Olá meu amor! Bom dia! Tudo bem com você?Comigo não está.
Acredite: sabe o que encontrei
hoje?
Ah!Sei que não vai acreditar, mas
é verdade. Encontrei duas folhas de marple.
- Marple?, Você não lembra o que
é marple? Nem acredito! Marple é aquela árvore enorme do Canadá, da qual fazem
aquela espécie de “mel” muito comum naquele país e que está na bandeira canadense,
ou será canadiana?
-Onde estavam estas folhas?
Ah, você nem vai crer, aliás, até
pode duvidar, mas se algum dia lembrar a época que fomos aos Estados Unidos e
Canadá, você vai recordar; lembra que eu estava começando a minha licenciatura
em História na Universidade Católica? Já lá se vão 17 anos, é muito tempo.
Ah! Você não lembra? Nem
acredito, puxe pela memória e você vai lembrar-se da nossa viagem.
Sim meu amor, nós fazíamos
viagens na companhia de amigos, e quantas vezes o fizemos.
Foi engraçado: nesta viagem todos
se divertindo muito, mas eu estava centrada em ler o Código de Hamurabi e as Cartas de Hamurabi,
ninguém entendia porra nenhuma, mas eu tava lá dentro do ônibus lendo, lia
tanto, que o povo começou a ficar
chateado comigo.Eu pouco tava me ligando, porque, quando retornasse, teria de
fazer uma apresentação na faculdade sobre os dois livros, O Código de Hamurabi
e as Cartas de Hamurabi: assim a leitura tinha de ser atenta, cuidadosa.
Lembra de um casal do Rio de Janeiro,
que queria comer pastrame de qualquer maneira em New York? Eu lembro, eles eram
meio chatinhos. E daquele outro casal que era do Paraná ou Santa Catarina; já
não me lembro de direito. Recorda que eu coloquei o apelido em um cientista que
estava conosco de “Einstein” e ele mais a esposa riam muito disto. E aquele
outro casal de jovens que gostava muito de fazer brincadeiras de mau gosto,
mas não gostava quando alguém pegava pesado com eles?
Pois é, as folhas de marple estão
no meu livro de Hamurabi. Quando as encontrei foi como se eu entrasse num túnel
do tempo, retornando a um período em vivi feliz junto com você curtindo toda
aquela viagem; era assim que vivíamos, talvez eu tenha sido mesmo inocente e
achasse que aquilo era mesmo a felicidade e que tudo estava correndo bem.
Recorda que nós fomos ver, no
Canadá, o Fantasma da Ópera, lá em Toronto e que depois nós fomos a um local que
tinha vários restaurantes e eu tive que sair às pressas porque fiquei com dor
de barriga, só que não sabíamos que a cartelinha que tinha sido dada na entrada
tinha de ser devolvida na saída e que foi um Deus nos acuda da zorra?
Não acredito que você tenha
esquecido de tudo isto! Temos coisas de nós dois que nunca poderemos esquecer, estejámos
onde estivermos e com quem estivermos, porque tudo o que vivemos foi muito
verdadeiro, muito bonito, muito real. Éramos tão cúmplices e tão invejados, as
pessoas queriam estar perto de nós e algumas até ser como nós. O seu cuidado para comigo, a sua preocupação
em não deixar que ninguém me sacaneasse. Você sabia da minha maneira, do meu
jeito, das minhas invocações por besteiras.
Quando chegamos a Niágara Falls e
encontramos a loja da Ralph Lauren, que festa que você fez. O seu blusão de couro tá aqui no armário até hoje,
ele parece querer perenizar esta viagem, porque tantas coisas já foram dadas,
tantas jogadas fora, e ele ali, quietinho, no cabide, como se tivesse se escondendo,
sem querer sair deste esconderijo para abrigar outro corpo, ele, também, é fiel a você. De vez em quando ainda fico
procurando o defeito para ele ter sido vendido com desconto.
