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quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Garcia D´Ávila V - Recepção ao Visitador

Estava agoniada preparando a ceia do final do ano, ocupadíssima arrumando as coisas, a casa, enfim, nos preparativos para a virada do ano, quando ouço uma voz no meu ouvido:
-Bons dias, parece que vais fazer uma festa hoje, comemoras o que?
Tomei um susto daqueles; esta aparição não estava programada, muito menos querida, então eu toda cheia de coisas a fazer e o Sr. Garcia quer atenção, é porque ele é assim, quando aparece quer que eu pare tudo que estou a fazer e dar atenção total a ele.
-Sr. Garcia o senhor não pode ficar aparecendo assim, ainda me mata de susto. Por que não está em casa supervisionando os seus serviçais que devem estar fazendo a ceia do final do ano para o senhor.
- Qual o que, hoje é um dia como outro qualquer, eles estão trabalhando nas suas tarefas e está tudo controlado, vim aqui porque quero me distrair um pouco com as suas histórias, e para ver se aqueles beneditinos me deixam em paz um pouco,
-Sr. Garcia, fale-me do seu neto.
-Francisco! Aquele anão que “foi parido pelo rabo”, eu que tinha uma filha tão bonita, mas que botou no mundo uma coisa muito feia.
- Sr. Garcia não fale assim de seu neto, ele foi um pequeno grande homem, deu continuidade à sua obra, triplicou o patrimônio que o Sr. deixou para ele, depois, o senhor queria o que: ele é filho de dois mamelucos, resultou de uma mistura. Isabel, sua filha com uma índia, casou-se com o filho de Caramuru, portanto ele não podia ser diferente, estatura pequena, feições grosseiras, enfim, mas o seu sangue está nas veias dele.
De que estas a falar, eu estou aqui, quem manda no meu patrimônio sou eu e Francisco ainda é um menino.
-É Sr. Garcia se o senhor quer saber de sua história e de seus descendentes tem de aceitar o que falo sem me contestar, até porque tenho de ser rápida, pois, como o senhor está vendo, estou muito ocupada, mas me fale, então, da visita que o senhor recebeu do visitador Cristovão de Gouveia?
-Como sabes disto?
-Ah Sr Garcia eu sei de muita coisa da vossa vida, porque o senhor foi mesmo muito importante para nós, os baianos
- Bom, era pouco mais ou menos na metade do ano de 1584, quando o Visitador dos jesuítas estava visitando as aldeias dos jesuítas, foi esta missão que ele veio cumprir aqui, veio no mesmo navio que o governador geral e junto a outro Jesuíta de nome Fernão Cardim, este último era responsável por acompanha-lo nas visitações  e relatar toda a viagem e assim, quando eles saíram da aldeia do Espirito Santos[1],  tinham de passar em Tatuapara e, portanto, lhes dei abrigo e pouso.
- O Senhor sabe que este seu gesto foi conhecido pelo mundo afora?
-Não, não sei, quero saber é como sabes?
- Ah Sr. Garcia eu leio.
-Sabes Ler, és uma mulher educada, bonita, prendada e ainda sabes ler?
-Sim, aqui no meu tempo, muitas pessoas sabem ler e escrever;esta minha resposta passou batida, porque ele estava muito curioso, em outro momento qualquer a discussão recomeçaria e ele se irritaria, como sempre.
-Mas explique-me, diga lá o que disseram desta visita.
- O Sr lembra do Fernão Cardim não lembra? Pois é, todo o relato que ele fez sobre a viagem em que acompanhou o visitador, foi publicada em livro, (1817) que levou o título de TRATADO DAS TERRAS E GENTES DO BRASIL.
= Quando isto foi publicado? Porque esta Visitação ocorreu em enquanto era governador Manuel Telles Barreto, que aqui chegou em 1584 e eu não soube de qualquer publicação.
- Ele foi publicado diversas vezes, mas eu li uma edição bem mais recente. Evidente que eu não ia dizer o ano (1925), se eu falasse isto o problema estaria formado e o Sr. Garcia ia retornar a falar em bruxaria, feitiçaria, fogueira, e eu não estava muito afim de ver, outra vez, a sua ira.
- Diga-me lá o que ele escreveu.
- Ele fala muito bem do senhor e das suas posses, diz que o Sr. abrigou toda a comitiva, deu-lhes pouso, abrigo, comida, tratou-os mais de que bem. Ouça o que ele disse:
“Aquella noite fomos ter a casa de um homem rico, que esperava o padre visitador, é nesta Bahia o segundo mais rico por ter sete ou oito léguas de terra por costa, em a qual se acha o  melhor âmbar que por cá há e só em hum anno colheu oito mil cruzados sem  lhe custar nada. Tem tanto gado que lhe não sabe o número e só do bravo e perdido sustenta as armadas d´El Rey .
Agasalhou o padre em sua casa armada de guardamecins, [2]com uma rica cama, deu-nos sempre de comer aves, peixes, manjar branco, etc. Elle mesmo, desbarretado servia a mesa e nos ajudava na missa em sua capela a mais formosa que há em Brasil”[3]

