segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Transportando vida


Quase dois meses após a chegada, as malas ainda estão por desfazer. Parece que querem ficar prontas para a próxima partida, não gostam de ficar paradas, gostam do movimento  dos aeroportos, adoram ser jogadas nas bagageiras dos aviões, dos autocarros, dos trens. Se ficam ali no canto do quarto  começam a envelhecer, empoeirar-se, sentem faltam do manuseio das mãos dos carregadores, mesmo sabendo que são maltratadas, que são jogadas de um lado para outro como se não carregassem a vida de alguém, as suas lembranças, sonhos e realizações.
É, elas estão tristes. Uma delas, a mais pesada, esta cheia de livros, carrega cultura, talvez inútil, da sua dona, que insiste em continuar aprendendo e apreendendo. Ali está um pouco do resultado de quase 6 anos de estudos. Ela não quer ser mesmo aberta, ela sabe que se tudo que está  ali for retirado, a sua chance de ir e vir estará mais de que limitada, aliás,poderá mesmo desaparecer. O que será dela então? Qual será a sua utilidade? Deixará de transportar o saber, o conhecimento, os sonhos, a vida da sua dona. Não ela não quer isto. Quando a sua proprietária entra no quarto onde ela jaz ali num canto frio, ela chega a tremer:

Lisboa -Tejo
_ “ Se for agora? Se ela resolver  me tirar a esperança neste momento? O que faço? Não quero viver neste marasmo, não quero  ficar aqui parada, quero a vida, quero voar, quero chegar no desconhecido, quero  atravessar o Atlântico,  ir ao Mediterrâneo,  navegar pelo Índico, passear pelo Tejo, pelo Douro, ir ao Alentejo, a Galicia, a Barcelona, andar pelas margens do Rio Verdugo, pelos andares do El Corte Inglês,  Berlim.  Quero ser tocada por mãos desconhecidas: brancas, pretas, amarelas; não interessa, quero é ser tocada. Ouvir plavras que não conheço, ser trocada, enfim, ser uma mala de viagem. Será que ela não entende isto?”
A dona entra e sai, sequer olha para ela.
 – Bom ao menos não foi hoje que perdi a esperança!
É noite, vê que a luz se acendeu, a dona se aproxima, acorda intranquila,
 _ O que será agora? O que ela vai fazer? Será que decidiu que vamos voltar para o outro lado?
Engano, ela  pegou a sua companheira, a menor, abriu e de  lá retirou  algumas coisas: lembranças que trouxe para algumas pessoas, coisas simples, mas lembranças, que comprovam que as pessoas não foram esquecidas. Sua dona é assim, viaja, fica muito tempo fora, mas não esquece de muitas pessoas, porque sabe, perfeitamente, que para estas, um simples gesto, uma lembrança  que custou  um euro, um dolar que seja, é sinônimo de atenção e de muita alegria.
A dona pega as coisas, fecha a mala, apaga a luz e sai do quarto. Triste volta a tentar dormir, ver se outro dia vem logo, e com ele a partida, a ida, um retorno, sei lá o que, o que quer é deixar aquele canto frio, que não lhe faz bem, também não quer  parar embaixo da escada ou em cima de algum  porta malas em um  guarda roupa qualquer.  A poeira lhe faz mal, ela não respira direito. A frieza lhe deixa fraca, encolhida. Ela não quer isto, está acostumada a se mostrar nos carrinhos dos aeroportos, gosta de ver quando os homens da alfândega  mandam a sua dona abri-la;  eles  acham que ela leva “muamba”  para vender. Ela sempre ri quando vê a cara dos “parvos” quando  me abrem, ou então às minhas companheiras  e dá de cara  com um livro: “ A História do Direito Português de Nuno Espinosa;  A Filosofia do Direito de Miguel Reale,  A História de Moçambique René Pelissier.   História da Africa  de   Bokolo; Constituições Portuguesas de Marcelo Caetano; O Caleidoscópio do Direito de Antonio Hespanha, dentre outros.  Intrigados  fazem muitas perguntas; sua dona, mesmo de mau humor, reponde, não tem o que esconder.
Lisboa - Alto de Santa Catarina
