantos outros; todavia não só os políticos são assim, e
recordo-me dos senhores Ministros do
Supremo Tribunal Federal, deuses na terra, cada um querendo aparecer mais de
que outro. Louvo o saber de muitos deles, mas odeio a prepotência de
todos,
Até o próximo
encontro.
Lisboa, AHU,
códice 112, fls. 1-9. ( Arquivo Histórico do Ultramar)