Não gosto de falar sobre mim, às
vezes, nem comigo mesma, mas foi inevitável. Todos os meus amigos, os mais íntimos
claros, e até alguns que pensavam que eram amigos, me mandavam procurar uma
ajuda. Eu não entendia bem porque e ficava me perguntando. Será que sou tão difícil
assim? Será que tenho tantos problemas que não consigo entender nada? Será que
os meus problemas se refletem nas minhas relações com as pessoas até ao ponto de
ter que fazer algum tipo de terapia? Não, não achava isto, e também não achava
que uma pessoa estranha pudesse me ajudar e o faria apenas ouvindo-me falar.
Comecei a pensar que, para ser
uma intelectual, uma pessoa normal, culta, “in”, era necessário que eu fosse
analisada, afinal, algumas pessoas que eu considerava normais, completamente
intelectualizadas, cultas, quase todas elas estavam fazendo a tal da terapia.
Eu achava engraçado tudo aquilo, e mais ainda, porque eu olhava para eles e via
que eram pessoas estáveis na vida, grandes profissionais, pessoas, ao meu
entender, resolvidas e desproblematizadas. Ficava imaginando o que estas
pessoas falariam com um analista.
Falar de que, me perguntava?
Então eu vou ficar em frente a um desconhecido e vou começar a despejar
problemas meus, coisas íntimas até, e ele/ela vai resolver tudo. Claro que não,
não iria fazer isto, jamais, dizia para mim mesma, não vou fazer nunquinha.
Nunca, palavra que não deve ser
dita, quiçá pensada, quando a gente menos espera o nunca está na sua tampa de
cara e você tem de fazer aquilo que “nunca” seria feito espontaneamente. Talvez
fosse exatamente este o problema, o radicalismo. Nunca, Jamais, de maneira
alguma, expressões negativas que já atrapalhavam exatamente por este
significado tão para negativo. Você, quando repete para si estas palavras, começa
a ficar numa prisão, porque, como você as pronunciou e tem testemunhas disto,
começa a viver se policiando para não realizar as ações que lhe fizeram
pronunciá-las. Não é a toa que elas não são verbos, verbos são ações e elas são
complementos destes. Acho que elas são advérbios de tempo; tempo, por sinal não
marcado, um tempo completamente abstrato.
Bom, o certo é que um dia
qualquer, com muitos problemas, problemas que com certeza ninguém resolveria,
decido que vou procurar um profissional para me ouvir, para me fazer endividar
mais. Lógico, eles cobram muito caro para perderem o seu precioso tempo ouvindo
alguém que não tem coragem de falar, de se mostrar como realmente é para os
seus mais próximos. Aliás, isto é o que eu penso, porque com tantas pessoas,
amigos ou não, sugerindo uma terapia, sinal de que não consegui me esconder
tanto.
Marquei a sessão e lá vou
eu. Um edifício lindo, uma sala linda,
uma recepção com outras pessoas e uma atendente que, sem qualquer preparo, me
diz o valor da sessão. Digo-lhe que já sei, até porque tinha ligado antes para
marcar, quando fui informado da extorsão a que ia ser submetida. Extorsão sim,
porque é caríssimo este tipo de terapia :você paga quase a metade de um salário
mínimo por uma sessão de terapia, que dura uma hora. É extorsivo mesmo, mas fui
eu quem procurou isto não posso me queixar. Pago já muito mal humorada o valor,
pergunto se não tenho recibo. A mulher fica possessa quando falo em recibo, e
me diz, em alto e bom som, que, se eu quiser recibo, o valor deve ser acrescido
de mais alguns reais.
- Como é minha senhora? Já vi que
não vou começar bem isto, então eu venho aqui para me livrar de problemas e já vou,
antes mesmo de entrar na sala do individuo que tem pretensões de me curar de
alguma coisa, ou melhor, de me fazer encarar as minhas culpas e aceitá-las ou
então me conscientizar que elas não existem, com mais uma culpa, esta a de
pagar mais se quiser ter um recibo, que além de agredir a minha honestidade
fiscal e cidadã, não figura como passível de abatimento para o imposto de
renda. A gentil atendente, secretaria mal educada, não sei mais o que, me diz aqui
é assim e pronto, que se não gosto devo falar com o doutor. Ah a propósito,
como é mesmo o nome dele? E me vejo me
questionando, então eu vou entrar numa sala, vou falar minhas coisas com uma
pessoa que sequer sei o nome. To ficando maluca; acho que vou desistir.
Há outras pessoas na sala de
espera, que tem tons de lilás. Por que será que escolheram lilás? O lilás é bem
claro mesmo, o teto de gesso branco e contrasta como lilás bem clarinho das
paredes, a sala é clean, deve ser a cor da psicanálise. Da paz é que não é,
pois quem, como eu, está entrando num consultório, é isto que esta zorra é,
para falar de si a um desconhecido, certamente iria procurar mais um conflito
consigo próprio. Agora iria discutir como pode ser tão imbecil a ponto de ir
“desabafar” com outro que está ali agindo profissionalmente, aliás, nem sei
mesmo se agindo ou desagindo.
Bom o certo e que estava ali
naquela sala de espera com mais três pessoas e comecei a me inquietar: eu tenho
hora marcada, e se tenho hora marcada o que estas três pessoas estão a fazer
aqui, se só faltam, apenas, dez minutos para eu entrar na sala e pagando a hora
mais cara que já paguei para um
profissional ficar na minha frente, ou quem sabe atrás de mim, me ouvindo
falar, ou então, calar? Quem sabe qual seria a minha reação depois que
atravessasse aquela porta, que para mim
já estava sendo amaldiçoada. Olhando o relógio e como nada acontecia, levantei-me
e fui falar com a secretaria/recepcionista/grosseira: Estas pessoas também vão
ser atendidas pelo Dr. “Como é mesmo o nome”? Macedo senhora. A senhora aguarde
que na sua hora será chamada, sem qualquer atraso. Olhei bem para a cara daquela fdp com vontade
de a manda tomar naquele lugar. Será que ela trata assim todos os pacientes
do Macedo. Ele tem de saber qual o tratamento que se dá aos seus pacientes, não
é possível que uma pessoa que trata da cabeça dos outros possa deixar uma
pessoa deste tipo atender ao público, que, aliás, ali era completamente
privado, identificado pelas suas dores, receios, fobias. Não, este profissional
já não era bom assim como diziam.
-Não lhe perguntei isto! A
senhora poderia me dizer se estas pessoas vão ou não ser atendidas antes de mim,
porque, se forem, eu vou embora.
-Senhora, sente-se e aguarde a
sua hora, não haverá atraso, já falei.
Voltei e sentei-me na cadeira,
não conseguia tirar os olhos nem do relógio, e nem das três pessoas que estavam
ali. Uma senhora com cara de psicopata,
uma mulher loura com cara de depressiva, e uma mulher mais jovem que tinha muitos
tics, mas era bem bonita e, tirando os tics que lhe faziam, às vezes, mexer-se na
cadeira, ficava olhando para o teto fixamente.
Vim parar numa sala com um bando
de malucos, será que o povo me mandou aqui porque acha mesmo que sou uma.
Fiquei procurando lembrar que atitudes minhas levariam as pessoas a crerem que
eu era doida. Não achei nada: dar palavrões, querer sexo, olhar para alguém com
muito desejo, gastar muito dinheiro sem ter. Ah possivelmente este era o meu
maior sintoma de desequilíbrio, gastar sem ter.
Mas por que eu gastava sem ter, me perguntei? Eu gastava porque tinha
muitas pessoas que precisavam de mim, e, para não decepcioná-las me sacrifiquei
muito e entrei no maior balaio de gato do mundo. Sim, este era o meu problema
maior, e a não ser que o profissional me ajudasse a tirar numa loteria, ele em
nada iria me ajudar, porque dívidas são pagas com dinheiro e não com palavras ou
mudanças de atitude.
Quatro horas em ponto sai um
rapaz da sala. O rapaz tinha cara de alucinado. Os olhos parados, fixos em um
ponto que não identifiquei qual, mas parece-me que era na senhora que estava
sentada à minha esquerda. Quando ele saiu todas as três mulheres levantaram, e
eu deduzi avó, mãe e irmã ou namorada. Coitado, não vai melhorar em nada, com três
pessoas desse tipo em sua cola ele não sairá de qualquer crise, de qualquer
problema, de nada.
Fiquei ali sentada esperando o
meu nome ser chamado, nada, silêncio total, esperei uns três minutos, até que a
“gentil” secretária saiu do seu balcão e chegando junto a mim disse-me que
podia entrar.
Entrei pensando o que iria
encontrar ali, e pensando porque meu nome não tinha sido chamado pela secretaria,
logo entendi, entretanto, que era para que as pessoas não soubessem o nome das
outras que estavam ali. Boa tarde, uma mão se estendia para mim. Olhei aquela
figura de óculos que me estendia à mão, não reconheci ali nem um homem nem uma
mulher, era um ser hibrido. Sentei-me na poltrona indicada e fiquei esperando.
O ser híbrido era grande, cabelos
curtos, olhos azuis bem claros, branco, a voz não identificava o sexo. Pensei:
ah Meu Deus! O que faço agora; como me dirijo a esta pessoa, que sentada à
minha frente olhava-me como se quisesse tirar de mim, tudo o quanto eu
procurava esconder? Senti-me encolhendo. E agora? Acho que vou levantar e ir embora, não tenho
nada a fazer aqui e não quero ser analisada porcaria nenhuma, ainda mais por alguém
que não consegue se identificar para mim.
Uns dez minutos ali parada, com
alguém no mesmo espaço, esperando não sei o que. Acho que devia falar alguma
coisa, pensei eu, porque, caso contrário, a sessão silenciosa ficará mesmo cara
e não vai me servir de nada.
-Não vai me perguntar nada?
-Não, estou esperando que você fale
o que quiser, pode dizer qualquer coisa que queira; não se preocupe em
concatenar pensamentos, idéias, nada, vá dizendo o que tem vontade.
-Mas eu não tenho vontade de
dizer nada, muito menos coisas que não sejam concatenadas.
-Temos de começar de um começo, portanto,
fale do que quiser.
O silêncio era total, eu não
sabia como começar. Deveria eu dizer a minha profissão? Não, isto interessava
em nada que àquele ser? Deveria dizer meu estado civil, a minha quantidade de
filhos, de irmãos? O que fazia atualmente? Não, eu não sabia como começar,
fiquei lá recostada na cadeira que me acolheu me afundando nela, querendo me
esconder até daquela pessoa que, impassível, esperava que eu começasse a dizer algo.
Quer saber: vou levantar desta
cadeira, dar tchau e não volto a fazer isto, quando, mais uma vez, a voz não identificável
daquele ser pareceu uma trombeta.
- Amélia, eu sei que é difícil,
esta é uma reação normal de muitos que aqui chegam, mas para que eu possa te
ajudar preciso que você fale de si, de sua vida, seus amigos, suas estórias;
através delas é que vou identificar os possíveis transtornos que podem estar te
afetando, etc. etc.
-Mas não tem nada me afetando, eu
vim aqui porque todos os meus amigos, e até inimigos, disseram que eu precisava
fazer uma terapia, e de tanto ouvir isto resolvi marcar.
-Ah então você tem amigos que
fazem análise
-Sim tenho.
Foram eles que me recomendaram.
-Claro que não, não iria para
qualquer profissional que eles recomendassem: esta estória de alguém saber de
mim pelos outros, porque tenho certeza que eles falariam de mim, apesar você
achar que pode ser muita pretensão da minha parte, não ia me fazer nada bem.
-E estes seus amigos lhe disseram
por que achavam que você precisava de uma terapia.
Disseram sim, mas eles são muito
loucos e eu não quero falar disto.
-Bom, mas você tem de começar a
falar algo, caso contrário realmente não vejo como te ajudar.
-trim, trim, trim,
Vi o híbrido levantar da cadeira
e com a mesma impassividade: acabou a sua hora, estendeu a mão, dirigiu-se à
porta, e eu saio com a sensação de que fui lesada.
A porta fechou-se e eu fiquei ali
com cara de tacho, sem saber bem o que fazer. A secretaria grosseira me tira
daquele torpor: Quando será a próxima sessão?
Olhei para ela e nem dei
resposta, sai pela porta de vidro dizendo para mim mesma: não volto mais aqui e
ainda vou dizer àqueles filhos da mãe que me mandaram para esta merda, que eles
são uns loucos.
Se voltei, ou não? Depois conto a vocês.
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