sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Agradando o Estômago e o Espírito em Lisboa

Não pense que só tem bacalhau nesta terra. Aqui há uma variedade de pratos típicos que vocês nem vão acreditar, para quem gosta de peixe e frutos do mar então, realmente é de babar e satisfazer o mais requintado paladar.

Se você vier a Lisboa, tenho algumas recomendações, nada de sofisticado e nem de coisas caras, também posso indicar-lhe isto, mas acho que, quem vem aqui deve comer mesmo os pratos típicos portugueses, os pratos do dia a dia que eles comem, tanto em casa, quanto em restaurantes (tascas).

Primeiramente, uma advertência: não estranhe quando entrar em um restaurante e vir uma sala mínima, com mesas coladas umas às outras. Isto aqui é normal, há restaurantes, como o do Sr. Davi, que para a última pessoa da fila sair, aquele que estiver sentado junto à parede, tem de incomodar todos os outros clientes que estão sentados nas mesas anteriores. Não se acanhe se isto acontecer com você, aqui isto é normalíssimo e não há qualquer stress. Todos levantam na boa e ainda lhe cumprimentam, alguns até pedem desculpas, não sei bem por quê.

Há muitos pratos que são servidos em quase todos os restaurantes em dias específicos da semana; por exemplo: na segunda feira é costume servirem em muitos deles – Bacalhau com grãos- que é o bacalhau cozido com grão de bico, cebola, alho e claro, muito azeite, que neste prato, é colocado na hora que se come e em temperatura ambiente.

Aqui tem uma estória de pratos de verão e pratos de inverno: a exemplo de mocotó, que aqui chama - se mão de vaca. Sem dúvida que é feito de uma maneira completamente diferente do nosso, pois só se coloca mesmo a mão de vaca e chouriço cortado em rodelas, mas este prato só é servido durante o inverno, no verão ele desaparece por completo, você só come mão de vaca, no verão, se fizer em casa, ou então, comprar, como eu faço, a que vem enlatada, que quebra um galho retado. Normalmente é servida nos restaurantes dia de quarta feira, disputando o cozido à portuguesa, em algumas tascas servido neste dia.

O dia efetivo do cozido, em muitos, mas muitos restaurantes mesmo, é a quinta feira. Engraçado, se bem me lembro, na Bahia também é assim: pelo menos no “Mini Cacique” eu comia cozido na quinta-feira. Na minha casa, normalmente, era nesse dia, mas nada que obstasse que ele também fosse servido no domingo.

Quanto ao cozido, tenho de lhe dar uma indicação: se você realmente quer comer um belo cozido à portuguesa, primeiro prepare-se psicologicamente, porque ele é muito diferente do nosso, mas tão gostoso quanto, depois vá ao Sr. Davi. O nome do restaurante é "A Merendinha do Arco" e fica exatamente depois que você atravessa o Arco que fica no Rossio, não há como errar. A tasca fica em frente ao ANIMATOGRAFO - no qual não recomendo você entrar depois de comer o cozido, mas se quiser ver um pouco de sexo explícito de péssima qualidade, e com uma grande maioria de pessoas não muito privilegiadas pela natureza, tanto quem é expectador, quanto quem se apresenta, vá em frente, é só atravessar a rua.

Tasca do Sr. Davi-Petiscos
Bom, voltemos ao cozido. Não fique chateado se tiver de esperar um pouco. Aguarde mesmo, aproveite e dirija-se até ao balcão e diga ao Sr. Davi, ou ao filho dele de nome Felipe, que você é meu amigo, mas fale assim: “sou amigo da Esmeralda”. Tenho certeza que você será hiper bem tratado, não que seja necessário ser meu amigo para que isto aconteça, mas terá uma atenção especial. O Sr. Davi pode lhe oferecer uns petiscos: torresmo, peixinho frito, peixe de escabeche, queijo e muitas outras coisas:, coma tudo! Tenho certeza que vai gostar.

Para acompanhar o cozido peça o vinho da casa, é bom e barato, não gaste dinheiro com os mais finos, deixe para outra ocasião. Se você não gosta de cozido, o que eu duvido, pode pedir qualquer coisa lá no seu Davi, tudo ali é bom, quem faz a comida é a esposa dele, que você pode ver em plena atividade na parte de cima do restaurante- um mezanino, onde funciona a cozinha.

Peça a Seu Davi uma patanisca para experimentar - uma espécie de fritada de bacalhau - que é mesmo uma maravilha.

Quando acabar de comer peça um”Gardhu” da casa, não espere whisky, o que vai tomar é uma bagaceira. É mesmo este o nome: “bagaceira”, uma cachaça típica de Portugal, forte para cacete, mas quem é do Brasil não precisa se preocupar com isto, pois temos mais fortes.

Se você gostar de marisco, não deixe de ir numa marisqueira, tem várias em Lisboa. Os mariscos, na sua grande maioria, são vendidos a quilo. Você pode comer sapateira – um caragueijão imenso, lagostins – eu não como porque não gosto, mas é uma lagosta pequena, o intermediário entre o nosso pitu e a nossa lagosta. As lagostas são imensas e você pode escolher no viveiro a que vai querer, isto também acontece com peixes, você pode escolher o que quiser na montra (vitrine). Mexilhões, navalheiras, canivetes, ameijoas, berbigão. Várias espécies de búzios. Tem nome de marisco que não acaba mais.

Eu não como mariscos, a não ser as navajas, que aqui se chama canivete, e as ameijoas, estas últimas aprendi a comer aqui em Lisboa, as primeiras comi em Espanha. É como se fosse lambretas pequeninas cozidas com muito alho, coentros, azeite e manteiga. Rapaz! Não nego não, é mesmo de arrombar. Mas tem um detalhe em relação a essas ameijoas: o nome do prato que você vai pedir é “ameijoas à bulhão pato”, e eu recomendo que você atravesse o Tejo e vá comer lá em Cacilhas, no restaurante que fica exatamente na saída do cais dos barcos, onde você desembarca mesmo, não dá para errar- "O Farol" é o nome dele, ainda aí você pode comer uma outra coisa que, também, aprendi a gostar aqui, até porque nunca vi isto em Salvador- Chocos, é este mesmo o nome, é um molusco, parente próximo da lula. Peça ele grelhado, tenho certeza que você nunca vai esquecer do bendito, mas você pode optar pelo polvo à lagareiro, neste mesmo restaurante. Nem vou dizer como é para não estragar a surpresa.

Bom, mas eu ainda não falei no bacalhau. Você pode comer bacalhau em qualquer tasca em Lisboa, vai ser bom: Pode ir ao “Baleal” que fica na Rua da Madalena, pode pedir em seu Davi, pode ir a Belém nos restaurantes que ficam em frente ao jardim, enfim, você pode comer bacalhau sem susto em Lisboa, em qualquer lugar, mas meu amigo não deixe de ir ao “Zé da Mouraria”, na sexta feira, e pedir o bacalhau á lagareiro, olhe que você vai ficar extasiado, primeiro pelo tamanho do prato, segundo pela qualidade dele. O bacalhau é assado na brasa, fica se desfazendo, quero dizer, você vai tirando ele do prato em lascas. Vem acompanhado de batas assadas e grão de bico cozido e nadando no azeite. É qualquer coisa de extraordinário. O Restaurante “Zé da Mouraria” fica na Mouraria, lógico, você entra na Rua do Capelão, uma rua que fica atrás do Centro Comercial da Mouraria, que fica na Praça Martim Moniz, mesma praça onde está o Hotel Mundial. Na entrada da rua tem uma estátua com um violão em homenagem ao Fado, dobre a primeira à direita, pronto, você chegou, o restaurante fica no lado direito em frente a um banco de madeira, colocado do lado de fora, para que as pessoas esperem a sua vez. Detalhe: tem de ir á pé, na rua não trafega carros. Recomendo que faça reserva, o negócio é bom e concorrido mesmo. Delicie-se.

Se, depois disto, ainda quiser comer bacalhau, se não se fartou, em outro dia vá até o Parque das Nações no restaurante que fica na alameda dos restaurantes e que se chama Sabores do Atlântico. Lá peça “Couvada de bacalhau”. Surpresa, não vou dizer como é de maneira alguma, sou vou lhe garantir que é bom a mais não poder. Acompanhe o bicho com um vinho do Alentejo, qualquer deles, mas se a grana tiver curta, tome o “Monte Velho” sem susto, ele também é de lá da região.

Para quem gosta de doces, o português não passa sem uma sobremesa, há bolos de bolacha, mousse de chocolate, que é melhor ser misturado com o cheirinho (cachaça) e, não estranhem, eles comem arroz doce como desert. Não sei como alguém pode comer arroz doce como sobremesa, principalmente depois de ter comido cozido, mas aqui é assim. Tem uma zorra que se chama “Molotov”, acho mesmo que é um. Não gosto da aparência e, com certeza não deverei gostar do sabor, nunca me arvorei a provar, mas o povo gosta muito e come bem, aliás, eles são realmente fanáticos por doces.

Eu poderia ficar aqui muito tempo falando de comidas e restaurantes, mas estas indicações são suficientes para que você possa saborear um pouco da grande culinária de Portugal, onde você ainda pode comer: Galinha de cabidela (molho pardo, mas com arroz já dentro); feijoada de chocos; caldeirada de peixe: açorda de camarão ou de marisco; mariscada; arroz de marisco (paella menos seca); arroz de pato; arroz de polvo; carne de porco alentejana (uma mistura de carne de porco com mariscos) Chanfana (acho que é assim que escreve – borrego no vinho); carne de porco preto; Leitão de Bairrada; leitão de Negrais; entremeadas grelhadas. Têm muito, mais muito mais coisas mesmo, mas fico por aqui esperando que você se delicie e me diga se gostou das recomendações.

Se quiserem, entretanto, petiscar apenas, sente em qualquer tasca da Rua das Portas de Santo Antão e peça: salada de orelha de porco, salada de ovas, salada de polvo, panados de porco no pão, pastel de bacalhau, chamuça, moelas estufadas. Se quiser comer um sanduiche típico de Lisboa, vá até a Estação do Rossio e veja um restaurante que se chama Gare aloguma coisa e, sem susto, peça uma bifana ou um prego.

Se, entretanto, você for ficar aqui por muito tempo e tiver saudades da comida do Brasil, vá comer uma feijoada e tomar a melhor caipirinha do mundo no “Uai”, veja o nome do restaurante que não é nenhuma coincidência. A feijoada é preta, o dono do restaurante branco e português, mas um profundo conhecedor de cachaça, principalmente do interior de Minas Gerais, a exemplo de Divinópolis. Fica no Cais, na Rua da Ponte Pedonal, é este o nome, não posso fazer nada. Se você estiver a pé em Lisboa, pegue o comboio e solte na estação de Santos, quando sair da estação já vai dar de cara com a rua do restaurante que fica lá no cantinho à sua esquerda, não dá para errar por causa da tal da ponte pedonal, que é assim chamada porque é só para pedestres, gostou ou quer mais? Você também pode ir comer um churrasco, não igual aos do Brasil, evidentemente, mas para quem tá longe daí é a melhor coisa que pode acontecer em termos de comer carne, “picanha”, é ir até lá. Fica no Parque das Nações e chama-se Búfalo Grill.

Mojito
Se você comer este churrasco no domingo, e depois tiver pachorra de andar e continuar ali pelo parque das Nações, e ainda tiver um lugarzinho para uma bebida, vá até o “Cuba Libre”. Lá você pede um Mojito, mas peça para ele ser feito pelo Zé, o caboverdiano que ali trabalha, que é inconfundível, porque esta sempre de boné, não há outro. Você pode pedir muitas outras bebidas, caipirinha, caipiroska, cerveja, etc. Veja a brasileirada se distraindo como pode em Lisboa. Morra de rir com tudo que você vai ver e presenciar e ouça as músicas que vão te fazer lembrar de nossa terra, algumas, coitadas completamente assassinadas pelos cantores, mas isto pouca importa, o bom é estar lá. Olhe o Tejo, fique inebriado com tanta beleza e agradeça a Deus a oportunidade.
O Zé do Cuba Libre

O Tejo visto do Cubra Libre
           
      BOM

 APETITE









quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Garantidora! Nunca mais

Não havia mais nada a fazer. O caso estava consumado, mas parece que ela não aceitava este final.

Lutara tanto quanto pode, portanto, não achava justo que aquilo estivesse acontecendo, afinal, o seu patrimônio poderia desaparecer a qualquer momento, apenas e simplesmente, porque tivera a intenção de ajudar outrem.

Uma amiga - irmã queria abrir um restaurante, era o sonho da sua vida e precisava tomar um empréstimo em um banco, uma espécie de financiamento com juros baixos e com prazo de carência de três anos, mas para tanto, tinha de dar em garantia bens que, como o nome diz: garantissem o pagamento.

A intimidade fez com que o pedido parecesse normal, não só a intimidade, como o desejo de ajudar o outro. E foi o que fez, assinou os documentos dando um apartamento para a garantia.

Os anos passaram. O tal do restaurante nunca deu certo, mas até então ela achava que as prestações mensais do financiamento estavam sendo pagas. Ao final dos três anos uma negociação com o banco permitiu que o financiamento fosse prorrogado, incluindo no débito as prestações em atraso, etc.etc.etc. Novamente é solicitada a assinar o documento, pois caso não o fizesse, a operação não seria concluída.

Mais uma vez, e confiando nos seus mais de que amigos, assinou o tal Aditivo.

O tempo continua passando. Uns sete anos depois da sua primeira atuação como “Interveniente garantidora” precisou de, ela própria, realizar uma operação bancária, pois necessitava de dinheiro para fazer um investimento na compra de um imóvel.

A operação seria realizada com a Caixa Econômica Federal em uma cidade do interior onde tinha domicilio, porque trabalhava naquela cidade, nada de ilegal ou falcatrua, apenas podia tomar ali o empréstimo porque era ali que estava lotada, exercendo um alto cargo, que a fazia conhecida, e onde gozava de um grande prestigio social.

Por isso mesmo, a gerência do banco estava com toda a sua atenção voltada para a cliente, afinal puxação de saco existe em qualquer lugar, chega até a ser cômico, porque é uma operação normal, todos têm acesso a ela, ela existe e o banco pode concedê-la a todos que demonstrem condições de efetivar o pagamento, claro.

Tudo acertado, valores, contrato assinado, mas no momento da liberação do crédito um senão: O credito não podia ser concedido porque ela tinha pendências.

-Pendências! O que é isto? Com quem? De que vocês estão falando?

O gerente da agência da Caixa muito chateado e até mesmo com vergonha, não maior de que a dela, lhe comunica que ela esta negativada no serviço de proteção ao crédito e no SERASA.

- Serasa, eu? Por quê?Não devo nada a ninguém, que eu me lembre.

- Infelizmente doutora, está sim senhora. É um débito para com o Banco do Nordeste.

- Banco do Nordeste? Eu não tenho qualquer relação com este banco. Tive há uns vinte e poucos anos atrás uma poupança, que foi liquidada quando o Fernando Collor resolveu confiscar as poupanças. Não perdi tudo porque deram a chance de quitar um apartamento com o depósito, e foi o que aconteceu, embora tenha lá ficado um saldo, que sei que não vou receber nunca, portanto não estou entendendo.

Como existia uma Agência do Banco do Nordeste na cidade é para lá que se dirige, para saber o que se passa?

- Boa Tarde senhor! Meu nome é fulana de tal e me informaram na Caixa Econômica que eu tenho uma pendência junto a este banco, como faço para saber de que se trata.

O funcionário toma um susto danado, pois conhecia aquela senhora, já havia sido testemunha em vários processos em que ela presidira o julgamento.

-Oh doutora, sente-se aqui, vamos ver isto?A senhora não se lembra de alguma data, alguma coisa. Me diga o número do seu CPF.

Diz o número e fica torcendo que seja algum engano.

Para sua surpresa, a porra existe mesmo.

A cara do funcionário é de incredibilidade e de uma profunda interrogação. Então esta sacana não sabe que tem um financiamento que não está sendo pago há uns bons três anos?

- Doutora, infelizmente existe mesmo uma pendência, é um financiamento que a senhora tem com o Banco do Nordeste, Cédula tal, ano tal, valor tal.

Ela olha atentamente para a tela do computador. Vê o seu nome, mas continua sem perceber do que se trata, até que vê o nome dos demais envolvidos na estória. Seu coração parece ter dado uma parada. A ficha cai! Puta que pariu! O financiamento do restaurante! Os sacanas dos seus amigos irmãos não estavam pagando as prestações e nunca lhe disseram nada.

Tenta explicar ao funcionário o que era aquilo, mas não sabe bem para que, o fato está ali, não tem argumentação, ela é devedora e pronto. Imagina o que vai à cabeça do funcionário do banco e do gerente da caixa.

- Esta sacana, caindo de saber que tem débitos vem para cá dar de inocente, pedir empréstimo aqui no interior pensando que ia se dar bem, como se o sistema não funcionasse em território nacional. Deve estar achando que todo mundo aqui é idiota, querendo se aproveitar do cargo que tem. Passaram muitos pensamentos pela sua cabeça.

Saiu do banco envergonhada e incrédula, não podia acreditar que isto estivesse mesmo acontecendo. Ela que faz das tripas coração para não ter débitos, para não ser cobrada por ninguém nem por nada, ela que acumula empréstimos para pagar débitos, inclusive, que não são seus, estava ali, DEVEDORA, NEGATIVADA, ENSERASADA, impedida de realizar qualquer operação bancária que envolvesse empréstimos. Ficou apavorada.

-E agora? O cheque especial? Os cartões de crédito? O que vai acontecer? Vai ter de pagar tudo de uma vez? Impossível.

Vai à caixa econômica e pede desculpas ao gerente, que lhe pergunta se ela não recebeu nenhuma notificação do banco do nordeste. Ela diz que não, ele lhe informa que os Bancos são obrigados a informar aos clientes, inclusive, no caso especifico do dela, de que o não pagamento está sujeito à negativização junto aos serviços de proteção ao crédito.

Sai da agência da caixa e vai para o hotel, precisa ligar para os “irmãos”, para o companheiro. Tem de saber o que fazer.

Ao falar com um dos amigos, na verdade um seu cunhado, ele simplesmente lhe diz, que não sabia que o caso já estava neste pé. Ou seja: o sacana sabia, até porque não pagava mesmo, que isto podia acontecer, mas tava pouco se incomodando com esta estória, já devia estar acostumado a dever e não se importava. Enfim, ninguém ia resolver porra nenhuma, ela que se lenhasse, ficasse desmoralizada perante os seus jurisdicionados, funcionários, etc. Numa cidade do interior as noticias correm, portanto...

Fala com o companheiro, chora ao telefone, de nada adianta o choro, mas com ele poderia chorar como tantas vezes o fez. Fala a respeito da informação do gerente da Caixa e pede que ele procure ver a lei, regulamento, portaria, enfim a legislação que regulasse a situação. Negativização de nome em serviços de proteção ao crédito.

No final de semana, ainda chorosa e com o apoio do companheiro, que fica revoltado diante de tanta sacanagem dos envolvidos, descobrem que ela tinha, necessariamente, de ser comunicada que os pagamentos não estavam sendo efetivados, e que, só depois da segunda notificação, que tinha de ser pessoal, é que o Banco poderia enviar o seu nome para a o SERASA.

O companheiro vai ao Banco como seu procurador, afinal é advogado. Um funcionário qualquer lhe diz que o procedimento é o que o Banco segue e que estava correto, que era assim e pronto.

Na quarta feira seguinte a ação é ajuizada. Solicita-se liminarmente que o nome seja retirado e uma indenização por dano moral é requerida.

O Banco do Nordeste, em contra partida aciona todos os envolvidos na operação. Tanto a pessoa jurídica – o restaurante – como os Intervenientes garantidores. Ela e outro são partes passivas na execução.

O nome dela é retirado do SERASA, não podia ser diferente, e a ação prossegue, sendo decidido pelo Juízo que ela teria direito a uma indenização de 500.000,00, levando-se em conta o cargo que ocupava, o constrangimento de que tinha passado perante os jurisdicionados, e mais o próprio erro do banco do qual ela tinha sido vítima e que gerou todos os acontecimentos que deram causa ao pedido. O Banco recorre e esta indenização baixa para 22 salários mínimos, afinal ela não era tão importante assim, nem ela nem o poder que representava, valor que até hoje, com o trânsito em julgado da decisão, não lhe foi pago.

Tentativas administrativas foram feitas para uma resolução. O Banco condiciona qualquer transação à desistência da ação. O engraçado é que a desistência é da sua, não a do Banco.

Ah, tem um detalhe muito importante. O imóvel dado em garantia, aliás, sobre o qual o Banco poderia agir, pois a DEVEDORA a NEGATIVADA, a SERASADA não tem, efetivamente, que figurar como tal em qualquer ação, foi arrestado, arresto que até então, até onde sabe, não foi transformado em penhora, porque até o presente momento, não houve citação, no entanto, ela não pode fazer qualquer coisa com o dito apartamento, pois o ônus existente sobre ele impede que ele possa ser objeto de qualquer transação.

O que levou por ter sido solidária, boa, acreditar nos outros?

Primeiro - ser taxada de DEVEDORA; segundo, ser SERASADA; terceiro, ser DESMORALIZADA; quarto SER ACUSADA DE QUERER ENRIQUECER ILICITAMENTE; quinto, PARTICIPAR DA QUADRILHA DA INDENIZAÇÃO, sexto, estar na iminência de perder PATRIMÔNIO: sétimo, SER SACANA, pois os envolvidos acham que o que faz hoje, cobrando dos responsáveis uma solução, é uma grande sacanagem, quanto pior, quando disse que vai acioná-los para que, com os bens que tem, possam lhe compensar no caso de vir a perder o seu.

Por tudo isto, aconselha: Pensem bem antes de fazer este tipo de bem, você pode se dar BEM MAL!





terça-feira, 19 de outubro de 2010

Todo o sábado era assim...

As duas já sabiam: sair no sábado somente depois da casa limpa e arrumada. As tarefas eram divididas. Quem limpava a cozinha, o banheiro, o quintal em uma semana, na semana seguinte seria a responsável pela limpeza dos quartos e sala.

Não havia qualquer discussão, as duas já sabiam que aquilo tinha de ser revezado. Era como se fosse uma obrigação de fazer que não podia deixar de ser cumprida, pois, sujeita à sanção.

As duas já trabalhavam durante a semana toda, já contribuíam com as despesas da casa e tudo mais, mas o sábado não foi modificado. A obrigação tinha de ser cumprida antes de qualquer coisa. Se um compromisso fosse marcado para o final de semana, certamente, ele somente começaria depois do meio dia, antes disto, nadica de nada.

Acostumaram-se tanto a isto que o físico já pedia o cumprimento da obrigação, pois sentia falta do esforço, do exercício.

Bom, é necessário esclarecer que, antes delas trabalharem fora, as tarefas diárias domésticas também eram divididas. Quem lavava prato do café da manhã em um dia, no outro lavava o do almoço, e dia seguinte o do jantar, aí já tinha uma terceira participante no revezamento, uma filha de criação da dona da casa. Lógico que quem lavava os pratos do jantar saia em vantagem, porque a quantidade de pratos era bem menor, afinal, nem sempre jantavam. A família era numerosa, e comer meio dia e também à noite não era possível em todos os dias da semana. Um pão “cacetinho” com café preto, porque leite nem pensar, era o suficiente; resultado: de 8 a 10 xícaras de café, a leiteira, uma a duas colheres pequenas, e tudo resolvido.Não pensem vocês que a faca foi esquecida, é que nem sempre havia manteiga, ou margarina, para passar no pão. Se houvesse, apenas uma faca era utilizada, e quem a usava para passar em todos os pães era a mãe, caso contrário, o pote da manteiga só dava para um dia, o que era um desperdício para aquele artigo de luxo.

Mas vamos falar mesmo da faxina; era assim que se denominava a limpeza do dia de sábado. Não dar faxina ou fazer faxina no sábado, o que era normal em muitas casas, era sinônimo de “porcaria”, ser porco.

Começava cedo. Faxina que se prezasse tinha de ser completa, o que significava uma mudança semanal para o meio da rua. Todas as coisas eram retiradas de dentro de casa. Sofás, camas, móveis de sala, tudo que podia ser carregado sem grandes dificuldades. Todos os colchões ao sol, quando este brilhava, caso contrário, eram retirados na mesma, mais de um cômodo para outro da casa. O grande problema de tirar as coisas dos quartos é que, casa de pobre vocês percebam como é, tudo fica acumulado embaixo da cama: e é um tal de tirar caixa e sapatos e tantas outras coisas, que só isto levava uma boa parte da manhã.

Depois de tudo do lado de fora, com direito à visitação pública dos pertences da família, a coisa pegava fogo dentro da casa, ou melhor: uma inundação acontecia. Pensa que é esta história hoje de passar um paninho molhado? Nada disto! Água, muita água, baldes e mais baldes de água. Sabão? Sim sabão! Não era detergente, ou qualquer outro produto, que hoje existe aos montes, era sabão mesmo. Antes, quando não existia o sabão “Rinso”, que era em pó, era o sabão azul que era dissolvido e jogado no chão. Porra era bom ter cuidado porque, se a quantidade fosse muita, passava-se mais tempo tirando a espuma e a saída à tarde já estava comprometida.

Bom, depois de muita água, sabão, mais água, era a vez de entrar em cena o rodo. Bom e grande exercício para braços e peitos! Os últimos ficavam duros, tesos, rijos, acho que por isso mesmo hoje em dia as mulheres recorrem a outros meios, já não se exercem tarefas domésticas como antigamente, e os exercícios quase “naturais” tiveram de ser substituídos. Retirado o excesso de água com o rodo, vinha a pior hora desta primeira parte: secar o chão com o pano de chão, claro! O grande problema era a irregularidade do chão da casa. Havia lugares que a água empoçava e a merda tava feita, muito tempo gasto com o pano e o balde. Resultado: as mãos perenizaram as tarefas, até hoje se pode perceber os calos, que se acentuaram, mais ainda, com o volante do carro. Ninguém entende porque uma “doutora” tem calos nas mãos, esquecendo-se que as doutoras não nascem doutoras, se fazem doutoras, mas antes disto já se “diplomaram” em muitas coisas.

Alívio! 9.30 da manhã, quartos e salas lavados. Dá-se uma trégua ao chão. Mas as mãos, braços e pernas continuam em atividade. Hora de passar óleo de peroba nos móveis. O pior trabalho nesta fase era limpar a estante de livros, cuja quantidade parecia multiplicar-se quando era momento da limpeza, pois, quando era o da pesquisa, sabia-se mínimo: lembram-se daquelas enciclopédias do “saber”, lá existia; tinha alguns romances, coleções compradas em bancas de revista: Jorge Amado era o privilegiado da casa, quase a coleção completa dos seus livros, edições pequenas, no tamanho claro, com a capa vermelha e letras douradas para os títulos: “Mar Morto”; “Capitães de Areia”; “Tenda dos Milagres”; “Agonia da Noite”; “Ásperos Tempos”; “ABC de Castro Alves”; “Jubiabá” e outros. Não tinham todos os livros deste autor porque ele viveu muito e escreveu bastante. Muitos xingamentos até a retirada total dos livros, folhas soltas, carrinhos, bonequinhas, puta que pariu! Uma merda mesmo, mas de nada adiantava gritos histéricos, queixas: aquilo tinha de ser feito e pronto.

Um detalhe; proibição total de trânsito por dentro de casa. Pensem os cacetes que quebravam quando alguém entrava na casa. Todos tinham de ficar do lado de fora aguardando o final da “faxina”.

Enquanto isto, a responsável pelos fundos da casa cumpria a sua rotina. Armário debaixo da pia: todas as panelas retiradas e lavadas. Odiava aquele trabalho, porque como sempre a pia vazava e aquilo estava uma porcaria só. Com nojo, ou não, tudo tirado para fora do armário, todas as coisas lavadas e recolocadas. Alguma sacana, no seu dia de pratos, escondera uma panela suja dentro da pia, aí a desgraça era total, a panela dava bicho e a idiota que estava no dia da tarefa tinha de, vomitando ou não, berrando ou não, limpar a porcaria toda.

Este sempre foi o primeiro trabalho a ser feito na cozinha, porque era mesmo o pior. A geladeira já havia sido desligada, as bocas do fogão colocadas no molho com vinagre. O fogão quase todo desmontado, porque se tirava tudo, desde as prateleiras do forno, à tampa de cima, os botões de acender as bocas, etc., etc.

Durante a espera de a geladeira descongelar: lavava-se o tampo do fogão,tirava-se as crostas de gordura das grelhas, limpava-se prateleiras. Aquelas prateleiras que eram forradas com papéis de embrulho coloridos com desenhos feitos, com uma grande perícia, para que tudo ficasse igual, com tesouras grandes para permitir que as dobras feitas no papel fossem cordatas. “Quadradinhos, triângulos, rodinhas”, até que ficava bonitinho, se não fosse mesmo o tremendo mal gosto de se colocar aquilo, mas era norma e pronto.

Há! Ia esquecendo: antes de tudo, na casa toda, tinha de ser passado no telhado o “vasculhador”. Desgraçado! Aquela porra vasculhava mesmo, o que caia de sujeira do telhado não estava no gibi. Resultado: acréscimo de trabalho, pois tinha de ser feita a limpeza em cima de guarda roupas, beirada superior das portas e janelas, divisórias de paredes. Casa de pobre é assim: as paredes divisórias não alcançam o teto e, portanto, a privacidade não existe. Quantos traumas se teria hoje, a psicologia moderna arranja desculpas para todos os erros e contradições do ser humano, por ter visto pais trepando, irmãos se bolinando, etc. Etc. O certo é que este trabalho acrescido era uma merda. Na sua semana, que era sempre a que a mãe mais gostava, o quadro do “Coração de Jesus”, que era enorme e ficava pendurado numa das pilastras da casa, entre o vão que se formava na confluência das paredes dos quartos e das salas era cuidadosamente limpo, tanto a parte da frente, quanto a de trás; afinal, Cristo também tinha cú, e não adiantava só lavar a cara.

Não bastando o “Coração de Jesus”, aquele em que Cristo aparece lindamente: louro com os olhos azuis e cabelos louros, completamente “racista”, com as duas mãos abertas com as palmas para cima, de onde raios coloridos saiam de cada um de seus dedos; o manto do de lá da casa era vermelho, e ele estava vestido com uma túnica bege, havia outros quadros, que passavam pelo mesmo processo de limpeza: pano molhado com álcool no vidro, óleo de peroba na moldura. O problema era o da ceia de Cristo, aquela porra daquela casa era religiosa mesmo, uma fé católica-ubandense sem fronteiras, a mãe recebia entidades, os meninos-erés “Cosme e Damião”, o velho São Lázaro – “Omolu”, e mais uns tantos outros caboclos itinerantes que insistiam em adentrar no corpo da mãe.

Sim, “A Ceia de Cristo” era um quadro que tinha a base em madeira e os apóstolos em alto relevo em metal; “prata”, era o que diziam. O certo é que estes filhos da puta, acho que eram onze, eram limpos com “Kaool” um produto que você passava nos metais, mas que só dava brilho se você o retirasse com um pano seco que era ferozmente esfregado na peça. Realmente dava um brilho retado, mas não era o produto que dava este efeito, isto se sabe: era mesmo a força empregada e o tempo da esfregação do pano na peça. Mais peito duro e braços musculados.

Voltemos à cozinha. Prateleiras limpas e o próximo passo eram as paredes. Lá vem água outra vez. As paredes da cozinha tinham azulejos até a metade, da metade até o teto era pintada, mas tinha de ser tinta óleo, exatamente para poder ser lavada. Escadas, bancos, cadeiras altas, tudo era usado neste momento. A lâmpada que fica pendurada tinha de ser retirada e lavada, a gordura se acumulava nela e na porra do lustre fudido que era colocado, não se sabe bem para que. Uma porra que tinha umas bordas verdes que ficavam completamente embaçadas pela gordura e que dava um trabalho danado para ser retirada.

Lavadas as paredes com água, vassoura e sabão; hora dos azulejos. Bom, lavar as paredes laterais não era problema, problema era lavar a parte da pia e a do fogão. A da pia por causa do limo causado pela água e pela falta de cuidado dos lavadores de prato, que deixavam a sujeira ficar ali e acumular; a do fogão, pela gordura que grudava em toda a parede circunvizinha. Aí tinha de ser jogada água fervendo, e o que se fazia mesmo. Um perigo, mas necessário. Ainda não existia desengordurantes, quando muito uma "Q-Boa" do plástico verde, lembram? Nas junções das peças dos azulejos uma escovinha de dente, já usada, resolvia a estória, mas para isso horas eram perdidas. Esta escovinha também era usada na limpeza do fogão. Olhe que depois da limpeza não se sabe como ele funcionava, um verdadeiro milagre.

Vez da geladeira, felizmente ela não tinha muita coisa dentro. O problema era o descongelamento. A desgraçada fazia um gelo da porra, quase a porta do congelador não fechava, velha e com problemas. Mais água quente. A água era jogada  até que todo o gelo dissolvesse: demorava, mas a questão era resolvida. Tudo limpo, inclusive o armário de porta vermelha e de dois andares. Hora de lavar o chão, mais água e sabão, rodo, pano de chão, mãos doendo, calos crescendo.

A esta altura, já lá ia o dia passando e alcançando às 10.00 da manhã. A comida era feita na sexta à noite exatamente para que ninguém tivesse de entrar na cozinha, quando dos procedimentos em execução.

Enquanto este processo se dava na cozinha, quem estava responsável pela sala e quartos já começava outro procedimento. Agora era a vez da cera parquetina vermelha. Sim, esta era a cor do chão da casa. A cera era passada manualmente: o vivente, de quatro, se enfiando por baixo de móveis, quando estes não podiam ser deslocados, passando a cera que era em pasta: mais um grau de dificuldade. Ai daquele que ousasse passar ali naquela hora: porrada certa.

Cera passada, momento de espera, uma hora, mais ou menos, esperando a porra secar. A cozinha tinha também de ganhar o seu brilho, e a cera se estendia por baixo de armários, fogão, geladeira. A área da varanda também tinha o seu dia de glamour e a cera ficava ali aguardando que o brilho viesse e a cera mostrasse as suas qualidades.

Durante o processo de espera da secagem da cera, uma pausa para quem era a responsável pela sala e quartos, pausa que era aproveitada para bater os sofás e limpar as coisas que ficaram do lado de fora, mas também era a hora de perceber se a Natalina já tinha acordado. Natalina era uma vizinha que morava nos fundos da casa, aliás, fundo e lateral direita, pois a sua família inteira morava ali, quando se fala em família inteira é porque o povo casava e ia ficando ali mesmo, resultado: uma grande e imensa favela nos fundos e na lateral da casa.

O barraco de madeira da Natalina ficava mesmo no fundo. O barraco era uma desgraça, tudo feio e acumulado, umas coisas em cima das outras; era escuro, roupas jogadas por todos os cantos, enfim, um barraco mesmo, mas tinha uma aparelhagem de som. Uma radiola que era uma arma à noite e aos domingos, mas no sábado era a melhor coisa que podia existir, tanto que ficavam rezando para que ela acordasse mais cedo para começar o show.

A responsável pela cozinha e banheiro, agora, estava nos fundos da casa, na mesma ansiedade dos outros, esperando pela Natalina, mas “enquanto esperava, carregava pedra”, isto é: lavagem do banheiro. O banheiro era pequeno, mas o processo de limpeza grande. Os azulejos tinham de ser lavados com “bombril” e sapólio, um pozinho branco: não pensem errado, o pozinho branco era pó para limpeza mesmo, as junções deles lavadas com a escovinha de dente, a do banheiro, não se preocupem, porquanto não era a mesma da cozinha. Vaso areado todo branquinho sem qualquer mancha, enfim, todo um processo, mas o desgraçado do banheiro ficava limpo e cheiroso para receber as cagadas de mais de nove pessoas, habitantes normais daquela “vivenda” e mais os visitantes freqüentes.

O intervalo entre o banheiro e a cozinha era esfregado com vassoura, sapólio, K-Boa, que já tinha a medida certa que era dada pela gerente geral: a mãe dividia os produtos de limpeza, caso contrário, só davam mesmo para uma semana.

A lavanderia já estava de molho desde cedo. A porra pegava um limo danado, porque ficava ao tempo e era de concreto, um cimento rugoso que pegava toda a sujeira do mundo e machucava as mãos e dedos, muitos pedaços arrancados na hora da esfregação. Bom, tudo sobre controle, e começava-se a ouvir movimentação na casa do fundo. Felicidade total! Natalina acordara: a festa ia começar!

Agora estava na hora do escovão. Vocês sabem o que é o escovão? Uma escova grande macia enfiada num pau, que era utilizada para dar brilho no chão. Você passava em cima da cera já seca, e, não há como negar, era mesmo um “milagre”. O chão ficava espelhando e os peitos e braços rijos. Quando não tinha o escovão, ou por qualquer motivo ele não podia ser usado porque era velho, ou porque tinha quebrado o pau, colocava-se um dos irmãos menores sentado num pano grande e o desgraçado ia sendo puxado por toda a casa em cima deste pano, num vai e vem retado, até obter o brilho. Neste processo muitas vezes participavam os visitantes habituais. Amigos dos irmãos homens das faxineiras.

A esta altura, o som da casa de Natalina já estava ligado. Ouvia-se, então, o pedido do outro lado: “aumenta o som Natal”, e ela, querendo mostrar as potencialidades do seu “som”, aumentava mesmo, e a limpeza ganhava ares de festa. O merengue comendo no centro, e isto ia durar até o dia seguinte, a não ser que tivesse alguma porrada na casa ao lado para fazê-lo parar, como de costume.

Já estamos lá pelo 12.30. Tá quase tudo terminado. Vaquinha para a cerveja, amigos chegando, ajuda para colocar os móveis para dentro nos seus devidos lugares. Camas feitas com as colchas de domingo. Flores de plástico lavadas nos jarros. Panela da feijoada no fogo esquentando.

A música comendo no centro, “Tip, tip, tiii. Tan ran ran, ran ran ran”. Música da Guiana francesa, uma maravilha! Acabada limpeza da casa e ficava a sensação do dever cumprido.

A cerveja descontraia os músculos e apagava os efeitos do cansaço e, ainda bem não tinham acabado a limpeza, já começavam a ensaiar a da próxima semana, pois se dava início ao processo da sujeira da semana seguinte, quando os efeitos dela começavam a se fazer notar com a utilização do banheiro, por muitas e diversas vezes. A cozinha, já em plena atividade, começava a readquirir a sua oleosidade, pois os tira-gostos de chouriça ou salsicha fritas cumpriam a sua função estética: sujar as paredes de gordura, deixá-las brilhantes e amareladas. Lá pelas quatro, cinco da tarde, se as limpadoras não tivessem compromissos, o almoço era servido e a festa continuava até que não houvesse mais dinheiro para a cerveja, que tinha de ser dividida, pelo muro de madeira do fundo, com a companheira responsável pela alegria.

O dia acabava: todos felizes e quase “bêbados”: a farra continua no próximo sábado.



segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Uma nova visita quente

Estava com dor de estomago. Acordara no meio da noite para tomar um chá, uma água mineral com gás, um pepsamar. Qualquer coisa que aliviasse o mal estar. A casa ás escuras, saíra de ponta de pé do quarto para não acordar o companheiro, na ilusão que ele estava ao seu lado dormindo, embora estranhasse o fato de não ouvi-lo ressonar, mas enfim...

Chegou á cozinha e, de repente:

- Olá! Pensou mesmo que eu ia desaparecer?

Apavorada, apressa-se em acender a luz.

Não vê nada, tudo no lugar.

- Querida, não adianta, eu só apareço se quiser, mas eu estou aqui juntinho de você!

Vira-se, olha de novo para os lados, para todos os cantos da casa que consegue ver da cozinha, o que era possível porque a cozinha era americana, estas porcarias que a pessoa faz para ganhar espaço e gordura pelos móveis, estofados, etc.etc.etc.

Não há nada. Pensa para si: “Ta ficando doida porra! Bebe o seu chá, água e o remédio e vai se deitar outra vez”.

- Minha cara, não pense que eu sou irreal, não sou não: to aqui e você vai me ver agora, já que precisa da minha presença física para acreditar.

Vira-se para o lado de onde vem a voz e lá está ele: Lindo! As mesmas calças brancas folgadas, a camisa de linho branca, sandália de pescador, os cabelos em elegante desalinho, e aqueles olhos azuis sem pupilas.

- Tremeu nas bases, mas se arrisca: - Você não tem mais o que fazer não, agora deu para ficar só no meu pé? Vá embora procurar a sua turma, você já me disse que não faço parte dela.

- Ora minha prezada amiga! Não é como você quer. Agora é como eu quero, resolvi que tenho de te ajudar e vou fazê-lo, quer você queira, quer não. Não me interessa o que você acha. Não sou como aquele de lá, que fica ouvindo as suas suplicas, os seus pedidos e não faz nada. Até porque, idiotamente, você pede coisas demais, para os outros é claro, e ele fica confuso na hora de ouvir, pois dá prioridade a quem ele acha que precisa mais de que você.

-Me deixa em paz, você tá vendo que não to bem, meu estomago dói, to preocupada, por favor, vai embora que quero me deitar e ficar quietinha.

- Não vou não, precisamos conversar mais uma vez. Acho que a minha primeira visita não lhe adiantou muito, você insiste em não perceber que continua errada, que, somente seguindo as minhas orientações pode livrar-se de tanto peso que carrega.

- Bom velho, se você quer mesmo me ajudar, aparece outra hora, agora não preciso de sua companhia mesmo.

De repente ela nota que a dor passou, e olhe que nem chegou a tomar o remédio, nem chá e nem nada.

Passa a mão pelo estomago. Olha para a figura que esta á sua frente. Toma um susto da zorra! Ele já lhe aparecia de outra forma. Agora estava vestido todo de jeans claro, tudo azul. Os cabelos tinham mudado de cor, agora ele era completamente moreno, cabelos pretos e lisos cortados bem baixinho na nuca e maior na frente, sapatos tipo mocassim marrom. Detalhe, os cabelos pretos mesclados de prateado. Ele sabia do que ela realmente gostava, pois aparecia como ela idealizava um homem para si. Só os olhos não mudavam. Azuis sem pupilas.

- Viu o que posso fazer? Esta vendo que eu sei de tudo sobre você. Desde os seus desejos mais íntimos. Pense se você encontrasse um homem com esta aparência que estou agora. O que você não faria hein! Eu bem sei, ando pela sua mente, sei de tudo o que você pensa e o que quer, e até o que faria mesmo. Olhe que ia adorar presenciar as cenas. Você sequer consegue esconder o seu desejo.

- Cara! Vá embora, você hoje tá mais inconveniente ainda, além de estar falando muito alto. Daqui a pouco você acorda o companheiro que está dormindo.

-kkkkkkkkkkkkkkkkk! Tá o que? Dormindo? Você é mesmo uma idiota. Vá lá e olhe se ele tá na cama.

Ela se dirige apressada ao quarto. Tenta não acender a luz para não incomodar. Vai para o seu lado da cama e, cuidadosamente, estende a mão para o lado contrário. Não sente nada, parece que não há ninguém ali. Vai até o banheiro, abre a porta e acende a luz pequenina que fica na lateral do grande espelho, a pouca luz clareia um pouco o quarto e ela percebe que não há ninguém na cama. Lembra que quando fora dormir o companheiro ainda não tinha chegado.

Sente uma ferroada no peito. Os olhos se enchem de lágrimas. Volta-se para o espelho e olha-se. Pergunta à sua própria imagem: Por quê?

A resposta vem do lado de fora do banheiro.

Porque você é uma idiota, quer se enganar o tempo inteiro. Ele não quer mais você. Há muito que está em “outras”, só você não percebe, o que é pior, ainda fica pedindo ajuda para este “filha da puta”, que só te sacaneia mesmo.

- Vá embora, por favor, me deixa em paz. Não vê que agora estou pior ainda, pois a dor é na alma?

- Que droga de alma nenhuma. Vamos lá. Pare de chorar. Tome um banho. Se arrume, pegue o carro e vamos para a rua, vou te mostrar muitas coisas, inclusive, que você não deve confiar nem neste sacana e nem em ninguém que com ele anda.

- Vou para lugar nenhum. Quero ficar aqui sozinha. Me deixa em paz pelo amor de Deus!

Sente um empurrão violento e cai sentada no sofá. Ouve um a voz gutural lhe dizer: - Já lhe falei que quando estiver comigo é para, sequer, pensar nele, quiçá falar o seu nome na minha presença. Este solavanco foi só um aviso, posso fazer misérias com você se você insistir em chamar por ele. Ande logo, vá se arrumar, antes que eu me aborreça a sério com você. Minha paciência tem limite.

- Não vou para lugar nenhum. Vá embora.

- Porra! Quer que empurre você outra vez?

Ela olha para o lado, pois a voz que lhe falou agora era uma voz feminina. Não viu nada, somente a voz vinda daquela direção.

- Vá lá amiga, vamos, faça o que to dizendo, você vai se surpreender com o que vou te mostrar e com o que vai acontecer, eu sei, vai ser bom. Vamos, anime-se. Nada de mal vai te acontecer, eu vou tá perto de você e ninguém vai te fazer mal, ninguém mesmo. Coitado daquele que se meter contigo.

De repente ela se vê tomando banho, vestindo o vestido azul de costa nua, sandália e bolsa prateada, enfim, pronta.

Ele aparece com uma calça preta, camisas de listras azuis e brancas, sapatos de camurça preta, Lindo. Os cabelos prateados e aqueles olhos de uma cor tão bela, mas assustadores.

- Poxa! Você quando quer sabe mostrar a mulher que tá aí dentro. Estás linda, maravilhosa. Vais ver hoje como a vida é boa, quanto você merece a felicidade que vai encontrar a partir de hoje.

Dirige-se a ela, coloca a mão ao redor dela e lhe sussurra no ouvido: - Vou me fazer materialmente homem para te amar muito, para lhe dar muito gozo, mas antes tenho de te mostrar umas coisas, que é para você não ter qualquer tipo de arrependimento, nem ficar se culpando de nada.

Pega a chave do carro, abre a garagem, tira o carro e vai embora. O cachorro nem se aproxima dela, fica todo eriçado olhando-a de longe.

- Sim, vou para onde?

-Vá dirigindo, na hora eu te digo.

Ela sai da rua de casa vira à direita e segue. A rua está deserta, mas há muito movimento nos bares. De repente, em frente a um monumental prédio, ele manda que ela pare.

- Pare aqui. Estacione. Vamos sair os dois e vamos ao bar que fica na área da recepção.

Quando entrou no prédio viu que era uma espécie de hotel. Entra e dirige-se para o bar.

- Peça uma bebida. Não tome uísque, beba coisa mais leve porque você tem de estar muito atenta.

Ela pede um campari com soda e fica ali sentada no balcão. Na última cadeira do lado esquerdo há um homem que lhe chama atenção. Parece ser alto, forte. Não vê bem o rosto porque no local onde está a luz é muito fraca. Todavia percebe que os traços são finos. O cabelo prateado lhe aguça a curiosidade. Pensa que já viu aquela figura em algum lugar.

- Que nada! Tô ficando maluca.

-Tá maluca nada. Olhe direito. Veja bem a roupa que ele tá vestido.

De repente ela se dá conta que aquela pessoa é a mesma que tinha saído de casa com ela. Era ele que fora se sentar ali. Estava falando com ela, mas estava lá, distante.

- Você é mesmo um sacana. Sai daqui. Pede a conta e, quando pega a bolsa para pagar, ouve uma voz macia, forte:

Por que não toma outro drink?Eu te ofereço?

Já ia mandar o cara para o “inferno”mesmo, quando nota que quem lhe estar a falar é o homem que estava lá na última cadeira do balcão do bar. Toma um grande susto. O homem, de perto, era mais de que lindo. Um homem mesmo, cabeça tronco e membros. Todavia, não dá a atenção devida, pois o “satan” que lhe acompanhava, com o já demonstrara muitas vezes, pode fazer o que lhe desse na telha, e aquilo ali, com certeza, era mais uma das suas.

- Senhor, a conta!

O empregado lhe diz que aquela bebida estava paga.

- Como? Quem pagou?

-Este senhor que está junto de si.

Ela olha para o lado e vê que o homem que falara consigo, que lhe oferecera outro drink continuava ali, um enorme e lindo sorriso lhe iluminava a face, agora mais bonita ainda. Pensou para si mesmo. - Bom, tenho de pegar neste cara para saber se ele é mesmo real, mas para isto tenho de ficar aqui mais tempo e, por isso mesmo, diz:

- Esta bem, vamos ao drink, mas eu pago agora, diz isto e estende a mão em direção ao desconhecido.

- Jade. As mãos se encontram num aperto inesquecível, daquele que ela gosta de sentir nas pessoas, independente de ser homem ou mulher. - Roberto Barden

Ela não pode conter o riso e o espanto! – Como?

- O homem repete: Roberto Said Barden.

Por que o riso. Meu nome é tão feio assim? Ela continua rindo, mas não consegue desviar os olhos dos daquele homem, que continua a apertar a sua mão.

- Porra, isto é mesmo real! Cadê o “sacana”? Olha discretamente em volta. Não o vê. De repente ouve uma voz bem juntinho de si.

-To aqui. To vendo tudo, não se preocupe. Já lhe disse que a partir de hoje você vai ser feliz. Vou cumprir esta promessa, até para ver se você acredita mais em mim e me da a grande chance que espero, que é entrar, de vez, na sua vida.

O campari chega. A bebida do homem também, “Mojito”. Ela ri de novo. Ele lhe pergunta por que?

- A bebida. Eu adoro isto. Só estou tomando campari para variar um pouco e porque só vou tomar dois mesmo. Se tivesse tomando mojito não ia parar no segundo.

A pergunta de praxe vem:

- O que uma mulher linda como você esta fazendo aqui, sozinha? Qual o motivo de tanta tristeza?

Ela sorri e não responde nada. Apenas olha para ele. Era realmente como se tivesse conhecido aquela pessoa há muito tempo, mas não sabe mesmo de onde.

O homem fala de si, diz que é professor e que esta fazendo um trabalho de investigação sobre etnicidade. Ela sorri outra vez.

- Por que você ri do que falo? Por que este riso tão irônico.

- Coincidências! Simplesmente.

-Coincidências?

-Sim! Coincidências, mas deixe para lá. Tenho de ir mesmo embora.

