quarta-feira, 2 de maio de 2018

Garcia D`Ávila XII - Continuação da chegada


Estava em casa. Chovia muito e eu, que adoro ver a chuva caindo, estava deitada na rede olhando os pingos grossos acabarem na grama, que estava verdinha, linda. O flamboyant acumulava gotinhas d`agua nas suas flores grená, que contrastavam com o verde das folhas; o coqueiro deixava que a água escorresse pelas suas palhas, engrossando mais o pingo da água. Sim, apesar de estar calma e naquele ambiente bucólico, não deixava de pensar no sr. Garcia. “Se aquele murro realmente tivesse acontecido, não sei como estaria o meu rosto: deformado com certeza!
Olhe que algumas vezes me olhei no espelho, pois a sensação é que tinha mesmo tomado aquela “pera” que o Sr.  Garcia me desferiu.  Bom, mas uma coisa era certa, acho que ele iria desaparecer completamente da minha vida, pois para ele, ele havia mesmo me batido e o estrago ele bem sabia, era terrível.
Continuei na rede, na realidade não tinha vontade de fazer nada, a não ser olhar a chuva caindo e limpando, não só o telhado da casa, como também a minha alma, sim porque era muito bom o devaneio que aquela cena tão natural me proporcionava. Ficava ali pensando em tanta coisa boa, que me esquecia das mazelas e até mesmo do “soco” do Sr. Garcia.
Entretanto, um som de casco de cavalo nas pedras me tirou daquele gostoso “far niente”.  Bom alguém com coragem está andando a cavalo na chuva. Algum louco, certamente, mas de súbito o som para, pareceu-me que o cavalo parou lá na porta de casa. Da rede me estiquei toda para olhar na fresta entre o portão e o chão. Não vi nada, não havia qualquer sombra, mas não gostei daquilo, pois, tinha a certeza absoluta que o som do casco do cavalo nas pedras da rua parou ali. De repente: Ai meu Deus! Será que é aquele filho de uma mãe? Ele tem coragem de vim aqui depois da merda que aprontou?
Fiquei hiperagoniada, sabia que estava completamente vulnerável, o fato de estar chovendo não tinha qualquer problema se fosse o Sr. da Torre que estivesse ali na frente de casa.  Droga! Este homem não me deixa em paz? O que devo fazer para me livrar deste encosto?
Todavia, ao mesmo tempo que queria que ele se afastasse de uma vez por todas, eu também queria continuar com estas conversas com ele, pois era muito interessante mesmo, falar de coisas do passado com alguém que, efetivamente, viveu aquele momento.
Quando olhei novamente para o portão: Lá vem ele, estava muito arrumado e trazia uma capa por cima da roupa, que parecia limpíssima, até as botas estavam impecáveis e ele vinha na direção da rede com uma das mãos para trás.
Quis levantar correndo, mas ele foi mais rápido de que eu, e já estava ao pé da rede me impedindo de levantar.
- O Sr. não tem vergonha não? Faz a merda que fez e ainda tem coragem de vim aqui?
- Vim para pedir-te desculpas; estou estes dias todos agoniado, pensando como tu estarias, como estava o teu rosto, mas vejo que me preocupei atoa, porque não vejo nenhuma marca de nada.
Não sabia se ria ou se chorava, sinceramente.  Ver o espanto do Sr. Garcia ao ver o meu rosto era mesmo uma graça, mas sabe-lo ali mais uma vez, sem a perspectiva de livrar-me dele era um transtorno. Não adiantava nada dizer impropérios, manda-lo embora; ele simplesmente ficava ali o tempo que quisesse, entrando e saindo na hora que bem lhe entendesse.,
- Vamos lá, tenho uma coisa para ti.
E dizendo isto estendeu a mão que estava escondida e eu vi algo brilhando.
-Vamos levanta-te, quero eu mesmo colocar isto no teu pescoço.
-Sr. Garcia eu não quero nada, faça o favor de ir-se da minha casa, o senhor me ofendeu bastante.
-Anda cá, desculpa-me vai lá. Vamos conversar, pergunte o que quiser, faço qualquer coisa para que me perdoes.
Era mesmo ridículo ver aquele pequeno homem todo enfatiotado e muito atabalhoadamente pedindo desculpas.  Tive que rir da situação e levantei-me da rede sem pegar na mão que ele estendia.
Vira-te de costas para que eu possa colocar a gargantilha.
Ri e virei-me, não ia ter mesmo saída. Senti um ligeiro calafrio, parecia que algo de metal gelado estava em volta do meu pescoço, comecei mesmo a tremer pensando   de como ficara vulnerável. E se o diabo do homem tentasse garguelar-me.
-Vira-te. Ficou lindo! Tens um belo colo, es, efetivamente, uma bela mulher.
Caminhei até a cozinha e olhei-me no vidro do armário. Não vi nada, mas aquela sensação de que algo frio estava em volta do meu pescoço continuava.
-Gostas? Estou perdoado!
Sim, gosto.
-Vamos para a sala, quero sentar-me naquela cadeira confortável e lá perguntas o que quiseres.
-Bom, vamos continuar aquela nossa conversa sobre a fundação de Salvador.
-Onde ficamos?
-No segundo dia, após a chegada.
-Bem no segundo dia após a nossa chegada, depois da recepção que nos foi feita pelo Caramuru, lá na Vila do Pereira, era hora de procurar, como nos foi ordenado, um lugar para começar a cidade.
- Sr. Garcia, me satisfaça uma curiosidade: Onde os senhores dormiram? Aliás onde dormiu todo mundo?
Na nau minha querida, onde poderíamos mais dormir?
-Sei lá, na casa do Caramuru?
Casa?  Que casa? O Caramuru e a sua família moravam, como todos os demais índios do local, em choupanas cobertas de palha, nós não estávamos acostumados com aquilo e não poderíamos dormir ali, até porque não tinha lugar suficiente.  
- Levaram alguma índia para a nau?
-Estas doidas ou o que? O Capitão Thomé de Sousa é um homem sério e jamais iria permitir uma coisa desta.
-Não foi isto que soube Sr. Garcia, tenho informações que os índios costumam oferecer mulheres aos seus visitantes, inclusive a própria.
-Tens muita coisa nesta cabeça, estamos falando de Diogo Alvares, que era português, por mais que ele convivesse com os índios não iria, de maneira alguma, acatar alguns dos costumes bárbaros deles. Então lá ia ele oferecer a mulher ao Capitão, ou a qualquer um de nós?
-Está bem Sr Garcia, mas me diga, o que foi mesmo que foi ordenado ao Thomé de Sousa.
- O Thomé de Souza trouxe Regimento consigo, aliás além do Regimento de Thomé de Sousa, foram a regimentos ao Antônio Cardoso de Barros – o que foi nomeado como Provedor-Mor  e ao Pero Borges de Sousa  o de ouvidor geral e ainda a Pero de Góes o de capitão mor da costa. Todos estes regimentos foram assinados em Almerim em dezembro de 1548.[1]
-Almeirim? Por que Almeirim e não Lisboa?
- Então não sabes, Tu que sabes de tudo.  Foi assinado lá porque o Rei estava no local onde passava a temporada de inverno.
-Ah!  Não sabia disto Sr. Garcia, mas qual a diferença climática? Almeirim fica tão perto de Lisboa..
- Aquilo lá era uma falta de vergonha. Todos os anos a mesma coisa, a corte se transferia para lá nesse período e  se  fazia caçadas, saraus, festas,  flertes   De acordo co, Julio Castilho, em  Lisboa Antiga “ à fresca Almeirim afluia todo que tinha moradia e assentamento e todo o que desejava ter: o cavaleiro ocioso recém chegado da Índia, o taful que buscava mulher nos estrados do Paço, todos os estalajadeiros, “mariposas do palácio”namorados dos encantos de Portugal.” [2]
.  Sim, mas vamos voltar à chegada e aos regimentos:  E o senhor? Veio com que instrução
- Nenhuma, mas eu sabia que o Thomé de Sousa me daria um bom cargo quando aqui chegasse, e foi efetivamente o que aconteceu, fui nomeado almoxarife.
Sim Sr. Garcia, mas o que dizia o Regimento de Thomé de Sousa a respeito da fundação da cidade?
- Muita coisa, não tenho condição de dizer-te tudo que estava naquele regimento. Mais uma coisa sei, o Rei determinava que Thomé de Sousa se apossasse da fortificação que fora do donatário Coutinho em Vila Velha, também conhecida como Vila do Pereira e ali ficasse até que encontrasse um local de melhor conformidade com a os interesses da coroa em relação à fundação e defesa da cidade a ser estabelecida, que seria a cabeça de todas as demais capitanias.[3]  
-E O Coutinho, o que aconteceu com ele?
O Coutinho foi devorado pelos Tupinambás em Itaparica, ele esteve sempre em guerra com os indígenas, a quem odiava, Quando em 1547 foi morto pelos indígenas, Dom João VI comprou a capitania de volta à viúva. Na verdade eu não o conhecia, sei destas informações por ouvir dizer, de certo mesmo só sei o que estava no regimento, que deveríamos nos apossar das fortificação existente e procurar um novo local para estabelecer a sede principal do governo.
Sr. Garcia, me diga por que foi escolhida a Bahia, e não outra capitania?  Por que não São Vicente? Que era prospera, ou ainda Recife?
- Posso lhe garantir que não sei, entretanto, logo no início do Regimento  podíamos ver:

