terça-feira, 19 de outubro de 2010

Todo o sábado era assim...

As duas já sabiam: sair no sábado somente depois da casa limpa e arrumada. As tarefas eram divididas. Quem limpava a cozinha, o banheiro, o quintal em uma semana, na semana seguinte seria a responsável pela limpeza dos quartos e sala.

Não havia qualquer discussão, as duas já sabiam que aquilo tinha de ser revezado. Era como se fosse uma obrigação de fazer que não podia deixar de ser cumprida, pois, sujeita à sanção.

As duas já trabalhavam durante a semana toda, já contribuíam com as despesas da casa e tudo mais, mas o sábado não foi modificado. A obrigação tinha de ser cumprida antes de qualquer coisa. Se um compromisso fosse marcado para o final de semana, certamente, ele somente começaria depois do meio dia, antes disto, nadica de nada.

Acostumaram-se tanto a isto que o físico já pedia o cumprimento da obrigação, pois sentia falta do esforço, do exercício.

Bom, é necessário esclarecer que, antes delas trabalharem fora, as tarefas diárias domésticas também eram divididas. Quem lavava prato do café da manhã em um dia, no outro lavava o do almoço, e dia seguinte o do jantar, aí já tinha uma terceira participante no revezamento, uma filha de criação da dona da casa. Lógico que quem lavava os pratos do jantar saia em vantagem, porque a quantidade de pratos era bem menor, afinal, nem sempre jantavam. A família era numerosa, e comer meio dia e também à noite não era possível em todos os dias da semana. Um pão “cacetinho” com café preto, porque leite nem pensar, era o suficiente; resultado: de 8 a 10 xícaras de café, a leiteira, uma a duas colheres pequenas, e tudo resolvido.Não pensem vocês que a faca foi esquecida, é que nem sempre havia manteiga, ou margarina, para passar no pão. Se houvesse, apenas uma faca era utilizada, e quem a usava para passar em todos os pães era a mãe, caso contrário, o pote da manteiga só dava para um dia, o que era um desperdício para aquele artigo de luxo.

Mas vamos falar mesmo da faxina; era assim que se denominava a limpeza do dia de sábado. Não dar faxina ou fazer faxina no sábado, o que era normal em muitas casas, era sinônimo de “porcaria”, ser porco.

Começava cedo. Faxina que se prezasse tinha de ser completa, o que significava uma mudança semanal para o meio da rua. Todas as coisas eram retiradas de dentro de casa. Sofás, camas, móveis de sala, tudo que podia ser carregado sem grandes dificuldades. Todos os colchões ao sol, quando este brilhava, caso contrário, eram retirados na mesma, mais de um cômodo para outro da casa. O grande problema de tirar as coisas dos quartos é que, casa de pobre vocês percebam como é, tudo fica acumulado embaixo da cama: e é um tal de tirar caixa e sapatos e tantas outras coisas, que só isto levava uma boa parte da manhã.

Depois de tudo do lado de fora, com direito à visitação pública dos pertences da família, a coisa pegava fogo dentro da casa, ou melhor: uma inundação acontecia. Pensa que é esta história hoje de passar um paninho molhado? Nada disto! Água, muita água, baldes e mais baldes de água. Sabão? Sim sabão! Não era detergente, ou qualquer outro produto, que hoje existe aos montes, era sabão mesmo. Antes, quando não existia o sabão “Rinso”, que era em pó, era o sabão azul que era dissolvido e jogado no chão. Porra era bom ter cuidado porque, se a quantidade fosse muita, passava-se mais tempo tirando a espuma e a saída à tarde já estava comprometida.

Bom, depois de muita água, sabão, mais água, era a vez de entrar em cena o rodo. Bom e grande exercício para braços e peitos! Os últimos ficavam duros, tesos, rijos, acho que por isso mesmo hoje em dia as mulheres recorrem a outros meios, já não se exercem tarefas domésticas como antigamente, e os exercícios quase “naturais” tiveram de ser substituídos. Retirado o excesso de água com o rodo, vinha a pior hora desta primeira parte: secar o chão com o pano de chão, claro! O grande problema era a irregularidade do chão da casa. Havia lugares que a água empoçava e a merda tava feita, muito tempo gasto com o pano e o balde. Resultado: as mãos perenizaram as tarefas, até hoje se pode perceber os calos, que se acentuaram, mais ainda, com o volante do carro. Ninguém entende porque uma “doutora” tem calos nas mãos, esquecendo-se que as doutoras não nascem doutoras, se fazem doutoras, mas antes disto já se “diplomaram” em muitas coisas.

Alívio! 9.30 da manhã, quartos e salas lavados. Dá-se uma trégua ao chão. Mas as mãos, braços e pernas continuam em atividade. Hora de passar óleo de peroba nos móveis. O pior trabalho nesta fase era limpar a estante de livros, cuja quantidade parecia multiplicar-se quando era momento da limpeza, pois, quando era o da pesquisa, sabia-se mínimo: lembram-se daquelas enciclopédias do “saber”, lá existia; tinha alguns romances, coleções compradas em bancas de revista: Jorge Amado era o privilegiado da casa, quase a coleção completa dos seus livros, edições pequenas, no tamanho claro, com a capa vermelha e letras douradas para os títulos: “Mar Morto”; “Capitães de Areia”; “Tenda dos Milagres”; “Agonia da Noite”; “Ásperos Tempos”; “ABC de Castro Alves”; “Jubiabá” e outros. Não tinham todos os livros deste autor porque ele viveu muito e escreveu bastante. Muitos xingamentos até a retirada total dos livros, folhas soltas, carrinhos, bonequinhas, puta que pariu! Uma merda mesmo, mas de nada adiantava gritos histéricos, queixas: aquilo tinha de ser feito e pronto.

Um detalhe; proibição total de trânsito por dentro de casa. Pensem os cacetes que quebravam quando alguém entrava na casa. Todos tinham de ficar do lado de fora aguardando o final da “faxina”.

Enquanto isto, a responsável pelos fundos da casa cumpria a sua rotina. Armário debaixo da pia: todas as panelas retiradas e lavadas. Odiava aquele trabalho, porque como sempre a pia vazava e aquilo estava uma porcaria só. Com nojo, ou não, tudo tirado para fora do armário, todas as coisas lavadas e recolocadas. Alguma sacana, no seu dia de pratos, escondera uma panela suja dentro da pia, aí a desgraça era total, a panela dava bicho e a idiota que estava no dia da tarefa tinha de, vomitando ou não, berrando ou não, limpar a porcaria toda.

Este sempre foi o primeiro trabalho a ser feito na cozinha, porque era mesmo o pior. A geladeira já havia sido desligada, as bocas do fogão colocadas no molho com vinagre. O fogão quase todo desmontado, porque se tirava tudo, desde as prateleiras do forno, à tampa de cima, os botões de acender as bocas, etc., etc.

Durante a espera de a geladeira descongelar: lavava-se o tampo do fogão,tirava-se as crostas de gordura das grelhas, limpava-se prateleiras. Aquelas prateleiras que eram forradas com papéis de embrulho coloridos com desenhos feitos, com uma grande perícia, para que tudo ficasse igual, com tesouras grandes para permitir que as dobras feitas no papel fossem cordatas. “Quadradinhos, triângulos, rodinhas”, até que ficava bonitinho, se não fosse mesmo o tremendo mal gosto de se colocar aquilo, mas era norma e pronto.

Há! Ia esquecendo: antes de tudo, na casa toda, tinha de ser passado no telhado o “vasculhador”. Desgraçado! Aquela porra vasculhava mesmo, o que caia de sujeira do telhado não estava no gibi. Resultado: acréscimo de trabalho, pois tinha de ser feita a limpeza em cima de guarda roupas, beirada superior das portas e janelas, divisórias de paredes. Casa de pobre é assim: as paredes divisórias não alcançam o teto e, portanto, a privacidade não existe. Quantos traumas se teria hoje, a psicologia moderna arranja desculpas para todos os erros e contradições do ser humano, por ter visto pais trepando, irmãos se bolinando, etc. Etc. O certo é que este trabalho acrescido era uma merda. Na sua semana, que era sempre a que a mãe mais gostava, o quadro do “Coração de Jesus”, que era enorme e ficava pendurado numa das pilastras da casa, entre o vão que se formava na confluência das paredes dos quartos e das salas era cuidadosamente limpo, tanto a parte da frente, quanto a de trás; afinal, Cristo também tinha cú, e não adiantava só lavar a cara.

Não bastando o “Coração de Jesus”, aquele em que Cristo aparece lindamente: louro com os olhos azuis e cabelos louros, completamente “racista”, com as duas mãos abertas com as palmas para cima, de onde raios coloridos saiam de cada um de seus dedos; o manto do de lá da casa era vermelho, e ele estava vestido com uma túnica bege, havia outros quadros, que passavam pelo mesmo processo de limpeza: pano molhado com álcool no vidro, óleo de peroba na moldura. O problema era o da ceia de Cristo, aquela porra daquela casa era religiosa mesmo, uma fé católica-ubandense sem fronteiras, a mãe recebia entidades, os meninos-erés “Cosme e Damião”, o velho São Lázaro – “Omolu”, e mais uns tantos outros caboclos itinerantes que insistiam em adentrar no corpo da mãe.

