terça-feira, 15 de maio de 2018

- Noticia da divisão - Garcia D´Ávila XIII


Rio Jacuípe - Ba
Eu não acreditava no que via! O que vou fazer? A casa cheia de gente e ele ali, circulando no meio do povo, se batendo em um, empurrando outro, gritando com  alguns, até mesmo mandando embora as pessoas. Atônita  via a cena toda, logico que sabia  que ninguém o via,  nem sentia qualquer das suas agressões, mas, ainda assim, ficava preocupada: E se tivesse alguém ali que tivesse a mesma capacidade que eu, esta de ver almas do outro mundo, aliás, com o Sr. Garcia era do outro mundo literalmente.
Empurrando gente e se batendo em todos ele chega cerca de mim:
-Que diabos de tanta gente é esta nesta casa hoje?
-São meus amigos Sr. Garcia, estou comemorando o meu nascimento.
-Atreve-te a fazer uma festa nas minhas terras e não me pedes autorização, ou melhor, nem convidou-me !
-Sr. Garcia não tenho tempo agora para estar discutindo com o senhor, são meus amigos e familiares e quero que o senhor os respeite, por favor, melhor: vá embora porque não tenho como vos dar qualquer atenção.
-Mera o que está acontecendo? Você está lívida. Tá se sentindo bem? Pergunta-me a minha irmã.
- Tá tudo bem sim! Estou apenas preocupada que tudo corra bem, veio muito gente e sabes bem que sempre acho que a comida e a bebida não vão var, mas qualquer coisa mando alguém comprar mais bebida e dou um jeito de fazer mais alguma coisa rápida, tenho camarão já tratado na frezzer e tem macarrão, faço uma massa com molho de camarão.
-Claro que vai dar, mas não me parece que seja isto, estás pálida e parece que andas a falar sozinha.
Kkkkkkk, eu falando sozinha. O riso era puro nervoso, porque realmente estava a falar com o Sr. Garcia, o meu querido e indiscreto visitante invisível.
De repente, no meio deste papo com a minha irmã, olho para o outro lado da sala e vejo o Sr Garcia quase batendo em um amigo meu, um negro. Saio correndo e chego a tempo de segurar o braço do Sr Garcia no ar. O meu gesto não passou desapercebido e todos estavam a olhar na minha direção, eu  com a mão no ar tentando segurar algo que ninguém via.
- O que há com você Esmeralda, tá doida? O que você viu?
- Tive a impressão que o relógio da parede ia cair em sua cabeça, respondi meio sem graça ao Mario.
- Mulher! O relógio está tão longe de mim, precisaria  sair dali voando para me alcançar.
-Me desculpe, mas tive mesmo esta impressão, acho que lhe assustei.
O desgraçado do Garcia D´Àvila olhava para mim e fazia muitos gestos e gritava querendo saber como um negro estava ali na minha casa circulando daquela maneira, como se tivesse alma, fosse realmente gente. Como eu poderia naquele momento dizer ao Sr. Garcia que o meu amigo era livre, que não havia, ao menos, aparentemente, escravidão, que ela havia acabado em quase todo o mundo, inclusive na África portuguesa.
-Bote ele para fora daqui, falava o Sr. Garcia aos berros no meu ouvido, onde já se viu uma coisa desta, você consegue transgredir todas as normas e recomendações.
-Sr. Garcia, por favor, vá embora, volte outra hora, não estás a ver que não posso vos dar qualquer atenção?
- Pois, vim disposto a conversar consigo a respeito dos primeiros dias da fundação de Salvador, mas parece que isto não é mais importante, mas não vou sair daqui não, estas terras são minhas, estas pessoas que aqui estão são invasores, e o que vou fazer é chamar meus homens e botar todos para fora daqui.
