quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A primeira sessão de análise

Não gosto de falar sobre mim, às vezes, nem comigo mesma, mas foi inevitável. Todos os meus amigos, os mais íntimos claros, e até alguns que pensavam que eram amigos, me mandavam procurar uma ajuda. Eu não entendia bem porque e ficava me perguntando. Será que sou tão difícil assim? Será que tenho tantos problemas que não consigo entender nada? Será que os meus problemas se refletem nas minhas relações com as pessoas até ao ponto de ter que fazer algum tipo de terapia? Não, não achava isto, e também não achava que uma pessoa estranha pudesse me ajudar e o faria apenas ouvindo-me falar.
Comecei a pensar que, para ser uma intelectual, uma pessoa normal, culta, “in”, era necessário que eu fosse analisada, afinal, algumas pessoas que eu considerava normais, completamente intelectualizadas, cultas, quase todas elas estavam fazendo a tal da terapia. Eu achava engraçado tudo aquilo, e mais ainda, porque eu olhava para eles e via que eram pessoas estáveis na vida, grandes profissionais, pessoas, ao meu entender, resolvidas e desproblematizadas. Ficava imaginando o que estas pessoas falariam com um analista.
Falar de que, me perguntava? Então eu vou ficar em frente a um desconhecido e vou começar a despejar problemas meus, coisas íntimas até, e ele/ela vai resolver tudo. Claro que não, não iria fazer isto, jamais, dizia para mim mesma, não vou fazer nunquinha.
Nunca, palavra que não deve ser dita, quiçá pensada, quando a gente menos espera o nunca está na sua tampa de cara e você tem de fazer aquilo que “nunca” seria feito espontaneamente. Talvez fosse exatamente este o problema, o radicalismo. Nunca, Jamais, de maneira alguma, expressões negativas que já atrapalhavam exatamente por este significado tão para negativo. Você, quando repete para si estas palavras, começa a ficar numa prisão, porque, como você as pronunciou e tem testemunhas disto, começa a viver se policiando para não realizar as ações que lhe fizeram pronunciá-las. Não é a toa que elas não são verbos, verbos são ações e elas são complementos destes. Acho que elas são advérbios de tempo; tempo, por sinal não marcado, um tempo completamente abstrato.
Bom, o certo é que um dia qualquer, com muitos problemas, problemas que com certeza ninguém resolveria, decido que vou procurar um profissional para me ouvir, para me fazer endividar mais. Lógico, eles cobram muito caro para perderem o seu precioso tempo ouvindo alguém que não tem coragem de falar, de se mostrar como realmente é para os seus mais próximos. Aliás, isto é o que eu penso, porque com tantas pessoas, amigos ou não, sugerindo uma terapia, sinal de que não consegui me esconder tanto.
Marquei a sessão e lá vou eu.  Um edifício lindo, uma sala linda, uma recepção com outras pessoas e uma atendente que, sem qualquer preparo, me diz o valor da sessão. Digo-lhe que já sei, até porque tinha ligado antes para marcar, quando fui informado da extorsão a que ia ser submetida. Extorsão sim, porque é caríssimo este tipo de terapia :você paga quase a metade de um salário mínimo por uma sessão de terapia, que dura uma hora. É extorsivo mesmo, mas fui eu quem procurou isto não posso me queixar. Pago já muito mal humorada o valor, pergunto se não tenho recibo. A mulher fica possessa quando falo em recibo, e me diz, em alto e bom som, que, se eu quiser recibo, o valor deve ser acrescido de mais alguns reais.
- Como é minha senhora? Já vi que não vou começar bem isto, então eu venho aqui para me livrar de problemas e já vou, antes mesmo de entrar na sala do individuo que tem pretensões de me curar de alguma coisa, ou melhor, de me fazer encarar as minhas culpas e aceitá-las ou então me conscientizar que elas não existem, com mais uma culpa, esta a de pagar mais se quiser ter um recibo, que além de agredir a minha honestidade fiscal e cidadã, não figura como passível de abatimento para o imposto de renda. A gentil atendente, secretaria mal educada, não sei mais o que, me diz aqui é assim e pronto, que se não gosto devo falar com o doutor. Ah a propósito, como é mesmo o nome dele?  E me vejo me questionando, então eu vou entrar numa sala, vou falar minhas coisas com uma pessoa que sequer sei o nome. To ficando maluca; acho que vou desistir.