- Realmente, ele disse-o bem, mas não poderia ter sido diferente, afinal era um padre jesuíta, um visitador, uma pessoa muito importante mesmo.

-Mas diga-me Sr. Garcia, por que o senhor é que serviu a mesa, por que não mandou algum escravo servir.

-Mas como? Então eu deixaria algum negro da terra[4]servir a tão importantes figuras? Não, jamais, ninguém na casa tinha  capacidade para isto. E ele falou mais o que?

O Sr. Garcia estava todo cheio, orgulhosos, não escondia que aquela notícia que eu lhe dera, lhe encheu de vaidade estava todo emplumado, parecia um pavão. Também não poderia ser diferente, naquele relato, do qual Portugal tomara conhecimento, ele estava sendo citado como o segundo mais rico do lugar, tinha hospedado na sua própria casa o visitador e o seu séquito, e ainda por cima ganhara crédito frente aos jesuítas. 

- Ele falou que o Sr., também, na noite seguinte, mandou o seu feitor recebe-los
“Aquella noite nos agasalhou seu feitor do mesmo homem que acima falei a quem ele tinha mandado reccado , fomos providos de todo o necessário com toda a limpeza de porcelanas e pratas, com grande caridade.”[6]   

- Foi isto mesmo, queria mostrar a minha riqueza mesmo e receber muito bem pessoas tão importantes.

- Mas não foi somente o Padre Cardim que falou do  senhor e desta recepção que o senhor ofereceu ao visitador, muitos outros cronistas que falaram do Brasil, citam o senhor a sua riqueza, os seus feitos, todos são unânimes em lhe dar glórias.

O homem, a cada informação, ia ficando mais emplumado, visivelmente emocionado, mas de uma emoção completamente vaidosa, gostou imenso do que ouviu, e estava tão empolgado que disse-me que ia embora contar estas novidades lá em Tatuapara, dito isto, foi-se e eu pude continuar  a fazer a minha ceia.




[1] A aldeia do Espirito Santo ficava onde hoje está Abrantes no litoral norte
[2] Guadamecins -Antiga tapeçaria de couro com pinturas e dourados, feita em Gadamés, cidade da Tripolitânia, África. Variação de guadamecil, guadamecim.
Antiga tapeçaria de couro com pinturas e dourados, feita em Gadamés, cidade da Tripolitânia, África. .
[3] Fernão Cardim, Tratado da Terra e  gente do Brasil,  Introdução e Notas de Baptista Caetano, Capristano de Abreu e  Garcia, RJ, J.Leite e Cia, 1925, pp 311-312
[4] Assim eram denominados os indígenas
[5] Fernão Cardim, ob cit. P. 313

