Rio Jacuípe - Ba |
Empurrando gente e se batendo em
todos ele chega cerca de mim:
-Que diabos de tanta gente é esta
nesta casa hoje?
-São meus amigos Sr. Garcia,
estou comemorando o meu nascimento.
-Atreve-te a fazer uma festa nas
minhas terras e não me pedes autorização, ou melhor, nem convidou-me !
-Sr. Garcia não tenho tempo
agora para estar discutindo com o senhor, são meus amigos e familiares e quero
que o senhor os respeite, por favor, melhor: vá embora porque não tenho como
vos dar qualquer atenção.
-Mera o que está acontecendo?
Você está lívida. Tá se sentindo bem? Pergunta-me a minha irmã.
- Tá tudo bem sim! Estou apenas
preocupada que tudo corra bem, veio muito gente e sabes bem que sempre acho que
a comida e a bebida não vão var, mas qualquer coisa mando alguém comprar mais bebida
e dou um jeito de fazer mais alguma coisa rápida, tenho camarão já tratado na
frezzer e tem macarrão, faço uma massa com molho de camarão.
-Claro que vai dar, mas não me
parece que seja isto, estás pálida e parece que andas a falar sozinha.
Kkkkkkk, eu falando sozinha. O
riso era puro nervoso, porque realmente estava a falar com o Sr. Garcia, o meu
querido e indiscreto visitante invisível.
De repente, no meio deste papo
com a minha irmã, olho para o outro lado da sala e vejo o Sr Garcia quase
batendo em um amigo meu, um negro. Saio correndo e chego a tempo de segurar o
braço do Sr Garcia no ar. O meu gesto não passou desapercebido e todos estavam
a olhar na minha direção, eu com a mão
no ar tentando segurar algo que ninguém via.
- O que há com você Esmeralda, tá
doida? O que você viu?
- Tive a impressão que o relógio
da parede ia cair em sua cabeça, respondi meio sem graça ao Mario.
- Mulher! O relógio está tão
longe de mim, precisaria sair dali
voando para me alcançar.
-Me desculpe, mas tive mesmo esta
impressão, acho que lhe assustei.
O desgraçado do Garcia D´Àvila
olhava para mim e fazia muitos gestos e gritava querendo saber como um negro
estava ali na minha casa circulando daquela maneira, como se tivesse alma,
fosse realmente gente. Como eu poderia naquele momento dizer ao Sr. Garcia que
o meu amigo era livre, que não havia, ao menos, aparentemente, escravidão, que
ela havia acabado em quase todo o mundo, inclusive na África portuguesa.
-Bote ele para fora daqui, falava
o Sr. Garcia aos berros no meu ouvido, onde já se viu uma coisa desta, você
consegue transgredir todas as normas e recomendações.
-Sr. Garcia, por favor, vá
embora, volte outra hora, não estás a ver que não posso vos dar qualquer
atenção?
- Pois, vim disposto a conversar consigo
a respeito dos primeiros dias da fundação de Salvador, mas parece que isto não
é mais importante, mas não vou sair daqui não, estas terras são minhas, estas
pessoas que aqui estão são invasores, e o que vou fazer é chamar meus homens e
botar todos para fora daqui.
-Sr D Ávila vou vos fazer uma
proposta, o Sr. fica aqui ao pé de mim e vai falando, mas eu não posso parar e
ficar dando atenção só a si.
- Não, não e não. Vou botar todos
para fora, quem não sair por bem sai na força.
Tinha que arrumar um fato para
contar a ele a fim de que se aborrecesse
e fosse embora, mas o que poderia eu
fazer? Lembrar de que fato que ele não gostaria que fosse lembrado? Fiquei monitorando o Sr. da Torre e pensando
num fato que realmente chamasse tanto a atenção dele, que ele tivesse que tomar
uma atitude longe dali de casa, mas teria que ser uma coisa bem relevante.
- Sr. Garcia o senhor sabe o que
está acontecendo em Salvador? O Governador que fora nomeado para substituir Mem
de Sá foi aprisionado e morto por hungenotes a caminho do Brasil.[1]
- O que me dizes? Como sabes disto?
Como sei ou como soube não vem ao
caso, mas a sua presença em Salvador é mais de que necessária, e ao invés do
senhor estar lá para ajudar no que for preciso, está aqui perturbando a minha festa.
O Sr. Garcia não era nenhum
idiota, e percebeu perfeitamente qual a minha intenção, ao invés de ir embora
deu uma grande gargalhada e
disse-me: O gaja, estas a pensar que sou
parvo! Então se uma coisa desta tivesse acontecido eu já não saberia? O
governador já teria mandado algum emissário a Tatuapara.
Pensei comigo mesma: esta não
colou mesmo, até porque, realmente, não haveria como o próprio governo geral saber disto, afinal
as coisas estavam acontecendo, ou acabaram de acontecer para eles, que só ficariam
sabendo tempos depois, quando uma nova frota chegasse ao Brasil.
Esqueci completamente da época,
quanto pior, como ele sempre se colocava em 1591, era capaz de ele me chamar de
doidivanas mesmo e até me dar uma coça, ele era bem capaz disto, mas, para
minha surpresa, apesar dele não cair na estória, caiu no ano, o que já foi um
alivio.
- Senhor Garcia, o senhor não
esta achando estranho que o novo governador geral esteja demorando de chegar. O
Mem de Sá já pediu há muito um substituto, e pelo que sei o Rei nomeou (1570) o
Sr. Luis Fernando de Vasconcelos, que
saiu de Lisboa com “sete ou oito navios, trazendo consigo o padre Ignacio e Azevedo e mais sessenta e
tantos jesuítas”[2]
- Quando digo-te que és uma
bruxa! Como podes saber disto? O Mem de Sá está lá, estamos em 1571 e não há qualquer notícia de nada. Sabemos da nomeação e da saída da
frota em dezembro do ano passado, estamos aguardando.
- Ah Sr. Garcia, vais aguardar
bem, porque eles foram mesmo aprisionados pelos hungenotes[3], nesta altura, já viraram comida de peixe.
- Como ousas falar assim?
- Porra! Vi que o plano não ia
funcionar, a raiva dele estava, como sempre, virando para meu lado, eu tinha de
agir rápido pois não ia ficar nada engraçado eu andar correndo na casa fugindo
do miserável, com todas aquelas pessoas a me chamar de louca, pois ninguém
entenderia nada. Decidi então que ia ao banheiro, iria na parte superior da
casa e, com certeza, ele me seguiria, lá tentaria ouvir ele falar alguma estória que ele disse que viera para contar e também, pedir, implorar até, para que ele
fosse embora, e foi o que fiz. Subindo as escadas, ouvia, perfeitamente, as
botas do Sr. da Torre fazendo barulho na madeira, cheguei no quarto e ouvi ele
falar:
O Beijo - Roberto Abeleira |
Ora Senhor D´Ávila o senhor entra
aqui e vai a qualquer lugar sem me pedir qualquer licença, por que eu iria me
preocupar em traze-lo aqui?
-Bem bonito este aposento, quem é
o pintor deste quadro, não conheço.
-AH senhor Garcia este quadro foi
pintado por um grande amigo, Roberto Abeleira?
-´E um pintor espanhol?
-Raízes espanholas, filho de
espanhóis radicados na Bahia?
-Onde ele mora? Nunca ouvi falar
dele.
-Não se preocupe senhor Garcia, vamos conversar a
respeito da fundação de Salvador. Não era disto que o senhor queria falar?
- Não, não quero mais. Quero que
me digas como sabes da morte do sucessor de Mem de Sá?
-Já vos disse que através dos
meus livros.
- Bom se sabes tanto, diga-me lá;
Se o Luís de Vasconcelos morreu, quem virá suceder o Mem de Sá, ele não está
nada bem.
Quem virá é o Luiz de Brito e
Almeida, e vai chegar em 1572.
- O Mem de Sá vai continuar aqui
como governador? Ele não vai suportar. Está muito mais preocupado em tomar
conta das suas posses e deixar os seus herdeiros bem, ele está rico, tem um
Engenho mais bonito da Bahia, que fica
no Recôncavo, passou a ser conhecido como
“Sergipe do Conde”, dizem que era o maior do Brasil com 250 pessoas de
serviço, além deste possuía um outro em Ilhéus, muitas cabeças de gado no Rio
Joanes.[4]
- É isto mesmo que o senhor
ouviu. E tenho mais uma novidade que o senhor não vai gostar. Vamos ter, a partir do próximo ano, 1572 dois
governos gerais.
- Estás doida, jamais o rei faria
isto.
- Vai fazer sim. Um
governo do Norte e um Governo do Sul
este com sede no Rio de Janeiro
- Digo mais, o que terá sede no
Rio de Janeiro vai ter como governador o Antonio de Salema?
-Antonio de que? Nunca ouvi falar deste senhor
_ Pois é, mas será ele que virá e
vai ficar sediado no Rio de Janeiro, enquanto o Luís de Brito ficara aqui na
Bahia responsável pelo Governo do Norte, que abrangerá a Bahia e as capitanias
além de Pernambuco.
- O Rei não fará isto
Vai fazer sim Sr. Garcia, e no
preâmbulo da Carta Régia de 17 de dezembro 1572, Dom Sebastião, justifica que
esta divisão é necessária porque as terras da Costa do Brasil são tão grandes
e tão distantes umas das outras, e já tendo muitas povoações, não poderiam ser
governadas por um único governador.
-Diabos! Se o Rei fizer isto
retira-nos muito poder, introduz outros governantes, aumenta as despesas, será
que não pensou nisto?
Disse para mim mesma: acertei na
mosca, ele tá ficando irritado e vai se picar e me deixar em paz, mas, ainda
assim, arrisquei:-Sr Garcia, o Rei tem razão, como é que o Mem de Sá, ou
qualquer outro que o venha substituir, pode comandar uma terra deste tamanho? É quase impossível,
O Sr. bem sabe que a capitania de São Vicente[5]
está prosperando, sabes o Sr. que Bras Cubas está sertão adentro procurando ouro,
já tendo algum sucesso, a de Pernambuco
também prospera; O Rio de Janeiró está se organizando após a expulsão dos franceses. A cada dia é mais
necessária a presença de mais e mais pessoas para povoar estas novas terras e
povoações, precisa-se de gente para
adentrar aos sertões à procura e ouro, portanto, nada mais correto de que haver esta divisão para que a coroa possa
controlar melhor as suas terras, cobrar os seus impostos, descobrir riquezas,
procurar e achar o ouro que tanto quer.
- Não, não gosto disto, isto
retira de nós, que fundamos esta cidade, e que temos todo direito de explorar e
descobrir o ouro que almejamos, o direito de livremente fazê-lo. Não são estes almofadinhas[6]
do reino que virão para cá tomar o que é nosso.
-kkkkkkkkk, não pude deixar de
rir. O que deixou o senhor Garcia furioso, e ele partiu para cima de mim.
Preparei-me para outra pera, mas ele parece que lembrou da merda que fizera
anteriormente e parou bem junto a mim e disse-me: Ai de si se nada disto for
verdade! Aí de si! E com esta ameaça desceu as escadas batendo a bota fazendo
um barulho infernal.
Aff! sentei na cama e me recompus,
pensei: O que o Sr. Garcia faria se eu dissesse a ele que o Luís de Brito
[...] iria
distinguir-se no exercício do cargo, dentre outras coisas, dedicar esforços em atacar e submeter os índios das terras do Rio Real,
localizadas ao norte da baía e em fundar nessa região a Vila de Santa Luzia.
Porque o abastado proprietário Garcia de Ávila, que possuía vastas extensões de
terras na região, não conseguisse pelos seus próprios meios levar a cabo tal
iniciativa, decidiu Luís de Brito ocupar aquela parte do Brasil muito rica em
madeira de tinta[...][7]
Apesar do calafrio, me recompus e voltei à minha festa,
felizmente as pessoas não notaram a minha breve ausência, que para mim, tinha
sido uma eternidade.
[2]
Idem, pg 38.
[3] Hungenotes:
nome dado aos protestantes franceses que seguiam o calvinismo, secs. XVI e XVII
[4] RICUPERO,
Rodrigo, “Governo Geral e a formação da elite colonial baiana no século XVI” in Modos
de Governar, Ideias e Práticas Políticas no Império Português Séculos XVI à XIX,
BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Vera Lúcia Amaral, SP, Alameda, 2005, p.123
[6]
O Sr. Antonio Salema e Luís de Brito, ambos prestaram serviços a Coroa
Portuguesa, o primeiro era Conselheiro na Santa Casa de Misericórdia, o segundo como
Desembargador na Casa de Suplicação, bem
como na capitania de Pernambuco( Ver. Felipe Nunes de Carvalho - Do Descobrimento
à União Ibérica in O Império Luso
Brasileiro 1500-1620) in Nova História da
Expansão Portuguesa, Vol VI Coord.
Harold Johson e Maria Beatriz Nizza da Silva pg. 166-169.
[7]
Idem, p 168
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