Sim, “A Ceia de Cristo” era um quadro que tinha a base em madeira e os apóstolos em alto relevo em metal; “prata”, era o que diziam. O certo é que estes filhos da puta, acho que eram onze, eram limpos com “Kaool” um produto que você passava nos metais, mas que só dava brilho se você o retirasse com um pano seco que era ferozmente esfregado na peça. Realmente dava um brilho retado, mas não era o produto que dava este efeito, isto se sabe: era mesmo a força empregada e o tempo da esfregação do pano na peça. Mais peito duro e braços musculados.

Voltemos à cozinha. Prateleiras limpas e o próximo passo eram as paredes. Lá vem água outra vez. As paredes da cozinha tinham azulejos até a metade, da metade até o teto era pintada, mas tinha de ser tinta óleo, exatamente para poder ser lavada. Escadas, bancos, cadeiras altas, tudo era usado neste momento. A lâmpada que fica pendurada tinha de ser retirada e lavada, a gordura se acumulava nela e na porra do lustre fudido que era colocado, não se sabe bem para que. Uma porra que tinha umas bordas verdes que ficavam completamente embaçadas pela gordura e que dava um trabalho danado para ser retirada.

Lavadas as paredes com água, vassoura e sabão; hora dos azulejos. Bom, lavar as paredes laterais não era problema, problema era lavar a parte da pia e a do fogão. A da pia por causa do limo causado pela água e pela falta de cuidado dos lavadores de prato, que deixavam a sujeira ficar ali e acumular; a do fogão, pela gordura que grudava em toda a parede circunvizinha. Aí tinha de ser jogada água fervendo, e o que se fazia mesmo. Um perigo, mas necessário. Ainda não existia desengordurantes, quando muito uma "Q-Boa" do plástico verde, lembram? Nas junções das peças dos azulejos uma escovinha de dente, já usada, resolvia a estória, mas para isso horas eram perdidas. Esta escovinha também era usada na limpeza do fogão. Olhe que depois da limpeza não se sabe como ele funcionava, um verdadeiro milagre.

Vez da geladeira, felizmente ela não tinha muita coisa dentro. O problema era o descongelamento. A desgraçada fazia um gelo da porra, quase a porta do congelador não fechava, velha e com problemas. Mais água quente. A água era jogada  até que todo o gelo dissolvesse: demorava, mas a questão era resolvida. Tudo limpo, inclusive o armário de porta vermelha e de dois andares. Hora de lavar o chão, mais água e sabão, rodo, pano de chão, mãos doendo, calos crescendo.

A esta altura, já lá ia o dia passando e alcançando às 10.00 da manhã. A comida era feita na sexta à noite exatamente para que ninguém tivesse de entrar na cozinha, quando dos procedimentos em execução.

Enquanto este processo se dava na cozinha, quem estava responsável pela sala e quartos já começava outro procedimento. Agora era a vez da cera parquetina vermelha. Sim, esta era a cor do chão da casa. A cera era passada manualmente: o vivente, de quatro, se enfiando por baixo de móveis, quando estes não podiam ser deslocados, passando a cera que era em pasta: mais um grau de dificuldade. Ai daquele que ousasse passar ali naquela hora: porrada certa.

Cera passada, momento de espera, uma hora, mais ou menos, esperando a porra secar. A cozinha tinha também de ganhar o seu brilho, e a cera se estendia por baixo de armários, fogão, geladeira. A área da varanda também tinha o seu dia de glamour e a cera ficava ali aguardando que o brilho viesse e a cera mostrasse as suas qualidades.

Durante o processo de espera da secagem da cera, uma pausa para quem era a responsável pela sala e quartos, pausa que era aproveitada para bater os sofás e limpar as coisas que ficaram do lado de fora, mas também era a hora de perceber se a Natalina já tinha acordado. Natalina era uma vizinha que morava nos fundos da casa, aliás, fundo e lateral direita, pois a sua família inteira morava ali, quando se fala em família inteira é porque o povo casava e ia ficando ali mesmo, resultado: uma grande e imensa favela nos fundos e na lateral da casa.