-Sr D Ávila vou vos fazer uma proposta, o Sr. fica aqui ao pé de mim e vai falando, mas eu não posso parar e ficar dando atenção só a si.
- Não, não e não. Vou botar todos para fora, quem não sair por bem sai na força.
Tinha que arrumar um fato para contar a ele a fim de que  se aborrecesse e fosse  embora, mas o que poderia eu fazer? Lembrar de que fato que ele não gostaria que fosse lembrado?  Fiquei monitorando o Sr. da Torre e pensando num fato que realmente chamasse tanto a atenção dele, que ele tivesse que tomar uma atitude longe dali de casa, mas teria que ser uma coisa bem relevante.
- Sr. Garcia o senhor sabe o que está acontecendo em Salvador? O Governador que fora nomeado para substituir Mem de Sá foi aprisionado e morto por hungenotes a caminho do Brasil.[1]
- O que me dizes?  Como sabes disto?
Como sei ou como soube não vem ao caso, mas a sua presença em Salvador é mais de que necessária, e ao invés do senhor estar lá para ajudar no que for preciso, está aqui perturbando  a minha festa.
O Sr. Garcia não era nenhum idiota, e percebeu perfeitamente qual a minha intenção, ao invés de ir embora deu uma grande  gargalhada e disse-me:  O gaja, estas a pensar que sou parvo! Então se uma coisa desta tivesse acontecido eu já não saberia? O governador já teria mandado algum emissário a Tatuapara.
Pensei comigo mesma: esta não colou mesmo, até porque, realmente, não haveria como  o próprio governo geral saber disto, afinal as coisas estavam acontecendo, ou acabaram de acontecer para eles, que só ficariam sabendo tempos depois, quando uma nova frota chegasse ao  Brasil.  Esqueci completamente  da época, quanto pior, como ele sempre se colocava em 1591, era capaz de ele me chamar de doidivanas mesmo e até me dar uma coça, ele era bem capaz disto, mas, para minha surpresa, apesar dele não cair na estória, caiu no ano, o que já foi um alivio.
- Senhor Garcia, o senhor não esta achando estranho que o novo governador geral esteja demorando de chegar. O Mem de Sá já pediu há muito um substituto, e pelo que sei o Rei nomeou (1570) o Sr.  Luis Fernando de Vasconcelos, que saiu de Lisboa com “sete ou oito navios, trazendo consigo  o padre Ignacio e Azevedo e mais sessenta e tantos jesuítas”[2]   
- Quando digo-te que és uma bruxa! Como podes saber disto? O Mem de Sá está lá, estamos  em 1571 e não há qualquer notícia  de nada. Sabemos da nomeação e da saída da frota em dezembro do ano passado, estamos aguardando.
- Ah Sr. Garcia, vais aguardar bem, porque eles foram mesmo aprisionados pelos hungenotes[3], nesta altura, já viraram comida de peixe.
- Como ousas falar assim?
- Porra! Vi que o plano não ia funcionar, a raiva dele estava, como sempre, virando para meu lado, eu tinha de agir rápido pois não ia ficar nada engraçado eu andar correndo na casa fugindo do miserável, com todas aquelas pessoas a me chamar de louca, pois ninguém entenderia nada. Decidi então que ia ao banheiro, iria na parte superior da casa e, com certeza, ele me seguiria, lá tentaria ouvir ele falar alguma estória que ele disse que viera para contar e  também, pedir, implorar até, para que ele fosse embora, e foi o que fiz. Subindo as escadas, ouvia, perfeitamente, as botas do Sr. da Torre fazendo barulho na madeira, cheguei no quarto e ouvi ele falar:


O Beijo - Roberto Abeleira
- Por que nunca me trouxestes aqui? Por que fico sempre no andar debaixo?
Ora Senhor D´Ávila o senhor entra aqui e vai a qualquer lugar sem me pedir qualquer licença, por que eu iria me preocupar em traze-lo aqui?
-Bem bonito este aposento, quem é o pintor deste quadro, não conheço.
-AH senhor Garcia este quadro foi pintado por um grande amigo, Roberto Abeleira?
-´E um pintor espanhol?
-Raízes espanholas, filho de espanhóis radicados na Bahia?
-Onde ele mora? Nunca ouvi falar dele.
-Não se preocupe senhor Garcia, vamos conversar a respeito da fundação de Salvador. Não era disto que o senhor queria falar?
- Não, não quero mais. Quero que me digas como sabes da morte do sucessor de Mem de Sá?
-Já vos disse que através dos meus livros.
- Bom se sabes tanto, diga-me lá; Se o Luís de Vasconcelos morreu, quem virá suceder o Mem de Sá, ele não está nada bem.
Quem virá é o Luiz de Brito e Almeida, e vai chegar em 1572.
- O Mem de Sá vai continuar aqui como governador? Ele não vai suportar. Está muito mais preocupado em tomar conta das suas posses e deixar os seus herdeiros bem, ele está rico, tem um Engenho mais bonito da Bahia,  que fica no Recôncavo, passou a ser conhecido como  “Sergipe do Conde”, dizem que era o maior do Brasil com 250 pessoas de serviço, além deste possuía um outro em Ilhéus, muitas cabeças de gado no Rio Joanes.[4]
- É isto mesmo que o senhor ouviu. E tenho mais uma novidade que o senhor não vai gostar.  Vamos ter, a partir do próximo ano, 1572 dois governos gerais.
- Estás doida, jamais o rei faria isto.
- Vai fazer sim.  Um  governo do Norte e um Governo do Sul  este com sede no Rio de Janeiro 
- Digo mais, o que terá sede no Rio de Janeiro vai ter como governador o Antonio de Salema?
-Antonio de que?  Nunca ouvi falar deste senhor
_ Pois é, mas será ele que virá e vai ficar sediado no Rio de Janeiro, enquanto o Luís de Brito ficara aqui na Bahia responsável pelo Governo do Norte, que abrangerá a Bahia e as capitanias além de Pernambuco.
- O Rei não fará isto
Vai fazer sim Sr. Garcia, e no preâmbulo da Carta Régia de 17 de dezembro 1572, Dom Sebastião, justifica que esta divisão é necessária porque as terras da Costa do Brasil são tão grandes e tão distantes umas das outras, e já tendo muitas povoações, não poderiam ser governadas por um único governador.
-Diabos! Se o Rei fizer isto retira-nos muito poder, introduz outros governantes, aumenta as despesas, será que não pensou nisto?
Disse para mim mesma: acertei na mosca, ele tá ficando irritado e vai se picar e me deixar em paz, mas, ainda assim, arrisquei:-Sr Garcia, o Rei tem razão, como é que o Mem de Sá, ou qualquer outro que o venha substituir, pode comandar  uma terra deste tamanho? É quase impossível, O Sr. bem sabe que a capitania de São Vicente[5] está prosperando, sabes o Sr. que Bras Cubas está sertão adentro procurando ouro, já tendo algum sucesso, a de Pernambuco  também prospera; O Rio de Janeiró está se organizando após  a expulsão dos franceses. A cada dia é mais necessária a presença de mais e mais pessoas para povoar estas novas terras e povoações,  precisa-se de gente para adentrar aos sertões à procura e ouro, portanto, nada mais correto de que  haver esta divisão para que a coroa possa controlar melhor as suas terras, cobrar os seus impostos, descobrir riquezas, procurar e achar o ouro que tanto quer.
- Não, não gosto disto, isto retira de nós, que fundamos esta cidade, e que temos todo direito de explorar e descobrir o ouro que almejamos,  o direito de livremente fazê-lo. Não são estes almofadinhas[6] do reino que virão para cá tomar o que é nosso.
-kkkkkkkkk, não pude deixar de rir. O que deixou o senhor Garcia furioso, e ele partiu para cima de mim. Preparei-me para outra pera, mas ele parece que lembrou da merda que fizera anteriormente e parou bem junto a mim e disse-me: Ai de si se nada disto for verdade! Aí de si! E com esta ameaça desceu as escadas batendo a bota fazendo um barulho infernal.
Aff! sentei na cama e me recompus, pensei: O que o Sr. Garcia faria se eu dissesse a ele que o Luís de Brito
[...] iria distinguir-se no exercício do cargo, dentre outras coisas, dedicar esforços em atacar  e submeter os índios das terras do Rio Real, localizadas ao norte da baía e em fundar nessa região a Vila de Santa Luzia. Porque o abastado proprietário Garcia de Ávila, que possuía vastas extensões de terras na região, não conseguisse pelos seus próprios meios levar a cabo tal iniciativa, decidiu Luís de Brito ocupar aquela parte do Brasil muito rica em madeira de tinta[...][7]
Apesar do calafrio, me recompus e voltei à minha festa, felizmente as pessoas não notaram a minha breve ausência, que para mim, tinha sido uma eternidade.



[1] FLEIUSS, Max,  História Administrativa do Brasil,  2ª. Ed.  SP, Melhoramentos, 1922,  pp28
[2] Idem, pg 38.
[3] Hungenotes: nome dado aos protestantes franceses que seguiam o calvinismo, secs. XVI e XVII
[4] RICUPERO, Rodrigo, “Governo Geral e a formação da elite colonial baiana no século XVI”  in Modos de Governar, Ideias e Práticas Políticas no Império Português Séculos XVI à XIX, BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Vera Lúcia Amaral,  SP, Alameda, 2005, p.123
[5] São Vicente  atual São Paulo.
[6] O Sr. Antonio Salema e Luís de Brito, ambos prestaram serviços a Coroa Portuguesa, o primeiro era Conselheiro na  Santa Casa de Misericórdia, o segundo como Desembargador  na Casa de Suplicação, bem como na capitania de Pernambuco( Ver. Felipe Nunes de Carvalho -  Do  Descobrimento  à União Ibérica  in O Império Luso Brasileiro 1500-1620) in Nova História da Expansão Portuguesa, Vol VI   Coord. Harold Johson e Maria Beatriz Nizza da Silva pg. 166-169.
[7] Idem, p 168

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