Eu, ElRei, faço saber a vós, Tomé de Sousa, fidalgo de minha casa, que vendo eu quanto serviço de Deus e meu é conservar e enobreceras Capitanias e povoações das terras do Brasil e dar ordem e maneira com que melhor e mais seguramente se possam ir povoando, para exalçamento da nossa Santa Fé e proveito de meus Reinos e Senhorios, e dos naturais deles, ordenei ora de mandar nas ditas terras fazer uma fortaleza e povoação grande e forte, em um lugar conveniente, para daí se dar favor e ajuda às outras povoações e se ministrar justiça e prover nas cousas que cumprirem a meu serviço e aos negócios de minha Fazenda e a bem das partes; e por ser informado que a Bahia de todos os Santos é o lugar mais conveniente da costa do Brasil para se poder fazer a dita povoação e assento, assim pela disposição do porto e rios que nela entram, como pela bondade, abastança e saúde da terra, e por outros respeitos, hei por meu serviço que na dita Bahia se faça a dita povoação e assento, e para isso vá uma armada com gente, artilharia, armas e munições e todo o mais que for necessário. E pela muita confiança que tenho em vós, que em caso de tal qualidade e de tanta importância me sabereis servir com aquela fidelidade e diligência, que se para isso requer, hei por bem de vos enviar por Governador às ditas terras do Brasil, no qual cargo e assim no fazer da dita fortaleza tereis a maneira seguinte, da qual fortaleza e
terra da Bahia vós haveis de ser Capitão:

1 – Ireis por Capitão-mor da dita armada e fareis vosso caminho direitamente à dita Bahia de todos os Santos, e na dita viagem tereis a maneira que levais por outro Regimento.
2 – Tanto que chegardes à dita Bahia, tomareis posse da cerca que nela está, que fez Francisco Pereira Coutinho, a qual sou informado que está povoada de meus vassalos e que é favorecida de alguns gentios da terra e está de maneira que pacificamente, sem resistência, podereis desembarcar e aposentar-vos nela com a gente que convosco vai;
sendo caso que a não acheis assim e que está povoada de gente da terra, trabalhareis po-la tomar o mais a vosso salvo e sem perigo da gente que puder ser; fazendo guerra a quem quer que vos resistir, e o tomardes posse da dita cerca será em chegando ou depois, em qualquer tempo que vos parecer mais meu serviço.
3 – Tanto que estiverdes na posse da dita cerca, mandareis reparar o que nela está feito e fazer outra cerca junto dela, de valos e madeira ou taipal, como melhor parecer, em que a gente possa estar agasalhada e segura, e como assim estiver agasalhado, dareis ordem como vos provejais de mantimenos da terra, mandando-os plantar, assim pela
gente que levais como pela da terra, e por qualquer outra maneira por que se melhor puderem haver, e, porém, se vos parecer que será mais meu serviço desembarcardes no lugar onde se houver de fazer a fortaleza, fá-lo-eis assim.
4 – Ao tempo que chegardes à dita Bahia, fareis saber, por todas as vias que puderdes, aos Capitães das Capitanias das ditas costas do Brasil, de vossa chegada, e eu lhes tenho escrito que tanto que souberem vos enviem toda ajuda que puderem de gente e
mantimentos e as mais cousas que na terra tiverem; das que vos podem ser necessárias, e que notifiquem a todas as pessoas que estiverem nas ditas Capitanias e tiverem terra na dita Bahia de todos os Santos, que as vão povoar e aproveitar nas primeiras embarcações que o forem para a dita Bahia, com a declaração de que não indo nas ditas primeiras embarcações perderão o direito que nelas tiverem e se darão a outras pessoas que as aproveitem, e que da dita notificação façam autos e vo-los enviem.
5 – Eu sou informado que a gente que possui a dita terra da Bahia é.uma pequena parte da linhagem dos Tupinambás, e que poderá haver deles nela, de cinco até seis mil homens de peleja, os quais ocupam ao longo da costa, para a parte do Norte., até Totuapara, que são seis léguas, e pelo sertão até entrada do Peraçuu, que serão cinco
léguas, e que tem dentro da dita Bahia a Ilha de Taparica e outras três mais pequenas, povoadas da dita nação, (...)[4] (grifo nosso)

- Tatuapara?

-Sim, Tatuapara já se sabia existir Don Esmeralda, qual o espanto? Cansei, este Regimento é enorme, e ele é que era mesmo a nossa Carta Administrativa, tudo que se teria de fazer nestas plagas estava ali, o Rei Dom João III foi muito cuidadoso e especificou bem qual seria o trabalho do Thomé de Sousa, os seus poderes e deveres.

OH seu Garcia não vá embora agora não, quero saber mais.

- Vou sim, está ficando tarde, continua chovendo e tenho de ir para o  Tatuapara, estamos organizando um  ataque aos índios que estão invadindo algumas fazendas na  região, e não podemos deixar isto acontecer,  temos que mostrar quem é que manda, portanto  tenho de ir, porque todos estão me esperando, afinal, sou um líder, o maior fornecedor de braços desta terra, sem mim nada acontece.

 E dizendo isto desapareceu.

Fiquei ali algum tempo pensando naquela figura tão prepotente, e esta prepotência me fez lembrar alguns políticos atuais, que parecem ter o Rei na barriga, Sarney, Collor de Melo, Lula da Silva, e tantos outros; todavia não só os políticos são assim, e recordo-me  dos senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal, deuses na terra, cada um querendo aparecer mais de que outro. Louvo o saber de muitos deles, mas odeio a prepotência de todos,  

Até o próximo encontro.







[1] FLEIUSS, Max. História Administrativa do Brasil, 2ª ed. Melhoramentos, São Paulo, 1925
[2] Ver o site da Câmara Municipal de Almeirim. Distrito de Santarém, que dista uns 100 Km de Lisboa.
[3] FLEIUSS, Mx. ob cite pg 14-15
[4] Regimento que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548,
Lisboa, AHU, códice 112, fls. 1-9. ( Arquivo Histórico do Ultramar)


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