Há outras pessoas na sala de espera, que tem tons de lilás. Por que será que escolheram lilás? O lilás é bem claro mesmo, o teto de gesso branco e contrasta como lilás bem clarinho das paredes, a sala é clean, deve ser a cor da psicanálise. Da paz é que não é, pois quem, como eu, está entrando num consultório, é isto que esta zorra é, para falar de si a um desconhecido, certamente iria procurar mais um conflito consigo próprio. Agora iria discutir como pode ser tão imbecil a ponto de ir “desabafar” com outro que está ali agindo profissionalmente, aliás, nem sei mesmo se agindo ou desagindo.
Bom o certo e que estava ali naquela sala de espera com mais três pessoas e comecei a me inquietar: eu tenho hora marcada, e se tenho hora marcada o que estas três pessoas estão a fazer aqui, se só faltam, apenas, dez minutos para eu entrar na sala e pagando a hora mais cara  que já paguei para um profissional ficar na minha frente, ou quem sabe atrás de mim, me ouvindo falar, ou então, calar? Quem sabe qual seria a minha reação depois que atravessasse aquela  porta, que para mim já estava sendo amaldiçoada. Olhando o relógio e como nada acontecia, levantei-me e fui falar com a secretaria/recepcionista/grosseira: Estas pessoas também vão ser atendidas pelo Dr. “Como é mesmo o nome”? Macedo senhora. A senhora aguarde que na sua hora será chamada, sem qualquer atraso.  Olhei bem para a cara daquela fdp com vontade de a manda tomar naquele lugar. Será que ela trata assim todos os pacientes do Macedo. Ele tem de saber qual o tratamento que se dá aos seus pacientes, não é possível que uma pessoa que trata da cabeça dos outros possa deixar uma pessoa deste tipo atender ao público, que, aliás, ali era completamente privado, identificado pelas suas dores, receios, fobias. Não, este profissional já não era bom assim como diziam.
-Não lhe perguntei isto! A senhora poderia me dizer se estas pessoas vão ou não ser atendidas antes de mim, porque, se forem, eu vou embora.
-Senhora, sente-se e aguarde a sua hora, não haverá atraso, já falei.
Voltei e sentei-me na cadeira, não conseguia tirar os olhos nem do relógio, e nem das três pessoas que estavam ali.  Uma senhora com cara de psicopata, uma mulher loura com cara de depressiva, e uma mulher mais jovem que tinha muitos tics, mas era bem bonita e, tirando os tics que lhe faziam, às vezes, mexer-se na cadeira, ficava olhando para o teto fixamente.
Vim parar numa sala com um bando de malucos, será que o povo me mandou aqui porque acha mesmo que sou uma. Fiquei procurando lembrar que atitudes minhas levariam as pessoas a crerem que eu era doida. Não achei nada: dar palavrões, querer sexo, olhar para alguém com muito desejo, gastar muito dinheiro sem ter. Ah possivelmente este era o meu maior sintoma de desequilíbrio, gastar sem ter.  Mas por que eu gastava sem ter, me perguntei? Eu gastava porque tinha muitas pessoas que precisavam de mim, e, para não decepcioná-las me sacrifiquei muito e entrei no maior balaio de gato do mundo. Sim, este era o meu problema maior, e a não ser que o profissional me ajudasse a tirar numa loteria, ele em nada iria me ajudar, porque dívidas são pagas com dinheiro e não com palavras ou mudanças de atitude.
Quatro horas em ponto sai um rapaz da sala. O rapaz tinha cara de alucinado. Os olhos parados, fixos em um ponto que não identifiquei qual, mas parece-me que era na senhora que estava sentada à minha esquerda. Quando ele saiu todas as três mulheres levantaram, e eu deduzi avó, mãe e irmã ou namorada. Coitado, não vai melhorar em nada, com três pessoas desse tipo em sua cola ele não sairá de qualquer crise, de qualquer problema, de nada.