domingo, 3 de dezembro de 2017

O Sr da Torre - Continuação III

Voltei para casa com a sensação de que perdi uma grande oportunidade, que não tinha conseguido informações suficientes do Sr. Garcia D´Ávila, como por exemplo, o fato da denúncia de Isabel, sua filha, contra Mécia Rodrigues a sua falecida esposa.   Queria confirmar mesmo que a denúncia se deu porque a Sra. Mécia era cristã nova, ou seja; ela e seus pais vieram de Portugal exatamente pelo fato de serem judeus e, coercitivamente, se tornarem cristãos, por isso mesmo eram chamados de cristãos novos, judeus convertidos.
Estes judeus convertidos comprometiam-se a não observar mais as práticas judaicas, entretanto, Isabel denunciou a madrasta dizendo que a mesma, em casa, continuava observando tais práticas, de acordo com Isabel ela “presenciara dita Mécia Roriz(Rodrigues) três ou quatro vezes em dias diferentes mandar lançar azeite nas panelas da vaca e galinha, dizendo que, porque eram magras o fazia”. Estão vocês rindo! Não riam não, isto era considerado um costume judaico. Em outra passagem, Isabel informa que Mécia Rodrigues comia carne nos dias em que se deveria comer peixe. Salvo engano, nós ainda mantemos o hábito de comer peixe na sexta feira santa, tão lembrados?  Aliás, se bem me lembro, acho que também tínhamos  um costume de comer peixe às sextas feiras. Ainda na denúncia, Isabel informa que quando morreu um escravo de Mécia, esta mandou deitar fora toda a água da casa
Na mesma época em que Mécia foi denunciada, ou seja; na Primeira Visitação do Santo Oficio à Bahia, (1591) sob o comando de Heitor Furtado de Mendonça, foi denunciada a Sra.  Ana Roriz, cristã nova que veio com toda a sua família, marido e filhos para a Bahia estabelecendo-se em Matoim, onde eram proprietários de um engenho de açúcar próspero, o que, entretanto, não evitou que a matriarca da família fosse denunciada e mandada presa para Lisboa, A Sra. Ana Roriz foi presa aos oitenta anos de idade.
Bom, mas não quero falar de Ana Roriz, quem quiser saber mais a respeito desta família, pode encontrar todas as informações nos arquivos da Inquisição na Torre do Tombo, todos os documentos da visitação do Santo Oficio na Bahia estão digitalizados e podem ser acessados através do site da Torre do Tombo.[1]
Voltando à Isabel e a sua denúncia, que não gerou qualquer consequência. Também ia perguntar ao Sr. Garcia D´Avila se foi realmente verdade que ele teve um outro filho que o denunciara ao Santo Oficio, já que estávamos tão íntimos, era melhor obter esta confirmação diretamente da fonte original, a ter de procurar  fontes históricas, mas foi esta a opção que restou, e, de acordo com  CALMON(1983:31), [2] a denúncia existiu mesmo, na denúncia o filho bastardo de Garcia D´Avila, João Homem, declarou-se filho do Sr. da Torre e de uma senhora de nome Catarina Roriz o homem gostava deste apelido) ao visitador do Santo Oficio.  Não encontrei qualquer informação a respeito das consequências desta denúncia, entretanto no seu testamento o velho da Torre reconhece, indiretamente, o filho, deixando um legado para as duas filhas deste, ou seja, para as inclusive determinando ao neto Francisco, o seu herdeiro, que as recebessem em Tatuapara, na casa da Torre.
“Declaro e mando, que o possuidor do prazo acima dito, suas benfeitorias hirá dando cinquenta mil réis em cadahum anno, cinquenta mil réis, os quaes se depozitarão e entregarão na Caza da Santa Misericórdia desta cidade athé a quantia de cento e cincoenta mil réis para dote e casamento da filha mais velha de João Homem, que Deos tem; o qual dote a dita Caza entregará ao marido que com ella cazar, cazada a dita filha mais velha hira dando pela mesma ordem outra tanta que se depozitara na mesma forma para casamento da outra órfã segunda filha de João Homem para caz doutra órfã, segunda filha de dito João Homem[...], [...] depois de cazadas, querendo ellas com os ditos maridos, acomodar-se nas terras do dito prazo, as acomode como melhor lheparecer desorte que comodamente possao nella viver em suas vidas com rossas e creações ; eem quanto não se cazarem  o dito possuidor as recolherá  em Tatuapara[...] Livro II do Tombo do Mosteiro de São Bento, pp.283-284. [3]