E a bebida dentro do ônibus
quando fomos passar a fronteira para entramos no Canadá! O guia dizia que era
proibido levar bebidas, mas você não tinha jeito mesmo, você conseguiu até
mesmo comprar um “isopor” para colocar as bebidas e todos aderiram à ideia.
E Montreal hein! Que coisa
maravilhosa, aquela cidade subterrânea onde tomamos um licor que até hoje ainda
procuro, SAMBUCA. O licor era italiano e o dono do estabelecimento também.
Quantas camadas pegamos. Quantas coisas lindas vimos e vivemos, eu ficava
encantada quando deixávamos o quarto do hotel e ao chegarmos ao lobby e descermos
uma escada e pronto: lá estávamos nós na cidade subterrânea, protegidos do frio
e com todo o conforto do mundo.
Otawa meu amor! Você lembra de
como eu fiquei assustada com o pessoal das motos? Aqueles caras todos tatuados
com cada moto gigante, mal encarados e que pareciam sujos e saídos de algum
filme americano. Sim, tive medo mesmo e queria ir embora logo dali, embora o
local tivesse muitos e muitos restaurantes e eu lembrava, não sei por que, de Popye,
acho que eram as tatuagens dos motoqueiros, verdadeiras gangs com cada moto que
tirava o fôlego.
Em Toronto eu comprei um livro
sobre o império romano e, quando vi as folhas do marple dentro de Hamurabi,
lembrei-me que eu também tinha colocado várias folhas dentro daquele livro, e
fui olhar. Pois não é que as folhas estão perfeitas. Inacreditável, diversos
tons e tamanhos.
Recorda da minha emoção andando
pelas ruinhas de Quebec na “Old Quebec"
entrando em lojinhas que pareciam mais europeias de que canadenses, aliás, uma cidade
qualquer francesa ali estava, com as casinhas com flores nas sacadas, com ruinhas estreitas, um funicular, tudo lindo e
perfeito. Era época de eleição, e o Jean Chrétien (acho que é assim que se
escreve) era um forte candidato. Também
iam fazer uma espécie de plebiscito para saber do povo se queria mesmo a
separação de Quebec do resto do país. Lembra-se de uma senhora que falava
comigo em inglês e você dizia que eu sabia falar francês, aliás, você dizia
algumas palavras nesta língua, era mesmo muito engraçado.
É, lembro-me de tudo! As folhas
de marple me fizeram voltar, me fizeram reviver um lindo momento nosso tão
distante e tão próximo. Nosso amor está seco, não tem mais seiva, mas não
adianta querermos apagar o que se passou, não dá. Muita coisa, muitos sonhos,
muitas realizações, hoje a mim trazidas pelas rugas das folhas secas de marple
presas dentro dos meus livros, amigos atuais que não se desgrudam de mim. As
folhas secas mostram que já tiveram vida e que, ainda que secas, conservam a
beleza e tem consciência do que representam. Como nós, estão velhas, já não tem
mais a seiva que faziam com que brilhassem, mesmo depois de caídas no chão em
várias partes do Canadá, mas mesmo enrrugadinhas elas se conservam ali, quietas,
sabendo o seu verdadeiro papel, que é, exatamente, fazer lembrar o que
representamos um para o outro, o que somos um para o outro, que nem mesmo a
distância, e nem algumas novas e clorofiladas folhas, vão conseguir desfazer. Elas tem a sua história, a sua memória e por isso mesmo tem o respeito de todos;
significam toda uma vida, um passado, que, se muitas pessoas preferem esquecer,
outras, como eu, quero lembrar sempre, pois tudo o que passei de bom e de ruim,
resultaram nesta pessoa que hoje sou.
Guardem, pois, as suas
lembranças, ainda que sejam folhas secas, porque elas representam a vida que já
existiu em cada um de nós e que nos fizeram evoluir até chegarmos ao que hoje somos.