O barraco de madeira da Natalina ficava mesmo no fundo. O barraco era uma desgraça, tudo feio e acumulado, umas coisas em cima das outras; era escuro, roupas jogadas por todos os cantos, enfim, um barraco mesmo, mas tinha uma aparelhagem de som. Uma radiola que era uma arma à noite e aos domingos, mas no sábado era a melhor coisa que podia existir, tanto que ficavam rezando para que ela acordasse mais cedo para começar o show.

A responsável pela cozinha e banheiro, agora, estava nos fundos da casa, na mesma ansiedade dos outros, esperando pela Natalina, mas “enquanto esperava, carregava pedra”, isto é: lavagem do banheiro. O banheiro era pequeno, mas o processo de limpeza grande. Os azulejos tinham de ser lavados com “bombril” e sapólio, um pozinho branco: não pensem errado, o pozinho branco era pó para limpeza mesmo, as junções deles lavadas com a escovinha de dente, a do banheiro, não se preocupem, porquanto não era a mesma da cozinha. Vaso areado todo branquinho sem qualquer mancha, enfim, todo um processo, mas o desgraçado do banheiro ficava limpo e cheiroso para receber as cagadas de mais de nove pessoas, habitantes normais daquela “vivenda” e mais os visitantes freqüentes.

O intervalo entre o banheiro e a cozinha era esfregado com vassoura, sapólio, K-Boa, que já tinha a medida certa que era dada pela gerente geral: a mãe dividia os produtos de limpeza, caso contrário, só davam mesmo para uma semana.

A lavanderia já estava de molho desde cedo. A porra pegava um limo danado, porque ficava ao tempo e era de concreto, um cimento rugoso que pegava toda a sujeira do mundo e machucava as mãos e dedos, muitos pedaços arrancados na hora da esfregação. Bom, tudo sobre controle, e começava-se a ouvir movimentação na casa do fundo. Felicidade total! Natalina acordara: a festa ia começar!

Agora estava na hora do escovão. Vocês sabem o que é o escovão? Uma escova grande macia enfiada num pau, que era utilizada para dar brilho no chão. Você passava em cima da cera já seca, e, não há como negar, era mesmo um “milagre”. O chão ficava espelhando e os peitos e braços rijos. Quando não tinha o escovão, ou por qualquer motivo ele não podia ser usado porque era velho, ou porque tinha quebrado o pau, colocava-se um dos irmãos menores sentado num pano grande e o desgraçado ia sendo puxado por toda a casa em cima deste pano, num vai e vem retado, até obter o brilho. Neste processo muitas vezes participavam os visitantes habituais. Amigos dos irmãos homens das faxineiras.

A esta altura, o som da casa de Natalina já estava ligado. Ouvia-se, então, o pedido do outro lado: “aumenta o som Natal”, e ela, querendo mostrar as potencialidades do seu “som”, aumentava mesmo, e a limpeza ganhava ares de festa. O merengue comendo no centro, e isto ia durar até o dia seguinte, a não ser que tivesse alguma porrada na casa ao lado para fazê-lo parar, como de costume.

Já estamos lá pelo 12.30. Tá quase tudo terminado. Vaquinha para a cerveja, amigos chegando, ajuda para colocar os móveis para dentro nos seus devidos lugares. Camas feitas com as colchas de domingo. Flores de plástico lavadas nos jarros. Panela da feijoada no fogo esquentando.

A música comendo no centro, “Tip, tip, tiii. Tan ran ran, ran ran ran”. Música da Guiana francesa, uma maravilha! Acabada limpeza da casa e ficava a sensação do dever cumprido.

A cerveja descontraia os músculos e apagava os efeitos do cansaço e, ainda bem não tinham acabado a limpeza, já começavam a ensaiar a da próxima semana, pois se dava início ao processo da sujeira da semana seguinte, quando os efeitos dela começavam a se fazer notar com a utilização do banheiro, por muitas e diversas vezes. A cozinha, já em plena atividade, começava a readquirir a sua oleosidade, pois os tira-gostos de chouriça ou salsicha fritas cumpriam a sua função estética: sujar as paredes de gordura, deixá-las brilhantes e amareladas. Lá pelas quatro, cinco da tarde, se as limpadoras não tivessem compromissos, o almoço era servido e a festa continuava até que não houvesse mais dinheiro para a cerveja, que tinha de ser dividida, pelo muro de madeira do fundo, com a companheira responsável pela alegria.

O dia acabava: todos felizes e quase “bêbados”: a farra continua no próximo sábado.



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