terça-feira, 31 de julho de 2018

Um encontro em Humaitá - Garcia D´Ávila XV


Saí cedo, tinha de pagar a promessa: Ir andando ao Bonfim. De onde? Querem mesmo saber? Daqui de casa, Jaquaribe, na orla. Todos me diziam e dizem que sou maluca, mas se eu prometo, tenho de cumprir. Pior é que, que muitas vezes, paguei a promessa antes de saber se alcaçaria, ou não, êxito no pedido, mas pago logo para ver livre da obrigação.  Nesse dia não fora diferente, havia prometido ao Sr. do Bonfim esta ida a pé, e lá se ia eu, sozinha, toda de branco: Patamares, Boca do Rio, Imbuí, Luís Eduardo, San Martin, Largo do Tanque, Viaduto dos Motoristas, Uruguai, Baixa do Bonfim, e finalmente: Igreja do Bonfim.
Lateral da Igreja do Bonfim
Entro na Igreja, agradeço, e está na hora de voltar. Como sempre, entretanto, apesar do cansaço, desço o Monte Serrat todinho e vou até a Igrejinha de Humaitá, adoro a vista, acho aquele lugar uma coisa linda. Fico ali sentada na balaustrada. A Igreja, como sempre, está fechada, o que é uma pena, porque adoro ver os azulejos que a decoram.  Estou completamente embevecida; de onde estou posso ver a cidade, os seus prédios imensos da Vitória e, lá, bem na curvinha, o farol da Barra, que só sei que e ele porque sei da sua localização desde sempre.
É tão lindo aquilo ali, que choro emocionada.  Nas pedras que circundam a balaustrada na lateral da igreja, resto dos presentes ou ebós colocados no mar, é a crendice  baiana, gosto até disto, embora suje bastante a área. Estou tão absorvida que nem percebo alguém se aproxima:
-Bons dias!
Igreja N.Sra Monte Serrat
Vista de Salvador da Ponta de Humaitá
Tomo um baita susto, pois de imediato reconheço a voz.
-Bom dia Sr Garcia, que faz aqui?
-Não achas que quem devia fazer esta pergunta era eu?
O Sr. Garcia como sempre, pedante, senhor de si, orgulhosos, cabeça altiva, olhando-me com uma expressão de desdém.
-Não, não acho senhor Garcia! Quero mesmo saber o que o senhor faz aqui. Será que agora não tenho mais paz?  O senhor está em todos os lugares. Já não tenho qualquer momento de privacidade.
-Acordas-te com a macaca hoje foi? Não fiz a pergunta para ofender-te, mas, para variar, estás nos meus domínios e eu quero saber o que te trouxe aqui, tão longe de tua casa?
-Vim na Igreja do Bonfim e aproveitei e vim aqui na Ponta de Humaitá, que é um dos mais belos lugares da Baia de Todos os Santos.
-  Igreja do Bonfim? Onde fica, nunca ouvi falar, aqui em Itapagipe eu só conheço esta aqui, que, como sabes,  fui eu que mandei  erigir.
-Sei sim senhor Garcia, como sei.
-Mas agora ela já não mais te pertence senhor Garcia, o senhor doou aos beneditinos.
-Eu o que?
Isto mesmo que o senhor ouviu, no seu testamento o senhor deu a Igreja aos padres do São Bento.
-De onde tirastes esta ideia, que testamento? Não vês que estou vivo aqui conversando contigo.
-Quantas vezes mais vou dizer ao senhor que és um desencarnado, que, para sorte ou azar meu, me escolheu para falar de coisas do seu tempo.
-Desencarnado, o que significa isto?
Não quis me atrever a falar de morte, e fiquei ali com o desencarnado, com espirito de luz, etc., mas não dava para ficar falando disto com o Garcia D´Avila, ele realmente era grosseiro e podia me fazer alguma coisa. Era muito engraçado, quando eu estava em frente a este homem sempre me dava uma sensação de insegurança, de medo, as vezes até mesmo pavor.
- Sabes que eu tinha varias olarias aqui por esta região.
-Sei sim Senhor Garcia o senhor já me falou disto, mas agora o senhor só tem olhos para Tatuapara e para norte. Soube que o senhor contratou gente para descer índios.
-Como sabes disto?
-
 