Fiquei pensando: volto outra vez a Casa da Torre?  As minhas entrevistas com o Sr. D´Ávila me deixavam aflita, embora a curiosidade da historiadora batesse forte, mas tinha que acabar com aquilo, até porque para ir ter com o dito senhor, eu precisava gastar dinheiro. Percebam bem: tinha de pegar meu carro, colocar gasolina, sair de Arembepe, dirigir até Praia do Forte, pagar a entrada, sim porque só tinha acesso às ruinas pagando a entrada, será que valia a pena tudo isto? Eu posso responder a esta pergunta, racionalmente valia muito a pensa, mas o meu emocional me dizia que tinha de acabar com esta história.
Bom tenho que decidir isto, mas, para minha surpresa, quando cheguei em casa, quem está sentado na minha sala? O Sr. Garcia D´Ávila, se não fosse um espirito e eu sabia disto, diria que em carne e osso. Tomei um grande e imenso susto. Meu deu ganas de perguntar-lhe como ele entrou na minha casa.
O desgraçado nem me deu tempo de recuperar-me: -   Sois casada? Quem é o vosso marido?  A quem ele paga o foro?
- Sr D´Ávila como me achou?
. Segui-te, simplesmente, foi difícil porque esta geringonça em que andas é muito rápida, mas meus cavalos são bons e cá estou.
- Sr D´Ávila o senhor não pode invadir assim a casa dos outros, faça o favor de retirar-se.
- Como? O que estas a dizer? Vais me expulsar da minha própria terra? Se alguém tem de sair daqui certamente  é a senhora. O homem estava vermelho de raiva. Eu já nervosa, tentando falar baixo, mas com uma vontade danada de gritar, corri para o quarto e me tranquei, como se isto fosse suficiente para afasta-lo, ledo engano!  O homem estava lá diante de mim parecia querer agarrar-me, me esganar.
-Não podes fugir de mim, não vês, não percebes?
Sr. Garcia o que o senhor quer de mim/
Quero saber o que sabes sobre a minha família, que termines o que começastes. Deixaste-me curioso, porque falas de coisas das quais não me lembro de ter passado ou acontecido.
-Claro senhor D´Ávila que não podes saber de coisas que aconteceram depois do seu passamento.
-Já vos disse que estou aqui, e que não houve qualquer passamento, mas não quero aborrecimentos consigo,s quero é que me contes mais, gosto da sua narrativa, mas daqui em diante teremos que marcar um dia, pois estas a me fazer perder muito empo e sou um homem muito ocupado, tenho que cuidar dos meus bens, do gado, dos escravos, do açúcar, das terras,  etc.´
Sr D´Ávila eu preciso comer, dormir, não podemos tratar disto em outra hora?
- Nem percebi que já está a escurecer. Não vai ascender as tochas e o azeite?  Onde estão os seus escravos para fazer isto?
-Em que ano o Sr está vivendo?
- Em 1592.
Pensem aí como seria difícil para mim explicar àquele senhor, acostumado a ser obedecido, o garanhão de Tatuapara,( pois o danado era mesmo um comedor, era um garanhão português, macho que demonstrava, em ações, esta qualidade tão cultivada pelos homens portugueses que aqui vieram, e penso que ainda cultivam orgulhosamente os hoje patrícios) transou bem, andou com as oficiais e reconhecidas pela sociedade da época, como também as extra oficiais, teve aventuras com mulheres brancas e com as índias,, teve a esposa Mécia, aliás, com quem casou obrigado, pois este seu casamento foi, como se dizia à época, na justiça. E  como diria minha mãe,  “quem puxa aos seus não degenera”, a  sua filha Isabel  andou adiantando o serviço e teve um casamento determinado pela Justiça ( foi deflorada pelo homem que se tornou o seu primeiro marido), Sim, voltando ao Sr D´Ávila, como eu poderia dizer a ele que o tempo havia mudado, que eu não tinha escravos, que a luz era elétrica, etc. então não expliquei nada, e lhe disse que mais tarde providenciaria tudo, que a luz do dia ainda era suficiente, mas que ele precisava  ir embora, que de lá de casa, Arembepe para a Torre, seu castelo, era longe e quando ele chegasse lá já seria noite alta.
Consegui convencer o homem que realmente montou no cavalo que estava apeado à porta lá de casa. Fui até a porta para vê-lo desaparecer, pedindo a Deus que ele não desse na telha de retornar e ainda preocupada com os vizinhos, que, certamente não iam entender nada, vendo-me a falar com alguém que só eu podia ver, falar, conversar.   
Quando tive a certeza de que não voltaria mesmo, passados duas horas ou mais que ele se tinha ido, peguei os livros e comecei a ler, afinal tinha de ficar afiada mesmo porque, com certeza, ele não ia desaparecer assim tão fácil da minha vida e agora eu estava perdida mesmo, pois ele poderia aparecer a qualquer momento e lá na minha casa. Este último pensamento me provocou calafrios, só faltava agora eu acordar com o homem da torre deitado ao meu lado.,.
Mas, o que descobri, será objeto de um novo capitulo. Kkkkkk, aguardem




[1] Digitarq.arquivos.pt
[2] CALMON Pedro. História da Casa da Torre – Uma Dinastia de Pioneiros, 3ª. Ed. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1983
[3] Livro II Tombo do Mosteiro de São Bento, p 284 ( a grafia é a da época, como está no livro de tombo)

terça-feira, 7 de novembro de 2017

A casa da Torre

Saí de Arembepe e fui até praia do Forte, com o objetivo de visitar o Castelo Garcia D´Avila – Castelo da Torre. Já fiz isto outras vezes, no entanto, hoje estou indo com os meus olhos de ver, porque li muito sobre o clã, embora com leituras que trazem, apenas as glorias e conquistas desta família.
O fundador da casa da Torre chegou ao Brasil juntamente com Tomé de Sousa, o primeiro governador geral. Certamente não era um qualquer, tinha a sua origem, se não fidalga, bem próximo de quem a tinha, no caso o governador geral, que vinha com todos os poderes para nomeações para exercícios de cargos, doações de terras, afinal era o representante do rei nessas longínquas terras brasilienses.

Chego ao castelo que está em ruínas, dizem que o estão recuperando, mas a única coisa que vejo recuperada é a pequena igreja.  Sinto-me estranha ao adentrar às ruínas, parece-me que ouço pedidos de ajuda, gemidos, gritos, vozes alteradas. Ouço vozes de crianças, mulheres, homens que pedem clemência.
Me assusto, parece-me que estou num túnel o tempo, estou em um período distante do atual,  os calafrios  me deixam gelada, os pelos estão eriçados, vejo,  perplexa, um homem caminhando em minha direção.
Fixo meu olhar na figura que cada vez mais se aproxima, percebo que não é uma pessoa do nosso tempo, suas vestes, a barba, as armas, enfim, ninguém que estava por perto quando adentrei ao local estava assim trajado, e não poderia ser diferente, ninguém mais se vestia daquela maneira, parecia uma pessoa saída dos meus livros de história.
Olho para as pessoas que estão por perto, elas não parecem assustadas, continuam percorrendo as ruinas da casa da Torre como se nada estivesse acontecendo de diferente. A figura vem se chegando mais e mais, para diante de mim: quase tenho um ataque do coração quando com um português bem diferente e com as mãos para trás ouço: Que fazes aqui? Quem és?  Como adentrastes a esta casa? Susto após susto, congelada, não tenho como responder, até tento, mas a voz não sai e vejo as mãos do homem em minha direção, tento correr e não saio do lugar, tento gritar, mas nada, não sai som algum, as pessoas passam por detrás de mim, por trás do homem, e parecem não ver nada, vou dando de ré, até me encostar na parede de pedra, que ferve, pois o castelo em ruínas não tem teto e o sol  esquenta as pedras que chegam mesmo a queimar minhas costas. O homem continua a vim em minha direção.  Lembro-me então: É o Senhor Garcia D`Ávila, o homem mais rico da Bahia?  O Sr. Da casa da Torre?
“ Me conheces?”
Tomo as rédeas; parece que tenho uma iluminação divina e digo: Quem nesta terra Brasil não vos conhece senhor?  O Senhor dos sertões nordestinos, o criador de gado que alcançou terras longínquas, do curral de Itapoã às terras  dos quatro cantos do Brasil? O homem que criou um feudo por estas terras brazilis.
“Onde vives? Que fazes aqui? És muito diferente  das  mulheres e outras pessoas  que tem acesso à minha propriedade? És acaso filha de algum dos escravos? Não pareces, tens a pele clara, vestes-te de uma maneira muito diferente.
Senhor D´Avila: se eu explicasse o senhor não entenderia, mas conheço a si e a vossa família, posso contar a sua história e se tiver erros o senhor pode corrigir, tenhas a certeza que muito me ajudará.
O Sr. veio de Portugal em companhia de Tomé de Souza,  aliás, dizem as más línguas que o Sr é filho bastardo dele. É verdade?
Eu, filho Bastardo? Quem inventou uma história desta? Rapariga, queres a morte? Estas a brincar com fogo.
Não, longe de mim, mas o Sr sabe como são as futricas, pois o vulgo diz que o Sr é filho bastardo dele, e por isso mesmo é que veio junto com ele para estas terras, e que nunca se posicionou como filho porque, se assim fizesse, não poderia receber doações, sesmarias ou exercer cargos públicos, por ser isto proibido por lei. Os governadores não podiam colocar parentes em cargos e nem fazer doações de terras.
