terça-feira, 28 de setembro de 2010

Motivo de"relevância nacional"

A Vara era a de um Santo Antonio, o de Jesus: percebam logo de qual é a Vara da qual estou falando para que o Santo não fique ofendido.
Fazia, normalmente, as audiências pela manhã, porque sempre achei que o dia se alonga mais e fica mais produtivo, principalmente em trabalhos “penosos” em que se sabe o horário de inicio, mas nunca se sabe o do término.
Fazia, em média, 15 audiências dia. Sem dúvida que existiam muitos acordos, mas sempre havia uma instrução mais problemática, principalmente quando os patronos das causas não eram da região e tinham códigos de processo diferentes dos “nossos”. Os que advogam em outras praças, principalmente São Paulo e o resto do Sul do Brasil, tinham um código de processo civil especial, desconhecido na Bahia. Tive algumas discussões exatamente por isso, porque sempre fiz audiências unas; para quem não sabe, audiências em que todos os atos eram realizados em uma única sessão, desde a apresentação de defesa passando pela impugnação de documentos, interrogatório das partes, ouvida de testemunhas até as alegações finais em uma única sessão. Só nunca consegui julgar os processos em mesa de audiência, talvez por incapacidade mesmo, mas, muito também, para respeitar quem estava à espera da sua hora, pois acho uma grande sacanagem para com as partes e patronos a longa, e inevitável, espera do seu horário, que nunca é cumprido por completa impossibilidade, e alguém ainda se dar ao luxo de dar sentença em mesa. Os de fora, não acostumados com o procedimento adotado por mim e muitos outros juízes, aliás, recomendado sempre, e ganhando pelo ato processual, queriam sempre o adiamento. Bom mas isto não vem ao caso agora.
O que quero falar é de uma especifica audiência.
Não me lembro exatamente o nome das partes, quero dizer, do reclamante. Sei que era um pedreiro e que tinha trabalhado na restauração do antigo cinema de Nazaré das Farinhas.
O pregão é feito, as partes, segundo a pauta, eram dois homens, o reclamante, que como já disse era pedreiro, e uma pessoa chamada Marcos alguma coisa, não me lembro também.
Feito o pregão adentram a sala: Um homem, que era o reclamante, acompanhado do seu patrono e duas senhoras que também estavam acompanhadas de advogado. As partes, e respectivos patronos, tomam os seus lugares à mesa. Se ainda me lembro, reclamado à direita do Juiz; reclamante à esquerda, o que já recomenda mal, principalmente quando a esquerda era tão festiva.
O advogado do reclamado, assim que se acomoda, diz que vai fazer um acordo.
Eu pergunto:
- Dr. Onde está o Sr. Marcos? Ele me diz que as duas senhoras vêm representá-lo e que já estavam autorizadas a fazer o acordo.
Sendo a ação contra, quero dizer, hoje em dia, “face a” a uma pessoa física, como se este “face a” pudesse humanizar mais o processo e retirasse o fato de que a parte é sempre contrária, não seria possível esta representação.
As duas senhoras, coitadas, não entendiam nada do que estava se passando ali, e diziam:
- O Marcos mandou o dinheiro para fazer o acordo, ele não quer confusão, quer resolver isto rápido, porque ele mora fora e não pode ficar vindo a Nazaré para comparecer à audiência.
Até então, o reclamante e o seu patrono estavam calados. Claro e evidente que convenientemente, eles bem sabiam que um acordo seria ótimo, depois lhes digo o motivo.
O advogado do reclamado insistia:
- Dra. nós queremos fazer o acordo, até o dinheiro está aqui, na mão das senhoras, dinheiro vivo, que será pago de uma só vez.
- Dr. Isto não interessa, o que interessa, e eu não posso fugir disto é que a parte precisa estar presente à audiência, e, no nosso caso presente, ela não está.
O advogado insiste e eu pergunto:
- Qual o motivo da ausência do Sr. Marcos. O advogado diz que ele esta viajando.
As senhoras tornam a dizer que o “Marcos” quer o acordo, mandou dinheiro, quer acabar com aquilo.
Eu sugiro então, que, se a parte reclamante concordasse, eu remarcaria a audiência, e eles no interregno entre esta e a outra, fariam o acordo e eu o homologava sem que fosse necessária uma nova audiência.
Pergunto ao patrono do reclamante:
-Dr. o senhor concorda? Ele fica hesitante e pede para conversar com o seu cliente.
Nisto, pergunto ao patrono do reclamado qual o motivo da viagem do Sr. Marcos, sabendo ele que iria ter uma audiência naquele dia; e então vem o inesperado:
- Dra. O Marcos é o jogador “VAMPETA” e hoje ele está no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, onde vai jogar pela Seleção Brasileira.
- Quem? Vampeta?
- Sim Dra., O Vampeta!
Viro-me, agora par ao reclamante e lhe pergunto.
- Em que obra o senhor trabalhou para o Sr. Marcos.
- Na do cinema.
Olho bem para o reclamante e pergunto:
- Na do cinema de Nazaré, cujo financiamento está sendo feito pelo Vampeta?
- Ele responde: Exatamente.
Não deixo que continue e, sem ouvir mais ninguém determino o adiamento da audiência por motivo de relevância nacional.
Ninguém diz nada. Sorriem, aceitam, vão embora.
Por que aceitaram? Primeiro porque sabiam que eu não mudaria a posição mesmo. Segundo porque: o patrono do reclamado sabia que eu poderia não reconhecer a revelia, mas, acataria a confissão quanto às matérias fáticas, embora isto dificilmente acontecesse, porque todas as vezes que aconteceu da parte reclamada não estar presente, nunca deixei de interrogar o reclamante; tive casos, inclusive, que a ação foi julgada Improcedente. O reclamante por sua vez sabia que faria um acordo que em tudo lhe era benéfico, pois, apesar da obra de restauração do cinema estar sendo financiada pelo “Vampeta”, numa iniciativa merecedora de aplausos, ele não era o empregador e a sua ação teria um de dois resultados: ou extinção sem julgamento de mérito, ou Improcedência.
Aqui há que se fazer um parêntesis: para agradecer mesmo ao jogador o que ele fez pela sua cidade, pois vim a saber que não foi só esta obra que ele financiou. Fez ele muito mais coisas pelo seu Município, pelo seu povo, inclusive, soube por terceiro, e não sei se é verdade mesmo, acredito que sim, mas não vou garantir, embora isto tenha sido divulgado pela imprensa, que o jogador fez uma doação de uma ambulância para a cidade. A doação foi em dinheiro e quem teria ficado com a obrigação de efetivar a compra foi a “Prefeitura”. A ambulância efetivamente foi comprada, houve festa, agradecimentos públicos, etc. Passados alguns meses, circula o boato que o jogador não pagou a ambulância e que esta tinha sido tomada. Na verdade o que aconteceu, também segundo informações, foi que pegaram o dinheiro do homem, fizeram não se sabe o que com ele e compraram o veículo financiado e não pagaram o financiamento. Resultado: para quem sabia que a doação fora feita pelo jogador, quem ficou mal no jogo foi ele.
Ah! Salvo engano, o jogador, nessa época, jogava no Paris Saint Germain e o cinema ficou lindo, eu estive lá pessoalmente para ver o resultado da restauração, recomendo a todos uma visita.
Assim, todos ficaram satisfeitos com o adiamento pelo “relevante motivo nacional”, afinal o reclamado estava representando a Pátria e não poderia ser punido por cumprir um dever cívico.
Em tempo: Fizeram acordo!

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