Fiquei ali sentada esperando o meu nome ser chamado, nada, silêncio total, esperei uns três minutos, até que a “gentil” secretária saiu do seu balcão e chegando junto a mim disse-me que podia entrar.
Entrei pensando o que iria encontrar ali, e pensando porque meu nome não tinha sido chamado pela secretaria, logo entendi, entretanto, que era para que as pessoas não soubessem o nome das outras que estavam ali. Boa tarde, uma mão se estendia para mim. Olhei aquela figura de óculos que me estendia à mão, não reconheci ali nem um homem nem uma mulher, era um ser hibrido. Sentei-me na poltrona indicada e fiquei esperando.
O ser híbrido era grande, cabelos curtos, olhos azuis bem claros, branco, a voz não identificava o sexo. Pensei: ah Meu Deus! O que faço agora; como me dirijo a esta pessoa, que sentada à minha frente olhava-me como se quisesse tirar de mim, tudo o quanto eu procurava esconder? Senti-me encolhendo. E agora?  Acho que vou levantar e ir embora, não tenho nada a fazer aqui e não quero ser analisada porcaria nenhuma, ainda mais por alguém que não consegue se identificar para mim.
Uns dez minutos ali parada, com alguém no mesmo espaço, esperando não sei o que. Acho que devia falar alguma coisa, pensei eu, porque, caso contrário, a sessão silenciosa ficará mesmo cara e não vai me servir de nada.
-Não vai me perguntar nada?
-Não, estou esperando que você fale o que quiser, pode dizer qualquer coisa que queira; não se preocupe em concatenar pensamentos, idéias, nada, vá dizendo o que tem vontade.
-Mas eu não tenho vontade de dizer nada, muito menos coisas que não sejam concatenadas.
-Temos de começar de um começo, portanto, fale do que quiser.
O silêncio era total, eu não sabia como começar. Deveria eu dizer a minha profissão? Não, isto interessava em nada que àquele ser? Deveria dizer meu estado civil, a minha quantidade de filhos, de irmãos? O que fazia atualmente? Não, eu não sabia como começar, fiquei lá recostada na cadeira que me acolheu me afundando nela, querendo me esconder até daquela pessoa que, impassível, esperava que eu começasse a dizer algo.
Quer saber: vou levantar desta cadeira, dar tchau e não volto a fazer isto, quando, mais uma vez, a voz não identificável daquele ser pareceu uma trombeta.
- Amélia, eu sei que é difícil, esta é uma reação normal de muitos que aqui chegam, mas para que eu possa te ajudar preciso que você fale de si, de sua vida, seus amigos, suas estórias; através delas é que vou identificar os possíveis transtornos que podem estar te afetando, etc. etc.
-Mas não tem nada me afetando, eu vim aqui porque todos os meus amigos, e até inimigos, disseram que eu precisava fazer uma terapia, e de tanto ouvir isto resolvi marcar.
-Ah então você tem amigos que fazem análise
-Sim tenho.
Foram eles que me recomendaram.
-Claro que não, não iria para qualquer profissional que eles recomendassem: esta estória de alguém saber de mim pelos outros, porque tenho certeza que eles falariam de mim, apesar você achar que pode ser muita pretensão da minha parte, não ia me fazer nada bem.
-E estes seus amigos lhe disseram por que achavam que você precisava de uma terapia.
Disseram sim, mas eles são muito loucos e eu não quero falar disto.
-Bom, mas você tem de começar a falar algo, caso contrário realmente não vejo como te ajudar.
-trim, trim, trim,
Vi o híbrido levantar da cadeira e com a mesma impassividade: acabou a sua hora, estendeu a mão, dirigiu-se à porta, e eu saio com a sensação de que fui lesada.
A porta fechou-se e eu fiquei ali com cara de tacho, sem saber bem o que fazer. A secretaria grosseira me tira daquele torpor: Quando será a próxima sessão?
Olhei para ela e nem dei resposta, sai pela porta de vidro dizendo para mim mesma: não volto mais aqui e ainda vou dizer àqueles filhos da mãe que me mandaram para esta merda, que eles são uns loucos.

Se voltei,  ou não? Depois conto a vocês.        

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