O campari está chegando ao fim. O homem lhe pede para não ir, ele quer conversar mais. Estava ali há alguns dias e só fazia trabalhar, tinha andado pelos arquivos, pelas ruas, entrevistado pessoas, enfim, fazia o que veio fazer e não conversava com ninguém que não estivesse ligado ao que viera fazer. Ali no apart. só conhecia bons vivants e mulheres bonitas a procura de um parceiro disposto a pagar caro por uma companhia. Agora que aparece uma pessoa tão interessante, que ele lhe impressionara, por que iria deixar que se fosse?

Ela fica a olhar para aquele cidadão que segurava a sua mão e lhe olhava nos olhos. Os olhos pareciam querer arrancar dela os seus pensamentos, sua história, sua alma. E ela pensou.

Isto é arte daquele sacana. Vou embora, ele não vai levar a melhor, o que ele quer é que eu dê um corno no meu “marido”, que desgrace a minha vida toda e pronto, e realmente entre para o seu time.

- Ei! Olhe para aquela mesa lá no final do bar-restaurante. Reconhece alguém?

Ela vira-se e olha discretamente. Tem de se conter mesmo para não dar um grito: Lá estava êle! O companheiro que deveria estar em casa dormindo. Uma mesa com muitas pessoas, para lá de 15, entre homens e mulheres. Todos se divertem, a grande maioria lhe era familiar. Uma parte dos homens sãos pessoas de sua relação pessoal, inclusive, freqüentadores da sua casa, das suas festas, participantes da sua vida. Identifica um a um. Observa as mulheres que estão ali, são também conhecidas suas, algumas mulheres de uns que ali estavam. O seu companheiro estava sentado sozinho, mas havia uma cadeira vazia ao seu lado. Pense como ela estava! A tensão que se apoderou dela, a curiosidade, a raiva, enfim, uma série de sentimentos misturados.

- Ei. O que houve? Você está pálida. Tá sentindo alguma coisa?

- Não, estou bem. Não há nada de errado.

- Eh Eh, olha lá agora, veja que cena. Olhe como você é mesmo imbecil!

Ela olha e vê uma mulher jovem, bonita, saindo do sanitário e se dirigindo para a mesa. Sua alma quase sai pela boca. A moça segue andando. Esta com uma saia muito curta, umas pernas bem bonitas, cabelos longos louros, dando para ser ver que a cor não era natural. Quando chegou junto à mesa parou em frente ao companheiro que logo se apressou em pegar-lhe pela cintura e, na frente de todos, trocaram um grande beijo. Depois ela sentou-se ao seu lado e ele lhe afagava os cabelos, tocava-lhe as pernas, numa grande e calorosa intimidade, tudo muito normal e com as pessoas sem muito ligar para aquilo, pois parecia ser uma pessoa do grupo, integrada que estava.

Fez uma menção de lavantar-se.

- Quieta! O melhor estar por vim. Continue aí com a minha cópia que ela vai te falar muitas coisas ainda. Olhe com muita atenção para este homem que está ao seu lado, porque ele é o seu futuro, é a sua transformação que ele vai te ajudar a fazer, é a sua felicidade que está batendo a sua porta. Ele vai te ajudar em todos os sentidos, ele é meu parceiro e já sabe o que tem de fazer. Ele, também estava a tua espera.
- Ei, Jade. Eu estou aqui. Você esta lívida. O que se passa? Algo tá te incomodando muito, eu sinto. Quer sair daqui, quer ir lá no meu apartamento?, Quer deitar um pouco? A impressão que tenho é que você vai desmaiar.

- Não, não, eu estou bem. Só quero, agora, uma bebida mais forte. Um whisky puro, duplo, talvez.

- Um whisky para a senhora.

Toma de uma só vez. - Mulher! Calma, a voz lhe diz. Já te disse que você tem de ficar sóbria, você ainda tem muito que ver.

De repente vê os seus filhos entrarem pela porta, os três, e se dirigem para a mesa onde esta o seu companheiro. Falam com todos, com a moça que está com ele com muita intimidade. Ela não acredita no que vê. O pior é que as pessoas olham para a sua direção, mas parece não a reconhecerem.

Está com cara de parva, tem a certeza, a sua incredulidade no que vê deve estar estampada no seu rosto.

- Jade, por favor. O que se passa? Você esta tremendo? Há algo errado e você vai me dizer o que é?

- Não Roberto. Não há nada errado, é que você tem “xarás”.

- Tenho mesmo, muitos, aqui mesmo deve ter uns quatro que conheço. Ali, naquela mesa, aquele senhor que está com aquela loura, é um deles. Ele vem muito aqui, hoje não sei o que esta fazendo cá até esta hora. Dizem que ele é casado, e ele costuma sair daqui entre 10-11 horas todos os dias. Tem um apart., o 505, alugado, e quem mora lá é aquela “senhora”.

- Como é?

É isso mesmo. Aliás, como fico aqui sozinho no bar, o empregado fala de todo o mundo e eu fico olhando e ouvindo as estórias.

- Sim, e além desta estória do casamento e daquele Roberto, quais são as outras que você sabe? Olhe que gosto de escrever e fazer estas estórias crescerem. Fala isto tentando ser o mais natural possível, embora por dentro estivesse mesmo num turbilhão de sentimentos e pensamentos.

- Sim, mas não quero falar deles agora. Quero falar de você. Parece que sua cor está voltando, mas pare de olhar para aquele lado, olhe para mim, quero ver bem o seu rosto, quero fixar a sua imagem, nunca mais quero esquecer dela, aliás, não vou esquecer porque ela vai estar comigo sempre, ao vivo e a cores.

- Poxa! ao vivo?

-Sim, você vai ser minha. Escreva. Eu estava te esperando, tenho certeza que é você. Algo me diz, ouço uma voz que fala isto para mim, que tenho de te proteger, ficar com você, te dar amor, te fazer voltar à vida.

- Você o que? Ouve uma voz?

-Sim, ouço, agora mesmo, estava ali sentado no ultimo banco e ouvi: “ Ei! Roberto olhe para aquela mulher que está ali sentada. Vai lá, levanta, fala com ela. É a mulher da sua vida. Vá com força, ela vai precisar de você agora, e por toda a sua vida.Você também não pode mais viver sem ela.

Parecia brincadeira, mas ela se sentia melhor. Apesar de não conseguir disfarçar o que ainda estava sentindo, e nem conseguir desviar o olhar da mesa em que estavam os seus. Relaxou um pouco, preferiu dar mais atenção ao homem que lhe dizia tantas coisas.

- Hahahahaha. Viu porra! Acredita agora que sou poderoso!Você ainda duvida do que posso fazer? Não perca esta chance. Este homem é seu, lhe pertence. Não apareceu antes porque estava amadurecendo. Você não ia gostar dele antes, com certeza, por isso fiquei aguardando o momento certo dele aparecer. Não o deixe escapar.

- Jade. O que você faz na vida?

- O que? Ah, sim, sou historiadora.

- O que? Historiadora?

Sim. Faço o doutorado em História da África.

- Não posso crer!!!. História de que? Da África?

-Sim. História da África! Por quê? É tão estranho assim alguém fazer história da África?

-Claro que não, é só uma agradável surpresa. Uma coincidência muito grande, aliás, o que demonstra que estamos no caminho certo, que o nosso encontro não foi por acaso. Eu sou professor de História da África em Cambridge.

- O que? Onde?É isto mesmo. Em Cambridge. Estamos desenvolvendo um projeto sobre os efeitos do colonialismo nos componentes étnicos dos povos africanos da diáspora. Brasil, Cuba, EEUU, Espanha, Portugal, Bélgica, França, Inglaterra.

- Eu não acredito.

- Por que não? Acha que eu to mentindo?

- Claro que não. O que acho é que isto é por demais coincidente para estar acontecendo.

- Sim, mas você! Onde faz o doutorado?

- Em Lisboa.

-Brincadeira. Estive lá tem umas quatro semanas, fazendo uma palestra no VII Congresso Ibérico de Direito Africano.

- Não pode ser. Não lhe vi lá. Eu estava lá, só faltei um dia, porque fiquei muito gripada. NO dia em que ia ser apresentada a palestra sobre “Direito e etnicidade”. Porra! Então foi mesmo no dia em que você ia falar?

-Exatamente.

- Puta que pariu! Oh. Desculpe.

- Fique a vontade, não me importo com palavrões, aliás, vindo de você isto não parece nada com um palavrão, apenas um maneira de expressão forte e convincente, que demonstra o que você sente.

- Pois é. Mas eu gostava muito de ler este artigo. Vai ser publicado e eu vejo no site.

- Minha querida, eu posso te mostrar agora, é só pegar o meu notebook, ou melhor. Vamos lá em cima e eu te mostro.

A esta altura ela já tava cansada de ver tanta falsidade dos seus. Todos estavam tratando aquela moça como se ela fosse “ela”. Era como se o seu companheiro já estivesse com ela há muito tempo, formavam um “casal” que todos conheciam, e pareciam gostar, até os seus filhos.

Pensou: - Bom, eu agora não perco nada. A minha relação, depois do que estou a presenciar, acabou mesmo, agora só é aceitar e dividir as merdas, e cada um para o seu lado.

-Viu o que lhe disse! Sua vida ia mudar hoje, aqui e agora. Acredite em mim mulher! Eu to disposto mesmo a te ajudar. Chega de falsidades, de enganos, de erros. Já te mostrei o suficiente, embora possa te mostrar muito mais coisas, mas não quero te chocar mais ainda, gosto de você, por incrível que possa parecer vindo de mim, quero seu bem. O seu inferno infernal acabou hoje, agora você começa uma nova fase, de chamas mesmo, todavia são chamas que não vão te queimar, só te proteger. Eu não vou te abandonar nunca, nem eu, e nem ele. Ele, já lhe disse, também esta comigo, foi mais fácil vir para o meu lado, pois na hora em que lhe mostrei você, ele passou a me valorizar e me querer, embora eu só tenha insistido em ficar com ele por sua causa. Escolhi-o para você. Você ainda vai se surpreender muito com este homem.

- Tá bem.

- O que você disse Jade? Tá bem o que?

- Nada não, acho que falei sozinha.

-Vamos?

-O que? Para onde?

-Lá em cima, vou te mostrar a palestra.