Descendo o Plano Inclinado do Pilar
Já te falei que pelos livros. Também soube que o senhor anda de rusga com os jesuítas exatamente pela quantidade de indígenas que o senhor possui.
-Eles tem é inveja, porque com esta história de tornar os índios cristãos, eles tem mão de obra para tudo. Os aldeamentos[1] nada mais são de que deposito de índios para servir aos jesuítas, e para fornecer mão de obra para os colonos portugueses.
Como assim Sr. Garcia, fornecer mão de obra para Portugal?
-Ora, não te faças de boba.  Há um projeto do governo português e sabes disto, que é a de utilizar a mão de obra indígena indispensável ao desenvolvimento econômico da colônia, afinal não há quantidade de mão de obra suficiente vinda de Portugal, temos mesmo é que aproveitar a mão de obra nativa e os recursos nativos .
Realmente, ficar ali na Ponta de Humaitá me fazia muito bem, e eu estava muito desligada do que o senhor Garcia falava, mas era impossível ficar assim muito tempo, o homem gostava de atenção, e falava,  falava, falou tanto que tive de escutá-lo.
-Eu não disse-te que esta história de dividir o Brasil em dois governos não ia dar certo? O Rei determinou que fosse restaurado o governo geral com sede aqui, tudo como era antes.
Vista Forte São Marcelo
- Eu sei sim, isto aconteceu no ano de 1577, acho eu, e a determinação foi dada  Governo Português e foi nomeado o Governador Geral do Brasil, o Sr. Lourenço da Veiga. Como foi o governo dele Sr. Garcia?
- Como posso saber, o homem mal acabou de chegar, mas ao que parece que é um homem enérgico e de coragem.
- Pelo que li, é sim e ele vai ter muitos problemas na Paraíba.
-Paraiba?
-Sim senhor Garcia na Paraíba
-Ele vai de expulsar franceses e dominar os potiguares, que o senhor sabe, são guerreiros e a maior nação indígena do Brasil no nordeste, além de aliados dos franceses.
-Já se foram muitas expedições e ninguém consegue detê-los.
-Pois é, mas o Lourenço da Veiga vai enviar uma nova expedição, que será organizada por Chistovão Barros[2] e Cosme  Rangel[3], mas também esta expedição não teve grande êxito.
- O Senhor não vai fornecer homens para esta expedição Sr. Garcia?
Igreja da Misericórdia -
dia da festa de Santa Barbara
-Ainda não fui solicitado, o governador acabou de chegar, e tú és que estás a informar que esta expedição sairá daqui, tu e tuas bruxarias e adivinhações.
-Tá bom senhor Garcia, um dia falaremos mais sobre isto. Todavia, o senhor deve saber que a qualidade do pau brasil[4] da Paraíba é reconhecida pelos estrangeiros, e é por isto mesmo que os franceses e holandeses insistem em visitar o nosso litoral e se juntarem aos índios. [5]
De repente o Sr. Garcia disse-me: Vou embora, tenho de visitar as olarias e ver o gado que ainda se encontra aqui, mas quero saber mais a respeito deste novo governador. Ele já está bem velho e não sei quanto tempo vai aguentar, portanto, quero saber  antes de todos o que vai acontecer nesse período que ele vai governar, e tu podes informar-me. Dizendo isto virou-se de costa e desapareceu atrás da Igreja, deixando-me, mais uma vez, atônita com a dúvida se tudo isto ocorrera mesmo, ou era fruto da minha imaginação e da minha grande vontade de saber a história deste meu imenso Brasil e, principalmente, da minha terra - a Bahia.  



[1] Aldeamento- eram os ajuntamentos indígenas que eram organizados coordenadamente, em lugares  escolhidos pelas autoridades coloniais, para onde vinham  os índios de diversas povoações, após o descimento, que era a retirada dos índios da sua própria aldeia para se reunirem nas comandadas pelos missionários, para que se convertessem ao cristianismo. Esta estratégia fazia parte da política colonial portuguesa em relação aos gentios, que deveriam se converter ao  cristianismo, abandonar a  sua própria cultura, enfim, deixarem de ser bárbaros para adentrarem ao mundo civilizado, embora, na realidade, este foi o caminho encontrado pelos portugueses para a utilização de mão de obra barata, completamente dócil. A contribuição da Companhia de Jesus foi fundamental nesta estratégia, e embora o pretexto da conversão dos adultos e a educação das crianças tenha sido observado, não afastou a utilização da mão de obra indígena, sem quaisquer ônus, pelos próprios missionários jesuítas, proprietários de grandes extensões de terra. Sobre os indígenas do Brasil ler: HEMMING John , Ouro Vermelho,.São Paulo, Edusp2007, (tradução Carlos Eugenio Marcondes de Moura).
[2] Chistovão de Barros -  Provedor Mor da Fazenda  e foi Provedor da Santa Casa de Misericórdia em1587
[3] Cosme Rangel de Macedo veio para o Brasil como Ouvidor Geral, com a doença do  governador Lourenço da Veiga, fez parte da Junta que governou o Brasil até a chegada do novo governador Manoel Telles Barreto,
[4] Pau Brasil – denominado pelos indígenas  – ibirapitanga.
[5]  Segundo os historiadores,” desde 1570, os índios, insuflados pelos franceses, com quem conviviam nas terras da Paraíba e Rio Grande, incursionavam em Itamaracá e Olinda, ameaçando a florescente Capitania.e em 1574 ocorreu o massacre e Tracunhaém, resultante do ato do cristão-novo Diogo Dias, senhor de engenho em Goiana, a 60 Km da futura capital paraibana e a 40 Km de Itamaracá, reter uma cunhã potiguara, filha do principal Iniguaçu, que havia se casado com um mameluco. O principal da tribo não gostou desse seqüestro e, instigado pelos franceses,  assaltou o engenho, matando todos os seus moradores. Da família de Diogo Dias escaparam dois filhos, porque não se encontravam no engenho. Envaidecidos dos seus feitos, passaram os índios a fustigarem a ilha de Itamaracá, preocupando os habitantes de Olinda, os quais temiam a qualquer momento um ataque indígena.” Luiz Hugo Guimarães, Historia da Paraíba – www..ihgp.net/luizhugo/a_conquista da paraiba.htm. acessado em 31/07/2018.




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