quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Garcia D´Ávila V - Recepção ao Visitador

Estava agoniada preparando a ceia do final do ano, ocupadíssima arrumando as coisas, a casa, enfim, nos preparativos para a virada do ano, quando ouço uma voz no meu ouvido:
-Bons dias, parece que vais fazer uma festa hoje, comemoras o que?
Tomei um susto daqueles; esta aparição não estava programada, muito menos querida, então eu toda cheia de coisas a fazer e o Sr. Garcia quer atenção, é porque ele é assim, quando aparece quer que eu pare tudo que estou a fazer e dar atenção total a ele.
-Sr. Garcia o senhor não pode ficar aparecendo assim, ainda me mata de susto. Por que não está em casa supervisionando os seus serviçais que devem estar fazendo a ceia do final do ano para o senhor.
- Qual o que, hoje é um dia como outro qualquer, eles estão trabalhando nas suas tarefas e está tudo controlado, vim aqui porque quero me distrair um pouco com as suas histórias, e para ver se aqueles beneditinos me deixam em paz um pouco,
-Sr. Garcia, fale-me do seu neto.
-Francisco! Aquele anão que “foi parido pelo rabo”, eu que tinha uma filha tão bonita, mas que botou no mundo uma coisa muito feia.
- Sr. Garcia não fale assim de seu neto, ele foi um pequeno grande homem, deu continuidade à sua obra, triplicou o patrimônio que o Sr. deixou para ele, depois, o senhor queria o que: ele é filho de dois mamelucos, resultou de uma mistura. Isabel, sua filha com uma índia, casou-se com o filho de Caramuru, portanto ele não podia ser diferente, estatura pequena, feições grosseiras, enfim, mas o seu sangue está nas veias dele.
De que estas a falar, eu estou aqui, quem manda no meu patrimônio sou eu e Francisco ainda é um menino.
-É Sr. Garcia se o senhor quer saber de sua história e de seus descendentes tem de aceitar o que falo sem me contestar, até porque tenho de ser rápida, pois, como o senhor está vendo, estou muito ocupada, mas me fale, então, da visita que o senhor recebeu do visitador Cristovão de Gouveia?
-Como sabes disto?
-Ah Sr Garcia eu sei de muita coisa da vossa vida, porque o senhor foi mesmo muito importante para nós, os baianos
- Bom, era pouco mais ou menos na metade do ano de 1584, quando o Visitador dos jesuítas estava visitando as aldeias dos jesuítas, foi esta missão que ele veio cumprir aqui, veio no mesmo navio que o governador geral e junto a outro Jesuíta de nome Fernão Cardim, este último era responsável por acompanha-lo nas visitações  e relatar toda a viagem e assim, quando eles saíram da aldeia do Espirito Santos[1],  tinham de passar em Tatuapara e, portanto, lhes dei abrigo e pouso.
- O Senhor sabe que este seu gesto foi conhecido pelo mundo afora?
-Não, não sei, quero saber é como sabes?
- Ah Sr. Garcia eu leio.
-Sabes Ler, és uma mulher educada, bonita, prendada e ainda sabes ler?
-Sim, aqui no meu tempo, muitas pessoas sabem ler e escrever;esta minha resposta passou batida, porque ele estava muito curioso, em outro momento qualquer a discussão recomeçaria e ele se irritaria, como sempre.
-Mas explique-me, diga lá o que disseram desta visita.
- O Sr lembra do Fernão Cardim não lembra? Pois é, todo o relato que ele fez sobre a viagem em que acompanhou o visitador, foi publicada em livro, (1817) que levou o título de TRATADO DAS TERRAS E GENTES DO BRASIL.
= Quando isto foi publicado? Porque esta Visitação ocorreu em enquanto era governador Manuel Telles Barreto, que aqui chegou em 1584 e eu não soube de qualquer publicação.
- Ele foi publicado diversas vezes, mas eu li uma edição bem mais recente. Evidente que eu não ia dizer o ano (1925), se eu falasse isto o problema estaria formado e o Sr. Garcia ia retornar a falar em bruxaria, feitiçaria, fogueira, e eu não estava muito afim de ver, outra vez, a sua ira.
- Diga-me lá o que ele escreveu.
- Ele fala muito bem do senhor e das suas posses, diz que o Sr. abrigou toda a comitiva, deu-lhes pouso, abrigo, comida, tratou-os mais de que bem. Ouça o que ele disse:
“Aquella noite fomos ter a casa de um homem rico, que esperava o padre visitador, é nesta Bahia o segundo mais rico por ter sete ou oito léguas de terra por costa, em a qual se acha o  melhor âmbar que por cá há e só em hum anno colheu oito mil cruzados sem  lhe custar nada. Tem tanto gado que lhe não sabe o número e só do bravo e perdido sustenta as armadas d´El Rey .
Agasalhou o padre em sua casa armada de guardamecins, [2]com uma rica cama, deu-nos sempre de comer aves, peixes, manjar branco, etc. Elle mesmo, desbarretado servia a mesa e nos ajudava na missa em sua capela a mais formosa que há em Brasil”[3]