-Acho melhor não, vá lá e traga o notebook para cá.

- Imbecil! Vá. Suba com o homem.

-Não. Não quero.

-O que?

- Nada não.

De repente ela olha e já não há ninguém na mesa, todos tinham saído sem ela perceber. Havia uma porta lateral para o estacionamento e ela não viu o povo saindo.

- Ta bem, vamos lá.

- Entram os dois no elevador. Ele aperta o botão 5. Saem do elevador. Assim que dobram a esquerda no corredor, que coisa desagradável! Esta ali o seu companheiro e a loura, ela dentro do apartamento, ele já quase do lado de fora. A porta entreaberta e ela ouve:

- Não vá embora agora não amor! A sacana já deve ta dormindo há muito tempo, não vai dar pela sua falta mesmo.

-Não posso, tenho de ir embora agora, não posso deixar que ela perceba a hora que cheguei e nem posso dormir fora de casa. Tenho que tratar bem aquela mulher até o fim, até ela achar que não suporta mais, mas quero sair de tudo na boa, tem de parecer que é ela, e não eu, quem errou, quem destruiu tudo. Tenho de sair desta estória como vítima.

- Pô amor, ela já tá velha, não te dá o que lhe dou, eu não quero mais esta vida, quero estar com você o tempo inteiro, dormir com você, blá, blá, blá.

Teve vontade de acabar com aquela porra de uma vez. Aparecer. Olhar para os dois, para ele principalmente. Mas ficou quieta aguardando que Roberto, o outro, pegasse a chave. Tinham de passar pela frente do apartamento onde o outro estava. Quase teve uma parada cardíaca, porque quando foi caminhando para aquela direção, o apart. do homem era o de nº 507, portanto, colado ao 505, o seu companheiro virou-se e olhou para quem vinha. Viu a sua expressão mudar. Balança a cabeça, passa a mão nos olhos. Olha de novo! Balbucia: Jade!

Ela pega a mão de Roberto e segue em frente, deixando o companheiro estático ali no corredor.

Roberto abre a porta. Ela olha agora, bem fixamente, para os olhos do seu companheiro e nota que ele está mesmo pálido e que se segura na porta para não cair mesmo.

Já dentro do apartamento ouve sons. - Amor o que você tem? O que aconteceu? Vou chamar um médico. Me ajudem!

Sons de passos, correria, pessoas falando no apartamento do lado. Ela vai até a varanda e tenta ouvir o que se passa. Roberto abre a porta e diz: Parece que o xará teve algum problema cardíaco, estão levando ele de maca. Acho que o homem teve um enfarto.

-O que? Um enfarto. Preciso ir embora.

- Por que Jade. O que há? Quem vai morrer é ele, você não tem nada a ver com esta história, fique calma, o homem já está sendo atendido, a ambulância já tá lá embaixo.

-E a loura, a loura vai com ele?

- Não sei, mas deve ir.

- Não, não, tenho que ir embora agora, preciso ir embora mesmo. Amanhã ou depois eu ligo e agente conversa melhor, mas agora tenho de ir mesmo. Tchau

Sai quase correndo. Desce o elevador. Pega o carro que está estacionado e vai para casa. Vai esperar o telefonema dizendo que algo aconteceu. Chega a casa, abre o portão. O cachorro lhe olha, o pelo continua eriçado. O telefone toca, abre a porta correndo, atende ao telefone.

-Sra. Jade?

- Sim. Eu!

- Senhora Jade a senhora precisa vir urgente ao Hospital Aliança, o seu esposo acaba de dar entrada na nossa UTI. A Senhora precisa vir urgente.

Muda o vestido, afinal precisava parecer menos radiante. Era como estava naquele momento.

Radiante. Não fizera nada, o destino, claro, com a ajuda “dele”, preparara tudo.

Caminha até o portão da garagem sorrindo. Abre o portão, tudo vagarosamente, não quer perder nada daqueles momentos, quer viver todos eles, sorvendo tudo, deliciando-se. Entra no carro tira-o da garagem, pela segunda vez em uma só noite, quase dia. Para, sai do carro, fecha o portão da garagem, entra no carro e segue até o hospital, que era não muito longe da sua casa.

Ao chegar vê a loura fazendo um escândalo na portaria, queria ir para a UTI de qualquer maneira. Não deixaram, não sabe bem por que. Chega á portaria e diz: Onde está o Sr. Roberto Bragança? Sou a esposa dele, vocês ligaram para mim. O que aconteceu? Algum acidente? O que se passa?

-Por aqui senhora. O cardiologista quer lhe falar, já ligamos para o médico dele que esta a caminho.

-Sim, mas onde ele esta? E como esta? Estava mesmo muito calma.

Chegam à UTI

O homem tá lá cheio de aparelhos, todo entubado. Os olhos estão abertos, mas parece que ele não vê nada.

Permitem-lhe entrar na unidade. Antes, porém, lhe dizem que o caso é gravíssimo, que só estão esperando o médico dele chegar para fazer uma operação muito complicada. Recebe a noticia como se ela fosse normal, esperada. Entra na sala e olha em qualquer espanto para o homem que está ali, morrendo, na verdade. Não tem vontade de nada, nem de vê-lo morrer mesmo, nem de vê-lo ressuscitar, pois seria necessário isto, para reverter aquele quadro.

-Viu que sou poderoso?O que você precisou fazer? Nada! Eu lhe disse. Agora você vai ter mais uma surpresa. Só mais uma. Não chore! Fique forte.

Aproxima-se mais da cama e do rosto do companheiro e percebe que ele mexe os olhos. Ele abre os olhos e olha-a fixamente. Ela segura aquele olhar firme e forte. Não tem medo, não tem culpa, não tem arrependimento. Sorri para ele. O seu sorriso é irônico, é como se dissesse: Viu? O de lá de cima, este que você bem acredita, não quer nada mal feito. Ou se acredita nele e segue o caminho da luz, ou então assume o lado ruim, o lado escuro, o seu “eu” próprio, que se insiste em esconder, e no que você é expert.

Ele levanta a mão, procura a dela Ela lhe dá a mão, não tem mesmo qualquer sentimento naquilo, apenas um gesto a mais. Não sente nada naquele momento, a não ser uma vontade imensa de rir, rir muito, mas a situação não permite e ela se contém.

Percebe que ele quer dizer alguma coisa, ele segura forte sua mão, tenta falar. Não consegue. Tenta outra vez. Os aparelhos dão sinal, a luzinha fica quase continua , ele se agita. Os médicos entram lhe empurram. Ele estende a mão, olha na sua direção. Os médicos fazem uma série de procedimentos, ela olha aquilo tudo sem qualquer emoção. Pelo vidro vê que a loura está se despentelhando lá fora. Grita, bate no vidro. Ela está impassível olhando tudo. É uma parafernália.

Os aparelhos voltam à normalidade, os sons demonstram isto. Não sabe o que aconteceu, ressuscitou ou morreu de vez. Vê um daqueles aparelhos e nota que o gráfico agora se alterara, já aparecia fazendo aqueles desenhos que mostram que seu coração bater, que você respira, que você tá vivo.

Continua sem sentir absolutamente nada. Os médicos pedem para ela sair. Mais, de repente:

-Jade

- Ela se volta e os médicos também.

E ele está ali, com a mão estendida, implorando com os olhos que ela não saia. Jade, Jade, Jade. A voz é quase um sussurro.

Os médicos voltam-se para ele, que continua a tentar chamá-la.

Ela se aproxima o quanto pode dele e dos seus lábios. Para chegar bem próxima dele e ouvir o que ele fala tem de colocar o ouvido quase colado à sua boca, o que faz com que ela olhe, diretamente, para o vidro que isola a sala, visualiza a loura, desesperada, e olhando para ela, com raiva, com ódio, afinal ela queria estar ali. Ela apenas sorri para ela e, neste exato momento, ouve:

- Jade, me perdoe. Eu te amo.

Os aparelhos pararam. A loura grita. Ela sorri internamente sorri e sai da sala. Passa pela loura, que lhe ofende: sacana, miserável, meu homem morreu ali, quem devia estar ali com ele era eu.

Ela nem liga, sai dali, vai providenciar coisas, tem de gastar dinheiro com o enterro, avisar aos filhos, amigos, enfim.

Pega o carro no estacionamento e vai para a orla. Precisa respirar. Para em frente ao mar e fica ali por alguns momentos.

- Está vendo. Fiz tudo isto para você. Agora você está livre, em paz, sem culpas. Agora vá e seja como eles, falsa. Ninguém sabe do que realmente aconteceu, nem a loura, porque ela não te viu, e se tivesse visto, não a reconheceria, nem nenhuma pessoa que estava ali lhe viu. Eu lhe tornei invisível para todos. Só queria mesmo era que você visse e tivesse a certeza do quanto você foi e é enganada por todos os que mais você gosta. Só quem percebeu a sua presença foi ele, porque eu também quis que fosse assim, caso contrário de nada adiantaria tanto esforço.

O dia está lindo. Ela sai dali. Sua liberdade, sua vida, sua paz, tudo começara agora

Era uma manhã linda de um dia de verão. O sol brilhava como nunca, enchendo a alma daquela mulher de luz, de esperança, e agora, de mais uma certeza: tinha alguém que lhe esperava, só estava aguardando o seu sinal.










sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Conexão com o "Além"


Estava a trabalhar numa cidade do interior do Estado da Bahia. Uma cidade famosa e festiva, tanto pelas suas próprias festas, quanto pelos filhos que deu ao Brasil: Caetano Veloso, Maria Bethania, Mabel Veloso, Maria da Purificação de Lira e outros tantos.

Estava em substituição na Junta de Conciliação Julgamento de Santo Amaro da Purificação. Ainda existiam classistas nessa época e o meu secretario de audiência era um rapazinho tímido, calado, a quem eu chamava de “Dico”, hoje já nem sei se posso chamá-lo assim, afinal, é o atual Diretor Geral do TRT da 5ª. Região.

Bom, mas não é disso que quero falar. Quero falar de uma reclamação que foi ali ajuizada:

Quando peguei os autos e foi feito o pregão, no lugar do reclamante, que era um homem, entra uma senhora. Eu pergunto pelo reclamante, e o advogado me diz que ele faleceu e que a esposa estava requerendo a sua habilitação no processo.

