Caminhando, como sempre, sozinha,
pelas ruas de Istambul extasiava-se com cada detalhe, com cada descoberta, com
a história vista, em alguns momentos, apenas nos livros. Uma mulher de burca,
daquelas que de tão radicais tinha tela na parte dos olhos, passa por si.
Outras deixavam aparecer, exclusivamente, os olhos. Uma delas, particularmente,
lhe chamou atenção: é que essa usava óculos, cujas hastes desapareciam por
dentro do pano que emoldurava um rosto sem expressão, porque escondido atrás
daquele pano preto.
Pensava como isto ainda podia ser
possível, mulheres cobertas de pé a cabeça, todas de preto, num escaldante sol
de agosto. Concomitantemente ao questionamento, ela lembrava que aquela era a
demonstração mais pura da cultura de um povo, e que ela não tinha que questionar
nada disto. Eles viviam assim, aceitavam-se assim, acreditavam naquilo; não só
acreditavam, mas respeitavam. Para eles ali estava a sua crença, a sua fé, a
sua política inclusive, tudo na normalidade. Os ocidentais, como ela, é que
procuravam, com mil e uma justificativas injustificáveis, questionar os
costumes, desrespeitar tradições, interferir na vida e na religião de povos
que, à sua maneira, eram e são felizes.
Uma burca alta vem em sua
direção. O pano preto tem um balanço diferente. Ela que pensava que todas as
burcas eram iguais, notava agora que não era bem assim. E, mais e mais, o pano
preto vinha em sua direção. A altura de
quem o transportava chamava atenção e, talvez por isso mesmo, ela tenha notado
os detalhes: O pano da burca parecia de seda, lógico que outra seda diferente
da que estava habituada a ver. Nas
laterais do pano notou uma fina linha que lhe pareceu ser, em princípio,
dourada, mas não era, era uma tira de um pano preto mais brilhante, que fazia a
divisão entre a frente e a parte detrás da burca. Acompanhava atentamente o
movimento do pano, para tentar descobrir, ali, algum traço de feminilidade,
algum detalhe que pudesse dar uma noção do que estava ali por baixo daquele
pano preto. Não conseguiu, mas, como efetivamente procurava detalhes deu de
cara com um que lhe chamou mesmo a atenção: os pés! Os pés da jovem que estava por baixo daquele
pano estavam pintados. Todo ele, desde o
calcanhar à ponta dos dedos. Aqueles pés
pintados lhe fizeram lembrar que, em alguma novela, que tratava da cultura indiana,havia uma coisa assim, uma noiva com os pés pintados de hena, a mulher devia ser recém-casada, porque para os orientais a pintura dos pés da
noiva era forte traço cultural. Não só os pés estavam pintados, também as mãos
mostravam os desenhos feitos com hena, trabalhos minuciosos de quem sabe o que
e para quem estava fazendo, tudo parecia, na verdade, uma luva com bordados cuidadosos.
Descobriu quão era ignorante em
relação à cultura dos turcos, a não ser aquilo que era passado na televisão,
nos noticiários que sempre associavam a religião islâmica ao terror, à
destruição, à fome, à morte. Entretanto,
ela sabia que não era assim, e que não tinha ido à Istambul apenas porque,
depois da novela das oito, a cidade virou febre para brasileiros. Não, para ela não era isto, para ela Istambul
era a própria história: Constantinopla, Império Otomano, Mesquitas, o
Patriarcado de Constantinopla, Anatólia, Ásia Menor. Não, efetivamente não era
assim. O Mar Negro, o Estreito de Bósforo, a ligação entre dois continentes, O
mar de Mármara dividindo as duas partes de Istambul – a europeia da asiática.
Istambul era mesmo muito mais que apenas uma novela da rede Globo.
Sim, aqueles pés pintados de hena
lhe trouxeram a Istambul dos grandes momentos históricos, da importância do
Império Otomano, do grande eixo civilizador que ali se estabeleceu e que, ainda
hoje, como o será sempre, fará ligação de culturas. A cidade é completamente
cosmopolita, se encontra de tudo e todos em Istambul. Russos, Ucranianos,
Croatas, árabes de todas as partes: europeus, asiático, africanos.
