Continuei nos meus afazeres, mas, de repente, um calafrio
imenso, os pelos eriçados e sentindo a presença de alguém ou alguma coisa
estranha na casa.
- Bons dias!
De imediato reconheci a voz do Senhor da Torre. Fiquei
excitada e ao mesmo tempo apreensiva. Certamente o senhor Garcia não tinha qualquer
problema em aparecer onde quer que fosse, bastava querer, mas fiquei inclinada
a perguntar-lhe como me achou.
Eu tinha me mudado de casa e já estava mesmo achando que este
era um dos motivos do desparecimento do Senhor Garcia. Olhe que tem horas que
me acho louca mesmo, tenho de concordar com as pessoas que me acham assim e sem
qualquer vergonha verbalizam este pensamento, e é bem assim eu me sinto em
relação a esta estória com o Senhor da Torre.
=Bom dia Senhor Garcia, quanto tempo?
-Diga-me lá: por que não avisaste que mudaste de direção?
Estivemos em tua casa em Arembepe algumas vezes e demos com os burros n´àgua.
Sorri com a expressão, e disse: Oh senhor Garcia eu não sei
como encontrá-lo, aliás, da última vez que o senhor esteve comigo, disseste-me
que estava no hospital da Misericórdia. Passei lá outro dia, no dia 04 de
dezembro e até fiquei inclinada a entrar.
Pelourinho |
Igreja da Misericórdia |
Fiquei atônita, incrédula com o que acabei de falar, então eu
iria entrar na Misericórdia para ver o senhor Garcia em pleno dia de Santa Bárbara
e em pleno ano de 2019? Endoidei de vez, este homem conseguia me tirar do prumo
mesmo.
- E ainda estou, disse-me ele, mas, como vês, vivo.
- Felizmente , felizmente. O que tem de novo para me contar? Antes,
porém, esclareça-me em que ano estamos.
-Como em que ano estamos? Estas de borla comigo?
-Claro que não, mas preciso saber para tentar me localizar,
inclusive no pedaço da madeira preta.
-Estamos em 1609.
- 1609, quem é o governador?
Extas mesmo de borla comigo, então não sabes quem é o governador?
- Diogo Siqueira
E Francisco de Souza.?
- Também, é que mais uma vez o Rei dividiu o governo do
Brasil, ficando aqui na Bahia o Diogo e, no Rio de Janeiro, o Francisco de Sousa
- Francisco de Sousa? Aquele que era um aficionado por minas?
Pelourinho |
-Sim, ele mesmo, sabes que ele tanto chafurdou
na Corte, que terminou por ser nomeado para Governador do Sul, governo com sede
no Rio e janeiro e ainda conseguiu a promessa de
receber o título de nobreza ligado às Minas.
- No Rio de Janeiro?
-Sim, por que o espanto?
Ora, se ele tinha interesse em encontrar as minas que foram
identificadas por João Coelho de Sousa, irmão de Gabriel Soares de Sousa
deveria ficar perto do Nordeste, especificamente aqui em Salvador da Baia, ou
em Sergipe, nunca no Rio de Janeiro.
- O importante para ele era estar aqui, não importa qual o
lugar, até porque, também em São Paulo há perspectiva da existência de metais,
não só lá como alderredor.
Sim, e ele em encontrou tais Minas?
Neste momento o Senhor Garcia deu uma larga risada. – Não ele
não encontrou.
Agora quem ria era eu, mas ria por dentro, até porque o
senhor Garcia não poderia saber se o Francisco tinha ou não encontrado tais
minas, afinal ele falecera em maio de 1909. Francisco havia retornado ao Brasil
em janeiro daquele ano e ido para o Rio de Janeiro, e pouco era o contato de
ambos, bem como as notícias. Possivelmente, o Senhor da Torre não saberia do que
acontecera entre janeiro e maio de 1909 com relação às minas.
- Mas diga-me lá Senhor da Torre, quem era mesmo João Coelho
de Sousa
- Já disse-lhe: era irmão de Gabriel Soares de Sousa, este eu
conheci muito bem, porque era um rico dono de engenho aqui mesmo na Bahia
“Gabriel Soares de Sousa, nascido em
Portugal cerca de 1540 emigrara para a Bahia no fim da década de 1560. Durante
uma permanência de dezoito anos na Bahia tornara-se um bem-sucedido plantador
de cana e participou do conselho municipal em 1580. Seu irmão João Coelho de
Sousa, descobriu depósitos minerais no interior da capitania, morreu antes de
poder explorar essa mina, mas deixou a Gabriel um mapa que lhe indicava a localização.
Em 1584 Gabriel foi à Corte com uma petição para a concessão dessa e quaisquer
novas descobertas. Recebeu-a em 1590, ganhando a patente de Governador e Capitão-mor
da Conquista e Minas do Rio São Francisco. Regressou à Bahia com 360 homens,
comandou uma expedição ao vale superior do Rio Salitre na cabeceira do São Francisco.
Morreu na viagem de regresso e foi enterrado no mosteiro beneditino da Bahia
sob uma lápide com a inscrição “aqui jaz um pecador” (...) (RUSSEL WOOD 1939:
55-56).[1]
Como sempre, notei que o homem não
estava gostando da conversa, que girava em torno de uma obra que não era dele.
Ele adorava falar de si e das suas proezas. Gostava de endeusar-se, de falar da
sua Tatuapara e da defesa que esta representava para a cidade do Salvador. Falar de uma figura importante como era o
Gabriel Soares[2] era
muito para ele, acontece que não dava para mudar o assunto, e quando insisti
mais um pouco, ele, como sempre, deu as costas e foi-se, sem saber o que eu
tinha de falar para ele sobre estas minas e
da importância que teria o seu neto Francisco Dias D´Ávila para encontra-las. Foi bom até, porque ele não iria acreditar
mesmo que Francisco chegaria a tanto, todavia ele vai saber, porque eu tenho
certeza que o Senhor Garcia, morrendo ou não efetivamente em maio de 1609, não deixará
de aparecer para mim e eu terei a oportunidade de contar-lhe tudo o que o seu
neto representou para a nossa Bahia, perenizando o nome dos GARCIA D´ÁVILA.[3].
[1]
RUSSELL-WOOD, A.J.R. Fidalgos e Filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da
Bahia, 1550-1755(trad. De Sergio Duarte, Brasília, Editora Universidade de Brasília,
1981, Coleção Temas Brasileiros, 20.
[2]
Gabriel Soares de Sousa escreveu o Tratado Descriptivo do Brasil, (1587) uma
das grandes fontes para o conhecimento da Bahia Colonial, pode ser encontrado
na Biblioteca Digital do Senado Federal.
[3]
Ver. O feudo: a Casa da Torre de Garcia
d'Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Bandeira, Luiz
Alberto Moniz. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 2000: