Estava agoniada preparando a ceia
do final do ano, ocupadíssima arrumando as coisas, a casa, enfim, nos
preparativos para a virada do ano, quando ouço uma voz no meu ouvido:
-Bons dias, parece que vais fazer
uma festa hoje, comemoras o que?
Tomei um susto daqueles; esta
aparição não estava programada, muito menos querida, então eu toda cheia de
coisas a fazer e o Sr. Garcia quer atenção, é porque ele é assim, quando
aparece quer que eu pare tudo que estou a fazer e dar atenção total a ele.
-Sr. Garcia o senhor não pode
ficar aparecendo assim, ainda me mata de susto. Por que não está em casa
supervisionando os seus serviçais que devem estar fazendo a ceia do final do
ano para o senhor.
- Qual o que, hoje é um dia como
outro qualquer, eles estão trabalhando nas suas tarefas e está tudo controlado,
vim aqui porque quero me distrair um pouco com as suas histórias, e para ver se
aqueles beneditinos me deixam em paz um pouco,
-Sr. Garcia, fale-me do seu neto.
-Francisco! Aquele anão que “foi
parido pelo rabo”, eu que tinha uma filha tão bonita, mas que botou no mundo uma
coisa muito feia.
- Sr. Garcia não fale assim de
seu neto, ele foi um pequeno grande homem, deu continuidade à sua obra,
triplicou o patrimônio que o Sr. deixou para ele, depois, o senhor queria o
que: ele é filho de dois mamelucos, resultou de uma mistura. Isabel, sua filha
com uma índia, casou-se com o filho de Caramuru, portanto ele não podia ser
diferente, estatura pequena, feições grosseiras, enfim, mas o seu sangue está
nas veias dele.
De que estas a falar, eu estou
aqui, quem manda no meu patrimônio sou eu e Francisco ainda é um menino.
-É Sr. Garcia se o senhor quer
saber de sua história e de seus descendentes tem de aceitar o que falo sem me
contestar, até porque tenho de ser rápida, pois, como o senhor está vendo,
estou muito ocupada, mas me fale, então, da visita que o senhor recebeu do
visitador Cristovão de Gouveia?
-Como sabes disto?
-Ah Sr Garcia eu sei de muita
coisa da vossa vida, porque o senhor foi mesmo muito importante para nós, os
baianos
- Bom, era pouco mais ou menos na
metade do ano de 1584, quando o Visitador dos jesuítas estava visitando as aldeias
dos jesuítas, foi esta missão que ele veio cumprir aqui, veio no mesmo navio
que o governador geral e junto a outro Jesuíta de nome Fernão Cardim, este último
era responsável por acompanha-lo nas visitações
e relatar toda a viagem e assim, quando eles saíram da aldeia do
Espirito Santos[1], tinham de passar em Tatuapara e, portanto, lhes dei abrigo e pouso.
- O Senhor sabe que este seu
gesto foi conhecido pelo mundo afora?
-Não, não sei, quero saber é como
sabes?
- Ah Sr. Garcia eu leio.
-Sabes Ler, és uma mulher
educada, bonita, prendada e ainda sabes ler?
-Sim, aqui no meu tempo, muitas
pessoas sabem ler e escrever;esta minha resposta passou batida, porque ele estava muito curioso, em outro momento qualquer a discussão recomeçaria e ele se irritaria, como sempre.
-Mas explique-me, diga lá o que
disseram desta visita.
- O Sr lembra do Fernão Cardim
não lembra? Pois é, todo o relato que ele fez sobre a viagem em que acompanhou
o visitador, foi publicada em livro, (1817) que levou o título de TRATADO DAS
TERRAS E GENTES DO BRASIL.
= Quando isto foi publicado? Porque
esta Visitação ocorreu em enquanto era governador Manuel Telles Barreto, que
aqui chegou em 1584 e eu não soube de qualquer publicação.
- Ele foi publicado diversas
vezes, mas eu li uma edição bem mais recente. Evidente que eu não ia dizer o
ano (1925), se eu falasse isto o problema estaria formado e o Sr. Garcia ia retornar a falar em bruxaria, feitiçaria, fogueira, e eu não estava muito afim
de ver, outra vez, a sua ira.
- Diga-me lá o que ele escreveu.
- Ele fala muito bem do senhor e
das suas posses, diz que o Sr. abrigou toda a comitiva, deu-lhes pouso, abrigo,
comida, tratou-os mais de que bem. Ouça o que ele disse:
“Aquella
noite fomos ter a casa de um homem rico, que esperava o padre visitador, é
nesta Bahia o segundo mais rico por ter sete ou oito léguas de terra por costa,
em a qual se acha o melhor âmbar que por
cá há e só em hum anno colheu oito mil cruzados sem lhe custar nada. Tem tanto gado que lhe não
sabe o número e só do bravo e perdido sustenta as armadas d´El Rey .
Agasalhou
o padre em sua casa armada de guardamecins, [2]com
uma rica cama, deu-nos sempre de comer aves, peixes, manjar branco, etc. Elle
mesmo, desbarretado servia a mesa e nos ajudava na missa em sua capela a mais
formosa que há em Brasil”[3]
- Realmente, ele disse-o bem, mas não poderia ter
sido diferente, afinal era um padre jesuíta, um visitador, uma pessoa muito
importante mesmo.
-Mas diga-me Sr. Garcia, por que o senhor é que
serviu a mesa, por que não mandou algum escravo servir.
-Mas como? Então eu deixaria algum negro da terra[4]servir
a tão importantes figuras? Não, jamais, ninguém na casa tinha capacidade para isto. E ele falou mais o que?
O Sr. Garcia estava todo cheio, orgulhosos, não
escondia que aquela notícia que eu lhe dera, lhe encheu de vaidade estava todo
emplumado, parecia um pavão. Também não poderia ser diferente, naquele relato,
do qual Portugal tomara conhecimento, ele estava sendo citado como o segundo
mais rico do lugar, tinha hospedado na sua própria casa o visitador e o seu
séquito, e ainda por cima ganhara crédito frente aos jesuítas.
- Ele falou que o Sr., também, na noite seguinte,
mandou o seu feitor recebe-los
“Aquella
noite nos agasalhou seu feitor do mesmo homem que acima falei a quem ele tinha
mandado reccado , fomos providos de todo o necessário com toda a limpeza de
porcelanas e pratas, com grande caridade.”[6]
-
Foi isto mesmo, queria mostrar a minha riqueza mesmo e receber muito bem
pessoas tão importantes.
-
Mas não foi somente o Padre Cardim que falou do
senhor e desta recepção que o senhor ofereceu ao visitador, muitos outros
cronistas que falaram do Brasil, citam o senhor a sua riqueza, os seus feitos,
todos são unânimes em lhe dar glórias.
O
homem, a cada informação, ia ficando mais emplumado, visivelmente emocionado,
mas de uma emoção completamente vaidosa, gostou imenso do que ouviu, e estava
tão empolgado que disse-me que ia embora contar estas novidades lá em
Tatuapara, dito isto, foi-se e eu pude continuar a fazer a minha ceia.
[1] A
aldeia do Espirito Santo ficava onde hoje está Abrantes no litoral norte
[2]
Guadamecins -Antiga
tapeçaria de couro com pinturas e dourados, feita em Gadamés, cidade da
Tripolitânia, África. Variação de guadamecil, guadamecim.
Antiga tapeçaria de couro com
pinturas e dourados, feita em Gadamés, cidade da Tripolitânia, África.
.
[3]
Fernão Cardim, Tratado da Terra e gente do Brasil, Introdução e Notas de Baptista Caetano,
Capristano de Abreu e Garcia, RJ,
J.Leite e Cia, 1925, pp 311-312
[4] Assim
eram denominados os indígenas
[5]
Fernão Cardim, ob cit. P. 313
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