- Realmente, ele disse-o bem, mas não poderia ter sido diferente, afinal era um padre jesuíta, um visitador, uma pessoa muito importante mesmo.

-Mas diga-me Sr. Garcia, por que o senhor é que serviu a mesa, por que não mandou algum escravo servir.

-Mas como? Então eu deixaria algum negro da terra[4]servir a tão importantes figuras? Não, jamais, ninguém na casa tinha  capacidade para isto. E ele falou mais o que?

O Sr. Garcia estava todo cheio, orgulhosos, não escondia que aquela notícia que eu lhe dera, lhe encheu de vaidade estava todo emplumado, parecia um pavão. Também não poderia ser diferente, naquele relato, do qual Portugal tomara conhecimento, ele estava sendo citado como o segundo mais rico do lugar, tinha hospedado na sua própria casa o visitador e o seu séquito, e ainda por cima ganhara crédito frente aos jesuítas. 

- Ele falou que o Sr., também, na noite seguinte, mandou o seu feitor recebe-los
“Aquella noite nos agasalhou seu feitor do mesmo homem que acima falei a quem ele tinha mandado reccado , fomos providos de todo o necessário com toda a limpeza de porcelanas e pratas, com grande caridade.”[6]   

- Foi isto mesmo, queria mostrar a minha riqueza mesmo e receber muito bem pessoas tão importantes.

- Mas não foi somente o Padre Cardim que falou do  senhor e desta recepção que o senhor ofereceu ao visitador, muitos outros cronistas que falaram do Brasil, citam o senhor a sua riqueza, os seus feitos, todos são unânimes em lhe dar glórias.

O homem, a cada informação, ia ficando mais emplumado, visivelmente emocionado, mas de uma emoção completamente vaidosa, gostou imenso do que ouviu, e estava tão empolgado que disse-me que ia embora contar estas novidades lá em Tatuapara, dito isto, foi-se e eu pude continuar  a fazer a minha ceia.




[1] A aldeia do Espirito Santo ficava onde hoje está Abrantes no litoral norte
[2] Guadamecins -Antiga tapeçaria de couro com pinturas e dourados, feita em Gadamés, cidade da Tripolitânia, África. Variação de guadamecil, guadamecim.
Antiga tapeçaria de couro com pinturas e dourados, feita em Gadamés, cidade da Tripolitânia, África. .
[3] Fernão Cardim, Tratado da Terra e  gente do Brasil,  Introdução e Notas de Baptista Caetano, Capristano de Abreu e  Garcia, RJ, J.Leite e Cia, 1925, pp 311-312
[4] Assim eram denominados os indígenas
[5] Fernão Cardim, ob cit. P. 313

Nenhum comentário:

Postar um comentário