Quase dois meses após a chegada, as malas ainda estão por desfazer. Parece que querem ficar prontas para a próxima partida, não gostam de ficar paradas, gostam do movimento dos aeroportos, adoram ser jogadas nas bagageiras dos aviões, dos autocarros, dos trens. Se ficam ali no canto do quarto começam a envelhecer, empoeirar-se, sentem faltam do manuseio das mãos dos carregadores, mesmo sabendo que são maltratadas, que são jogadas de um lado para outro como se não carregassem a vida de alguém, as suas lembranças, sonhos e realizações.
É, elas estão tristes. Uma delas, a mais pesada, esta cheia de livros, carrega cultura, talvez inútil, da sua dona, que insiste em continuar aprendendo e apreendendo. Ali está um pouco do resultado de quase 6 anos de estudos. Ela não quer ser mesmo aberta, ela sabe que se tudo que está ali for retirado, a sua chance de ir e vir estará mais de que limitada, aliás,poderá mesmo desaparecer. O que será dela então? Qual será a sua utilidade? Deixará de transportar o saber, o conhecimento, os sonhos, a vida da sua dona. Não ela não quer isto. Quando a sua proprietária entra no quarto onde ela jaz ali num canto frio, ela chega a tremer:
Lisboa -Tejo |
_ “ Se for agora? Se ela resolver me tirar a esperança neste momento? O que faço? Não quero viver neste marasmo, não quero ficar aqui parada, quero a vida, quero voar, quero chegar no desconhecido, quero atravessar o Atlântico, ir ao Mediterrâneo, navegar pelo Índico, passear pelo Tejo, pelo Douro, ir ao Alentejo, a Galicia, a Barcelona, andar pelas margens do Rio Verdugo, pelos andares do El Corte Inglês, Berlim. Quero ser tocada por mãos desconhecidas: brancas, pretas, amarelas; não interessa, quero é ser tocada. Ouvir plavras que não conheço, ser trocada, enfim, ser uma mala de viagem. Será que ela não entende isto?”
A dona entra e sai, sequer olha para ela.
– Bom ao menos não foi hoje que perdi a esperança!
É noite, vê que a luz se acendeu, a dona se aproxima, acorda intranquila,
_ O que será agora? O que ela vai fazer? Será que decidiu que vamos voltar para o outro lado?
Engano, ela pegou a sua companheira, a menor, abriu e de lá retirou algumas coisas: lembranças que trouxe para algumas pessoas, coisas simples, mas lembranças, que comprovam que as pessoas não foram esquecidas. Sua dona é assim, viaja, fica muito tempo fora, mas não esquece de muitas pessoas, porque sabe, perfeitamente, que para estas, um simples gesto, uma lembrança que custou um euro, um dolar que seja, é sinônimo de atenção e de muita alegria.
A dona pega as coisas, fecha a mala, apaga a luz e sai do quarto. Triste volta a tentar dormir, ver se outro dia vem logo, e com ele a partida, a ida, um retorno, sei lá o que, o que quer é deixar aquele canto frio, que não lhe faz bem, também não quer parar embaixo da escada ou em cima de algum porta malas em um guarda roupa qualquer. A poeira lhe faz mal, ela não respira direito. A frieza lhe deixa fraca, encolhida. Ela não quer isto, está acostumada a se mostrar nos carrinhos dos aeroportos, gosta de ver quando os homens da alfândega mandam a sua dona abri-la; eles acham que ela leva “muamba” para vender. Ela sempre ri quando vê a cara dos “parvos” quando me abrem, ou então às minhas companheiras e dá de cara com um livro: “ A História do Direito Português de Nuno Espinosa; A Filosofia do Direito de Miguel Reale, A História de Moçambique René Pelissier. História da Africa de Bokolo; Constituições Portuguesas de Marcelo Caetano; O Caleidoscópio do Direito de Antonio Hespanha, dentre outros. Intrigados fazem muitas perguntas; sua dona, mesmo de mau humor, reponde, não tem o que esconder.
Lisboa - Alto de Santa Catarina |
Em uma das suas últimas viagens, chegando em Lisboa vindo de Maputo, eu estava enorme, ela só pode levar a mim e mais uma companheira bem menor, mas teve de pagar muito execesso. Nós duas, eu e a minha irmã menor, víemos abarrotadas, as coisas dentro pareciam sardinha em lata, mas estavamos ambas felizes, vinhamos de mais uma viagem de “saber”, voltavamos com uma maior bagagem de conhecimento. Trazíamos um pouco da cultura moçambicana dentro de nós, sabíamos que estavamos contribuindo para o conhecimento da África, este tão ilustre e desconhecido continenete. A nossa dona voltava de um trabalho de pesquisa no arquivo histórico de Maputo, onde foi fazer o que mais gosta, que é tentar conhecer melhor a história do povo moçambicano,as suas instituições, o seu direito enquanto aquele país foi colônia portuguesa. Ela, que já tinha enviado 20 kg de papel (cópias de documentos) pelo correio, com um medo danado daquilo não chegar em Lisboa, estava trazendo mais uns 20 Kg dentro de nós, muitas cópias que traziam a história, que eu e minha irmã transportávamos cheias de orgulho, afinal, não fora nós, ela não poderia trazer tais documentos.
Documento Arquivo |
No aeroporto de Lisboa, depois de umas duas horas de espera pela bagagem, minha dona foi parada pelos agentes da alfândega. Mais uma vez, com muito mau humor, abriu a primeira mala, eu, a maior, e com muita surpresa o “gajo” português lhe pergunta o motivo de tantas cópias, e ela lhe diz:
_ “ Vim de Maputo onde fiz uma pesquisa sobre a justiça colonial”.
_ Por que a senhora faz isto?
_ Porque faço o doutorado em História da África, aqui na Universidade de Lisboa.
O “gajo fica estupefacto”! História da Africa! Interessante: mas as suas palavras não escondem a sua perplexidade: Então alguém tem interesse em estudar Historia da Africa? É o pensamento comum, aliás a minha dona já ouviu muitas exclamações por causa disto. Sou fechada e o homem sequer olha a minha irmã mais nova.
Estátuas típicas Moçambique |
Pois é, o que eu quero é isto, fazer com que as pessoas tenham estas surpresas, quero valorizar a minha dona, e só posso fazê-lo se estiver em movimento; aqui, parada, vou terminar é tendo artrose. As minhas rodas vão ficar emprerradas, os meus feches vão enferrujar, a minha pele vai ficar fraca, e ela, a minha dona, vai me aposentar. Se viajar, vai comprar outra parente, uma prima mais nova, mais moderna, e eu vou ser fadada ao esquecimento, vou morrer de velhice e tédio, embaixo daquela maldita escada de madeira.
Mais um dia que se passa, e a minha dona não se decide. Ouvi dizer que tem de voltar a Lisboa ainda este ano. Estou torcendo para isto. Também ouvi comentários que ela quer ir ao Chile e a Argentina:
Carne seca com fungi - Comida típica de Angola |
Amei a declaração de fidelidade e companheirismo de suas amigas de viagem!
ResponderExcluirCom certeza tá mais do que na hora de proporcionar outra viagem mesmo sabendo que as malas vão ser maltradas,o importante e se sentir feliz !
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