É sexta feira, dia 17 de fevereiro de 2012. Estou ainda nas cobertas, pois o frio é intenso, dá para sentir quando a gente tira o pé do local onde ele está acomodado por algum tempo. Não dá para se virar na cama, porque a virada é prenúncio de um arrepio e de um novo período de adaptação do corpo à temperatura. Estou acordada há muito tempo, mas não me atrevo a sair dos lençóis, literalmente lençóis: um lençol, um edredom, uma colcha, tudo isto a cobrir um corpo acondicionado a um pijama e um blusão grosso (antitesão); de fora de todo este invólucro só mesmo as mãos, que, firmemente, seguram a onda, e mesmo geladas seguram, diante dos meus olhos as cópias dos artigos sobre as colônias, que devoro desde as oito da manhã, quase madrugada aqui em Carnaxide. Não estou lendo de boa vontade, o faço por obrigação, porque depois de considerar um trabalho de quatrocentos e poucas páginas como pronto, e suficientemente inteligível para tantos quantos tiverem a ele acesso; e depois de enviar todas as cópias de todos os capítulos às orientadoras, elas me pedem um complemento em dois capítulos. Eu continuo achando que não é necessário qualquer acréscimo, mas a esta altura do campeonato, quem vai discutir! Portanto tenho de reler muitos artigos que é para contextualizar Moçambique entre 1910-1926, entre instauração da República Portuguesa e a ditadura. Eu acho perfeitamente que isto está contido no texto, mas vá lá, elas é que estão julgando,portanto, nada a fazer, a não ser atender ao sugerido, ao meu entender, completamente redundante, aliás esta será a palavra que vai ser utilizada pelos julgadores externos, porque, eu bem sei, o texto que querem é uma repetição do que já existe, disperso, dentro do próprio texto já produzido, contextualizado nos momentos adequados, todavia, seguindo a máxima “o que abunda não vicia”, vamos lá.
Estou, pois, em Império Colonial Português, dividindo o conhecimento de Alexandre Valentim com a minha pessoa, não que ele já não seja um velho conhecido meu, mas agora, estou tentando achar que ele é novíssimo. Já passei por René Pélissier (História de Moçambique I e II); por Olga Iglésias; Valdemir Zamparoni, entretanto, tudo isto foi interrompido por um som que me chega através da janela, que apesar de fechada, quase que hermeticamente, mas por não ter vidros duplos, permite que cheguem ao quarto onde estou.
“Quem sabe, sabe, conhece bem, como é gostoso amar alguém”.... Puta que pariu! acreditem, ou não, é verdade. O som fanhoso chega até mim e eu dou risada e percebo, só agora é que o faço, que estamos às vésperas do carnaval: aqui claro! Porque aí no Brasil, especialmente na Bahia, ele já começou há muito tempo, nem mesmo a greve da segurança (policial) impediria que ele se realizasse. O entrudo, que segunda a "wikpédia", foi levado para o Brasil pelos portugueses, não pode falhar, afinal de contas ele provoca o que mais se quer hoje no Brasil, um aumento da população, pobre ou não. Nestes dias consagrados à alegria, à sexualidade, à liberdade em todos os seus aplicativos, o "líquido da vida" jorra pelas ruas, camarotes, etc.etc.etc, procurando ávido o caminho para seu acolhedor espaço no interior feminino, "entrudando" em quaisquer espaços que lhe seja permitido e, até, nos não permitidos.
Tento continuar lendo, mas é impossível, o som continua, ondas mais fortes chegam, para de repente baixarem e ficarem muito fraquinhas. Agora já estão tocando: “As águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar”; uma sequência de outras músicas me tiram, literalmente, a concentração: “Nós, nós os carecas.... é dos carecas que elas gostam mais”; “colombina eu te amei, mas você não quis, eu fui para você um pierrot feliz”.
Tento resistir mas tenho de saber o que está acontecendo, afinal ainda é sexta feira e aqui nem vai ter feriado no carnaval, foi decretado oficialmente pelo Governo que não haverá qualquer ponto facultativo, nem mesmo para os funcionários públicos, como se esta fosse uma medida que poderia salvar o país da bancarrota em que ele está metido! Não que ele esteja na situação da Grécia, jamais, não há que se admitir isto: este é o comentário de tantos economistas, políticos, doutores em política internacional) mas, de verdade, estamos vendo o caminho para tanto. Bom, contudo esta austeridade infantil de proibir o mínimo de alegria ao povo que não é ligado ao carnaval em si, mas ao feriado que ele proporcionaria; um descanso para os “cansados” trabalhadores portugueses, funcionários públicos ou não, mas um descanso programado há muito, e que o governo, com uma simples assinatura, lhes rouba. Evidentemente que em Loures e Torre Vedras, e ainda outros recônditos lugares de Portugal, a festa se realizará,(afinal a decisão de cancelar o feriado aconteceu apenas na semana passada, acho eu, e onde tem carnaval mais ou menos à sério aqui em Portugal, as coisas já não podiam voltar atrás) alguns, com direito até mesmo à presença de Michel Teló (acho que é assim), este que canta “Ai se eu te pego, ai se eu te pego, assim você me mata”, que ficou imortalizado quando Cristiano Ronaldo, em um gesto de extremo conhecimento e sensibilidade, comemorou um dos seus belos gools com a coreografia da “dança” que é realizada pelo cantor nas suas apresentações. Aliás, o Sr. Teló deveria agradecer, de joelhos, ao Cristiano Ronaldo este súbito delírio europeu em relação a esta brilhante composição, que poderia levar o seu autor(a), que não é ele, discute-se até isto, alguns creditam esta beleza literária à uma baiana, que já poderia entrar para a academia brasileira de letras, ou, ainda, mato-grossense, acho que o Teló é de lá, ou ainda da Bahia: Cruz credo! Diga-se de passagem, ainda a respeito do estrondoso sucesso da música, que todos aqui creditam exatamente ao grandioso e divulgador ato (como aqui se diria, acto) do Sr. Cristiano Ronaldo, a quem agradeço por divulgar tão importante página musical de tão perfeita coreografia que engrandece a cultura popular brasileira!!!!!.