Navios, montes deles, parados no
Mar de Mármara: um cemitério de navios.Numa reportagem televisiva soube que os armadores abandonam ali os
navios que já não mais navegam, seja pela velhice, seja pelas dívidas, enfim:
motivos diversos geram o abandono. É uma pena, porque aqueles pontos negros,
maioria deles, na água maculam a beleza do Mar de Mármara, do Bósforo, do
intenso azul das águas.
Constantinopla: fica remoendo a
história, procurando lembrar-se do que esta cidade representou no passado, lembra-se
das aulas de história e da professora a falar da importância da Anatólia. Em
sua cabeça vem Bizâncio, como já foi chamada, a hoje, Istambul. Toma um susto ao
recordar que ali foi sede do Império Romano do Oriente, portanto, um berço da
cristandade, hoje um mundo muçulmano, que se mostra em qualquer direção que
tome, mas ainda há o cristianismo, apesar dos ritos diversos, vez que a Igreja
é ortodoxa, o rito é bizantino. A Basílica de Santa Sofia (Aya Sofyia) foi
construída por Justiniano entre os anos 527 e 565 e permanece lá ate hoje, para
quem quiser ver, como aconteceu consigo, que, após enfrentar quilômetros de
fila quase intermináveis ela se deu conta da grandeza que foi e que é, ainda
hoje, tudo aquilo. Hoje a Igreja é uma mesquita, continua, pois, um local
religioso, mas a diferença do credo que ali se processa é que, efetivamente,
marca esta grande e imensa diversidade. O nome Alexandre lhe vem, e ela, ainda
que faça esforço, não lembra o motivo, de repente recorda: foi Alexandre – O
Grande que tomou a região da Anatólia do domínio dos persas.
As Mesquitas de sucedem, cada um
queria mostrar mais poder que outro, elas demonstram o poder, a pujança a
riqueza da época. Os grandes tapetes que cobrem todo o chão, onde as pessoas
andam descalças, exalam um cheiro forte, acre, que invade as suas narinas. É o
chulé coletivo, pois todos pisam naquele tapete que já vive, naturalmente, úmido
e conserva a sua umidade com o suor dos pés de tantos que pisam ali, resultado,
demonstra, com um pouco de crueldade até, o seu agradecimento, evaporando os
odores dos que lhe pisam.
Entretanto, o que mais lhe
impressiona mesmo são as águas do Bósforo
e a travessia nos barcos que fazem a
ligação entre os diversos bairros e, mais ainda, com o outro continente. Em questão de dez minutos ou menos, se sai da Europa e se entra na Ásia. Aquele
que souber, exatamente, onde o Bósforo divide os dois continentes, pode colocar
um pé de um lado, e o outro do outro, e pode se dar ao luxo de dizer que pisou,
ao mesmo tempo, em dois continentes. Isto lhe dá uma sensação de poder, de
grandeza, imenso.
A região de Sultanahamet,
corruptela de “sultão Ahmed”, que conquistou Constantinopla para os turcos, é
onde ela ficou hospedada, ali estão grandes monumentos, grandes belezas
arquitetônicas, enfim está um pouco do coração de Istambul.
A Mesquita Azul ( Sultanahamet Camil) está bem
ali, logo em frente a “Aya Sofya"; do
outro lado da praça, está a Grande Cisterna, descendo mais um pouco se
alcança o Grande Bazar. Se dobrar a esquina da Aya Sofia
alcança o palácio Topkapi, enfim, o bairro transpira cultura, saber, conhecimento, história.
Todavia existe muito e muito mais
para se vir, apreciar, comer, viver Istambul, e tudo vai ser dividido em partes,
paulatinamente contado, comentado, a fim de que ninguém se canse, e todos
curtam, um pouco, desta maravilha da natureza, da história, da vida, que é
Istambul, o Bósforo, o Mar de Mármara.