Olho os autos e verifico de imediato a data do óbito do “de cujus” reclamante. A data era anterior ao ajuizamento da ação. Olho a data da procuração, que com o óbito não tinha mais qualquer validade, afinal, morto não tem procurador, e vejo que ela foi outorgada, há muito tempo atrás, ao causídico que acompanhava a senhora viúva.

Digo a ele que não posso fazer o que pede, pois não posso aceitar que a viúva seja a representante do espólio, porque na realidade, a ação não deveria ter sido ajuizada mais em nome do falecido, pois o ajuizamento se deu após a morte, portanto quem deveria figurar no pólo ativo da relação processual era o seu espólio, ou até mesmo os seus herdeiros, caso existissem.

O advogado não aceita o argumento. Digo-lhe que desista já indo de encontro á técnica, mas para facilitar tanto a vida da viúva, quanto a do próprio causídico e até mesmo a do Juiz e observar o princípio da celeridade: insisto na desistência, ou, simplesmente, um arquivamento, era só ele e a viúva levantarem da mesa. O doutor advogado se ofende e diz que quer continuar com a ação, porque ele tem entendimento diverso do da “Excelência”.

- Ah! o Senhor quer que a ação continue?

- Quero sim

- Então está bem: Recebi a defesa da parte contrária e, ato contínuo, dado que não havia qualquer documentação anexada, dispenso o interrogatório das partes, até porque não saberia como entrar em contato com o “de cujus”,e dou por encerrada a instrução.

- O advogado do “falecido” protesta. O seu protesto é tomado em ata

A Instrução foi encerrada e os autos vieram conclusos para julgamento.

Não vou copiar aqui toda a decisão, até porque não valeria à pena, tampouco me lembro de todo o texto, mas em toda ela fiz alusão ao “defunto” e da maneira que ele voltou à terra para ajuizar a ação trabalhista, falo de Alan Kardec, de espiritismo e chego, por fim, a dizer que a Justiça do Trabalho não estava aparelhada para receber mensagens do além, por isso mesmo julgava o processo extinto, sem julgamento de mérito, não aceitando que a viúva figurasse como parte, exatamente porque, quando do ajuizamento da ação o seu esposo já falecera, não podendo, pois, ser autor, ou réu, em qualquer processo, a não ser que a Justiça estivesse apta a lhe dar com os espíritos, o que não acontecia.

O que ficou evidente no processo é que o patrono do “de cujus”, apesar de estar de posse da procuração há muito tempo, por qualquer motivo, não ajuizou a ação. Quando soube do falecimento e, procurado pela esposa para saber do andamento da causa, mais que depressa deu entrada na ação, certamente contando que o Juízo não observaria as datas do atestado de óbito e da procuração. Ledo engano!

Para finalizar a decisão, e no momento em que devia eu condenar a parte em custas, encerrei com o seguinte: Deixo de condenar o reclamante em custas, porque ao que me consta, no céu, onde espero que o “de cujus” esteja, não há moeda corrente.

Pois não é que o “doutor advogado” ainda teve coragem de recorrer!

Soube que esta decisão, no momento do julgamento do recurso, foi motivo de muita gozação no Tribunal, tanto por parte de quem assistia ao julgamento, quanto dos julgadores, que, claro; confirmaram a sentença, como não poderia deixar de ser.

Como diria minha mãe: “ quem não ouve sossega, ouve coitado”!



quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Arquivo Histórico de Moçambique


Fica em Maputo. Hoje está dividido em muitos espaços, mas vou falar, especificamente, de um deles; daquele que guarda a documentação oficial produzida pelos portugueses.
Estou entusiasmada: nunca pensei que fosse chegar tão perto de tanta fonte primária. É bem verdade que o arquivo está instalado num lugar sem as menores condições de funcionamento. Não se tem cadeiras decentes, não se tem água, não há uma copiadora, enfim, não há nada nas dependências do galpão, onde as inúmeras caixas que guardam a história da colonização portuguesa e da própria história de Moçambique e de seu povo, com as suas várias etnias, estão depositadas precariamente.

Nem os funcionários, tampouco os pesquisadores que ali vão, encontram quaisquer condições mínimas de trabalho.

Se o investigador quer tirar uma cópia de algum documento, tem de esperar que um carro venha buscar as pastas e leve para o local onde esta a máquina copiadora, procedimento como qual se corre dois riscos: um deles, e o pior na verdade, é o extravio da própria fonte, porque tudo pode acontecer no caminho entre o arquivo e o local onde se encontra a máquina. Este é um grande, enorme risco para o conhecimento. O outro é para o pesquisador, que tendo trabalho de localizar o documento, marcá-lo, pedir a cópia, fica a mercê de, num mínimo movimento, até o balanço do veículo que leva as caixas, perder todo o seu minucioso trabalho, porque a marcação pode sair do lugar, e aí, trabalho perdido. Por outro lado, a pessoa que tira a cópia, para fazê-lo, desmarca a página, outro grande problema para o pesquisador, porque há o risco do funcionário tirar cópia de página diversa da que se quer. Enfim; tirar cópias de documentos no AHM é mesmo uma prova de paciência, quiçá, é aprender o que Cristo quis dizer quando fala em resignação.

Entretanto, com todas as dificuldades, que não param por aí, porque a cópia do documento é extremamente cara; até se entende o preço, mas o pobre do investigador é penalizado por tentar descobrir as fontes que podem esclarecer muitos pontos ainda obscuros na História da África, não se presta o AHM tão somente para o resgate da História de Moçambique, mas de muitos dos países que lhe fazem fronteira, a exemplo da África do Sul, em razão do Transval e do Rand, da cidade do Cabo, da Suazilândia, Zimbábwe, Tanzânia, Malawi, Zâmbia dentre outros, por isto mesmo é que o investigador deveria ter a sua vida facilitada em termos de cobrança das cópias que, de acordo com a tabela oficial, custa, cada uma, 7,50 meticais. Ou seja, quem precisar tirar 1.000 cópias pagara, aproximadamente, uns 7.500 meticais, equivalente à aproximadamente, no cambio oficial, U$193,00, moeda índice aqui em Maputo, o que é muito. A razão de o investigador tirar cópias dos documentos é o fato de não poder analisá-los, detidamente, no curto espaço de tempo que tem para olhar a documentação no arquivo.

Por outro lado, existem muitos mapas e fotografias em muitas pastas do arquivo, fotografias, por exemplo, que podem, através de si própria, demonstrar o modus vivendi dos povos. Quem trabalha com assimilados tem um manancial enorme de análise com estas fotografias. Mas o que acontece? Não há no prédio onde funciona o arquivo qualquer máquina que proporcione a digitalização do documento.

Na verdade, apesar da riqueza das fontes, o pesquisador se depara com as dificuldades que aqui são identificadas, e que não são só estas. Há também o problema das trocas de caixas: às vezes se procura um documento identificado nos catálogos com um número, quando se encontra a pasta correspondente a ele, não há nada parecido com a descrição do catalogo: estou falando isto porque me aconteceu por várias vezes isto. Como trabalho com a Justiça, para mim era importante encontrar os livros de registro de MILANDOS; para quem não sabe o que se trata, são questões entre os indígenas, que tem as mais variadas causas: família, roubo de animais, devoluções de lobolo, pagamento de lobolo, guarda de filhos, heranças, invasão de machambas, dentre tantos outros que aparecem nos relatórios dos órgãos responsáveis pela resolução deles. Alguns eram resolvidos pelos próprios régulos, cabos e chefes de povoação, mas outros eram submetidos aos administradores, até em casos que os querelantes não se conformavam com a decisão dos chefes. O que me interessava era o registro destes milandos que foram registrados pelos administradores, porque os resolvidos pelos régulos não foram documentados, por óbvio. Encontro eu uma indicação de livro de Registo de Milandos – ano 1922-1959. Fundo da Secretaria de Negócios Indígenas, Cx 11-2841 – C d 2, (registo não está errado, é assim mesmo que é a grafia em português de Portugal). O livro que me é apresentado com esta indicação é um que trata de CONCESSÕES DE TERRENOS A INDIGENAS. Bom valeu porque agora sei que existe um livro que trata disto, mas onde está o de registo de Milandos? O que foi feito dele?

Um outro indicativo: Registo de Milandos 11-2466 B m 4. Encontra-se o livro de nº 2467, 2468 e outros, mas este, que deveria estar na mesma pasta, especificamente este, não está dentro dela. Pergunto se algum investigador está com ele. Não, não há ninguém com ele, e me dizem que está extraviado. Pensem o problema para quem sai do Brasil, passa por Lisboa e segue para Moçambique, apenas e tão somente para encontrar estes dados. Estou ou não aprendendo o que é resignação?

Há outra indicação: desta feita encontrada no ficheiro relativo à Inhambane. –Relação Mensal de Milandos 1897-1899 8-38 M(2) C a 2. O funcionário do arquivo, que vendo a minha dificuldade, fica tão feliz quanto eu, afinal era especificamente uma fonte necessária para o trabalho a desenvolver, e vai buscar a pasta. Novamente uma surpresa para lá de desagradável: a pasta existe, mas não se trata de Milandos, quanto pior, da relação deles.

É um banho de água fria, mas não desanimo, pois a quantidade de caixas que vejo dentro do galpão improvisado em arquivo me dá a certeza que acharei tudo o que quero, e muito mais. O problema agora é o tempo, pois tenho tempo limitado para permanecer em Moçambique, que não concede vistos elásticos para muitos, além do custo de toda a estadia que, pasmem! Correm todos por minha própria conta. Tudo pelo conhecimento!

Bom, mas o que quero que fique bem claro é que, todos aqueles que querem fazer um trabalho sério e fundamentado a respeito da África lusófona tem, certamente, de: em Lisboa, pesquisar na Sociedade de Geografia, Arquivo Histórico do Ultramar, Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca do Centro de Estudos Africanos do ISCTE, mas nada se compara ao Arquivo Histórico de Moçambique e acredito, das demais províncias. Sei que só entende este entusiasmo, apesar de todas as dificuldades descritas, são os amantes da história e de história.

O certo seria que todas as instituições que se interessam pelos estudos africanos se unissem para recuperar, modernizar este arquivo, que muito servirá para o conhecimento e resgate da história do povo africano no geral, e, no caso particular, dos de quem agora falo: dos povos de Moçambique.