Pois é: não seis se em Torres Vedras, ou em Loures é que o Teló vai participar, vendo, naturalmente assustado, como eu fico, as participantes femininas de roupas ínfimas; não como as brasileira do outro lado do Atlântico usam: o pudor português não permitiria, mas há brasileiras por estas plagas e há portuguesas corajosas, estas últimas por dois motivos: um por enfrentar uma sociedade ainda tradicional em muitos aspectos, principalmente no de tirar a roupa, em público claro! Porque na alcova, (aliás, lugar completamente adequado), segundo informações da própria televisão portuguesa, estão no primeiro lugar da Europa. Acreditem se quiserem, em número de relações sexuais semanais(duas por semana), os portugueses estão em primeiro lugar,aliás, ocupando uma posição que eles sempre querem estar, adoram ser primeirões em tudo; ou seja, elas tiram a roupa ao menos duas vezes na semana, porque o homem português não vai comer bonecas infláveis, tampouco mulheres vestidas, acho eu: e o segundo motivo por, literalmente, enfrentarem com os corpos nus,( para os padrões daqui) , o frio congelante.
Bom, mas as músicas continuam, agora me vem “O seu cabelo não nega mulata, que tu és mulata da cor”, em seguida:, “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí”. Viajo com a música, chego a um passado em que esperava ansiosa pelo carnaval para dançar e “pular o carnaval” ao som destas músicas e muitas outras: “Máscara Negra”, “Bandeira Branca”, Corre-corre lambretinha e tantas outras. Viajo, mais ainda, e me pego vestida de cigana com direito a lenço vermelho e tudo, com roupas de saias sobrepostas confeccionadas por minha mãe, que nos vestia, a nós os três: Elisa, eu e Tininho, para as matinês, assim eram chamados os bailes diurnos para as crianças nos grandes clubes da época em Salvador-Ba., nós, por questões atávicas, freqüentávamos o Centro Espanhol, faz tanto tempo que o desgraçado ainda era na Vitória! Lembram?
Depois, em viaje mais próxima, me pego dançando estas mesmas músicas, já mescladas com "atrás do trio elérico", " a praça castro alves é do povo", "chuva, suor e cerveja", as músicas dos blocos "barão" e "jacú" na Associação Atlética, Iacht Clube da Bahia, Bahiano de Tênis, Clube Fantoche da Euterpe, Cruz Vermelha, eu ia em todos, embora não fosse associada a nenhum, mas a beleza e os amigos sempre me facilitaram a vida.
Lembro-me com uma saudade danada de um “baile” que tinha no Clube dos Médicos que ficava na Boca do Rio. Rapaz! Aquilo era mesmo esperado, muita gente bonita e jovem, era o supra sumo do supra sumo. O problema era a volta para casa, pois o baile acabava às 4:00 e o transporte só começava a circular às 6:00, e tínhamos de ficar sentados na calçada esperando pelo ônibus.
Levanto-me, tenho de ver o que esta acontecendo, abro os “stores”, e vejo a paisagem linda de sempre: o Tejo está azul, muito azul mesmo, a Serra de Carnaxide continua ali, intacta, ninguém sobe a ladeira para fazer exercícios, mas ela está ali esperando pelos corajosos. Na quadra da escola, que fica bem em frente à minha janela, de onde eu os posso ver sem ser vista, os meninos, todos encapotados, jogam football, como em todos os dias. Olho tudo e fico e me perguntando de onde vem o som, porque nada na escola deixa perceber que há alguma movimentação carnavalesca. Aí descubro! A rua foi interditada logo ali na frente da escola, há um desfile de crianças fantasiadas: são os “pirralhos”da escola “primária, secundária, fundamental”, sei lá que porra, eu não sai ainda do primário, ginásio, colegial, superior: to bem não tô?
Fico olhando aquilo: é incrível, as músicas e o desfile em si. É uma sensação muito estranha, tento tirar fotos, mas está muito longe, aproximo o zoom, mas ele desfoca a imagem. Digo para mim mesmo: Que merda! Queria muito registrar isto para mostrar a todos, afinal é o carnaval que possivelmente vou ver por aqui, até porque me deram um bolo danado, pois alguém me deu a expectativa de que passaria o carnaval, se não comigo, junto a mim, desistiu, entrou água nisto, embora eu tenha me enganado, como sempre, porque quis, uma vez que, gostando do carnaval e de tudo o quanto ele pode proporcionar: amigos, mulheres, sexo, alegria, álcool, etc., quem cogitou a possibilidade de passar o carnaval aqui só poderia estar, como sempre, blefando.
Desisto e tenho de me recolher, porque o frio do lado de fora, na varanda onde fui para tirar as fotos, está retado. São quase onze horas da manhã, a funcionária pública, em pleno dia de trabalho, ainda está em casa. Volto para o meu solitário quarto, escrevo este texto e volto ao tempo quase adequado às minhas recordações: 1894, ano em que foi ordenada a Reforma na Administração da Justiça Colonial, que retirou dos indígenas africanos o direito de, em total liberdade, cantar sem quaisquer restrições a sua música, continuar a sua cultura, respeitar os seus chefes tradicionais, lutar pelo que acreditavam, tal qual a simbologia que pode ser captada através da música que ouço através da janela: “EhEhEh... índio quer apito se não der pau vai comer”.