Em uma das suas últimas viagens, chegando em Lisboa vindo de  Maputo, eu estava enorme, ela só pode levar a mim e mais uma  companheira bem menor, mas teve de pagar muito execesso. Nós duas, eu e a minha irmã menor, víemos  abarrotadas, as coisas dentro pareciam sardinha em lata, mas estavamos ambas felizes,  vinhamos de mais uma viagem de “saber”, voltavamos com uma maior bagagem de conhecimento. Trazíamos um pouco  da cultura moçambicana dentro de nós, sabíamos que  estavamos contribuindo para o conhecimento da África, este tão ilustre e desconhecido continenete. A nossa dona  voltava de um trabalho de pesquisa no arquivo histórico de Maputo, onde foi fazer o que mais gosta, que é tentar conhecer  melhor a história do povo moçambicano,as suas instituições, o seu direito  enquanto aquele país foi  colônia portuguesa.  Ela, que já tinha enviado  20 kg de papel (cópias de documentos) pelo correio, com um medo danado daquilo não chegar  em Lisboa, estava trazendo mais uns 20 Kg dentro de nós,  muitas cópias que traziam a história, que eu e minha irmã  transportávamos cheias de orgulho, afinal, não fora nós,  ela não  poderia trazer tais documentos.
Documento Arquivo 
 No aeroporto de Lisboa, depois de umas duas horas de espera pela bagagem, minha dona foi parada pelos agentes da alfândega. Mais uma vez, com muito mau humor, abriu a primeira mala, eu, a maior, e com muita surpresa o “gajo” português lhe pergunta o motivo de tantas cópias, e ela lhe diz:
_ “ Vim de Maputo onde fiz uma pesquisa sobre a justiça  colonial”.
_ Por que a senhora faz isto?
_ Porque  faço o doutorado em História da África, aqui na Universidade de Lisboa.
 O “gajo fica estupefacto”! História da Africa! Interessante: mas as suas  palavras não escondem a sua perplexidade: Então alguém tem interesse em  estudar  Historia da Africa? É o pensamento comum, aliás a minha dona já ouviu muitas exclamações  por causa disto. Sou  fechada e o homem sequer  olha a  minha irmã mais nova.
Estátuas típicas Moçambique
Pois é, o que eu quero é isto, fazer com que  as pessoas tenham estas surpresas, quero valorizar a minha dona, e só posso fazê-lo se estiver em movimento; aqui, parada, vou terminar é tendo artrose. As minhas rodas vão ficar emprerradas, os meus feches vão enferrujar, a minha pele vai ficar fraca, e ela, a minha dona, vai me aposentar. Se viajar, vai comprar outra  parente, uma prima mais nova, mais moderna, e eu vou ser fadada ao esquecimento, vou morrer de velhice e tédio, embaixo daquela maldita escada de madeira.
Mais um dia que se passa, e a minha dona não se decide. Ouvi  dizer que tem de voltar a Lisboa ainda este ano. Estou torcendo para isto. Também ouvi  comentários que ela quer ir ao Chile e a Argentina:
Carne seca com fungi - Comida típica de Angola
- Vamos lá! Mesmo uma viagem no mesmo continente vai me fazer bem, e à minha dona também, ela que já anda triste e entendiada, porque como eu, sabe que o movimento, que a construção do saber, que a realização dos sonhos, faz  uma vida crescer, se agigantar, e ela merece ser este gigante que sonha com uma vida  de muitas experiências, de muitas idas e vindas.Minha dona precisa entender que não pode ficar, ela, também, parada, não é o seu perfil; por outro lado, dentro da sua casa, olhando as paredes, não terá chance de encontrar um grande amor, aquele que ainda esta por vim, aquele com quem ela sonha e que eu, a sua grande companheira,  torce para que seja logo encontrado, de preferência em um local bem distante daqui, pois assim vou cumprir a minha missão, que é transportar os sonhos da minha dona, as suas realizações, a sua vida, que a acompanha onde quer que ela vá  impregnada nas suas coisas, nos seus pertences, nos seus livros,que eu, prazeirosamente, levo dentro de mim..

2 comentários:

  1. Amei a declaração de fidelidade e companheirismo de suas amigas de viagem!

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  2. Com certeza tá mais do que na hora de proporcionar outra viagem mesmo sabendo que as malas vão ser maltradas,o importante e se sentir feliz !

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