É isto mesmo a língua do povo é assim, apenas somos da mesma região do reino, uma terrinha perto de Póvoa do Varzim, chamada São Pedro de Rates, no norte de Portugal.
-Bom se o senhor está dizendo, devo acreditar, quem sou eu para duvidar das palavras do Senhor da Torre? Sim, mas como foi que o sr. Conseguiu vim para o Brasil com Tomé de Souza? E como conseguiu ficar tão rico e ter tantas terras?
-É facto: vim com Tomé de Souza como criado do governador[1], e aqui fui por ele nomeado, logo na chegada, como Feitor da cidade e Almoxarife da Alfândega.[2] Depois, com a chegada do gado vacum à Salvador, passei a cuidar do gado em 1551. Recebi de Tomé de Souza, da sesmaria que lhe cabia, 14 léguas de terra, que ia de Itapoa até o Rio Real. Conheces  estas terras?
Sim, conheço, aliás moro bem perto delas
-Como? Com autorização de quem moras nas minhas terras?
Começo outra vez a ficar com medo do homem, ficou possesso com esta resposta.
-Calma Sr. D´Avila, posso explicar. Mas como eu ia explicar isto, o homem estava enfurecido.
Tive um insight e perguntei sobre a sua mulher, onde ela estava neste momento>  Senhor, onde está a senhora Francisca Rodrigues? E como está a sua filha Isabel D´Avila?
O homem recua. - Como sabes os nomes da minha mulher e da minha filha.
- Ah Senhor, sei muita coisa a vosso respeito, não só de si, como de toda a vossa família.
-Famíia, que família, sou só eu aqui, só tenho a a minha mulher e filha, a que família te referes?
-A toda a sua descendência, seus netos, bisnetos, genros, enfim, conheço tudo.
-Se sabes de tudo isto, és uma bruxa, vou te mandar para a fogueira.
-Por favor Sr. Garcia, deixe-me falar, o senhor vai gostar do que vai ouvir.
O homem se acalma, olha para mim num misto de curiosidade e incerteza, e pede para acompanha-lo, convidando-me a entrar na  casa.
Sigo-o quieta, doida para que ele vá embora, para que desapareça, mas ele vai falando e me mostrando a casa. Eu não vejo nada do que ele me apresenta, mas sinto que ele tem um imenso orgulho de dizer como fez isto e aquilo, por que fez a capela? Como construiu aquilo ali, por que escolheu aquele lugar?
Ele tem toda razão, onde planejou a construção da casa forte, o fez estrategicamente, de onde ele estava podia avistar qualquer embarcação que se aproximasse, que navegasse seja em direção, a Salvador, seja em direção ao norte, mais ainda, o gado podia pastar a vontade, terras não faltavam, índios a aprisionar também não, o porto lá embaixo era seguro. Realmente o Sr D´Avila era um estrategista de primeira, um comerciante maior ainda, tudo contribuía para o seu sucesso.
A mulher com quem o Garcia D ávila teve uma filha era uma índia, a quem ele tirou da casa paterna para com ele conviver, dando-lhe o nome cristão de Francisca Rodrigues, ou seja, a sua filha Isabel era uma “mameluca”, filha de português com índio.
Bom, estava quase chegando a hora de ir embora, a tarde já ia finda, mas o homem parecia não querer se ausentar da casa, falava e falava, reclamava com um, ajeitava uma outra coisa, gritava a mulher, enfim, mostrava todo o seu poder.
Eu precisava sair, tentava me despedir, mas ele nada, agora estava interessado no que eu falava sobre a sua família, sobre as suas posses, enfim, estava entusiasmado ouvindo alguém falar das suas glorias e do seu poder, todavia eu tinha de ir embora, e foi exatamente o que aconteceu, porque os funcionários da fundação me pediram para retirar-me, não antes de eu prometer ao Sr. Garcia D Ávila que voltaria um outro dia para falar mais sobre ele e sua descendência.
Bem, como o deixei  interessado,  com a pulga trás da orelha e morrendo de curiosidade, deixo também vocês, esta história é longa, envolve muitos nomes e fatos históricos, é uma história viva, que passarei a contar por etapas. Aguardem..



[1] De acordo com os jesuítas, segundo Pedro Calmon, (1983: 23) “Criado de Tomé de Sousa, escreveram os jesuítas, ou seja pessoa de sua criação, que é ser como de sua família”
[2] CALMON, Pedro. História da Casa da Torre – Uma Dinastia de Pioneiros, 3ª, ed. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1983, pg23.