sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Era assim

O dia começa cedo; as tarefas distribuídas,  limpeza da casa  para as mulheres e os serviços outros, olhem só, o da cozinha para os homens. Era assim: os meninos tinham de ajudar a moer a carne ou qualquer outra coisa na velha máquina de “moer”, que a gente dizia ser de “passar carne”. A máquina era atarrachada em um dos lados da mesa, sendo que sempre que isto ocorria, alguém tinha de ficar sentado do outro lado da mesa, para que com o movimento e a força aplicada de quem estava no moedor, desse o equilibrio necessário para ela não virar.  A máquina era pequenina, mas poderosa, machucou, muitas vezes, os dedos da criançada, que para acelar o processo  enfiavam as mãos para empurrar o que estava sendo moido e o resultado era unha roxa, ponta do dedo machucada, enfim, mas ninguém morreu  por este motivo. Era o nosso processador manual.
Outro serviço dos meninos era  bater a massa para a empanada, ou para pão, ou para qualquer outra coisa, se era para fazer massa, um dos meninos homens estava lá para ajudar na hora de sovar a massa, porque para a mistura só mesmo a matriarca, ela é quem tinha a manha da coisa, os meninos sómente para sovar, aprenderam no lombo e aplicaram na massa, que amacia bem com uma boa sova..
Fora da cozinha, nas demais dependências da casa, a parquetina vermelha comia no centro, quartos, cubículos assim chamados, tudo revirado para que a cera alcançasse todos os cantos, aliás, nestes dias de limpeza bruta, a casa era transferida para o meio da rua, como a casa tinha um espaço na frente, era ali que ficavam todos os moveis, cadeiras, e, até mesmo, camas.
 Após a cera, que deixava as mãos  dos aplicadores completamente  vermelhas, e não só as mãos, os joelhos também, o velho escovão entrava em cena para dar o brilho, ele não foi desbancado nem mesmo com a enceradeira, porque esta deixava circulos  embassados no chão, e a matriarca não gostava nada disto. Assim eram dois trabalhos, passar a enceradeira e depois colocaros mais novos nos panos felpudos para que eles com os traseiros tirassem aqueles circulos brilhosos deixados pela enceradeira. Desta maneira,o melhor mesmo era exercitar os braços com o velho escovão.
A árvore de natal já estava armada  em algum canto da casa, esperando somente que a limpeza acabasse para ser colocada no devido lugar, normalmente entre o sofá e a poltrona; único lugar livre na minúscula sala que ainda abrigava um móvel grande de quatro portas e uma mesa de seis lugares. Sinceramente, só um milagre da multiplicação dos espaços,explica tanta coisa dentro daquele míinimo sítio.
A árvore de natal tinha um particular, naõ era um pinheiro como de costume, o dinheiro não dava para comprar, então a estilosa matriarca arrumava  galhos secos de  alguma  árvore, e mandava que fossem colocados chumaços de algodão para dar idéia de neve. Como se isto fosse possível: num calor de 35 graus uma árvore de natal com neve, bom o certo é que algodão, cola e galho de árvore se transformavam numa original árvore de natal. Uma vez ela foi feita com pipocas coladas nos galhos. Muita imaginação.  Tudo era enfiado no caqueirão, fixado com a areia ou pedrinhas, e lá estava a árvore.
Na cozinha, a matriarca  gritava com os meninos: bata na massa, força na máquina de moer, e coisas deste tipo, enquanto chorava picando as cebolas  para o preparo do recheio da empanada, que, ainda era de bacalhau, pois na época  o peixe ainda era barato e pobre podia comer.
Feito o recheio da empanada, este era colocado para esfriar enquanto a massa ficava ali, adormecida, ela dizia que era para crescer. Agora já era outra massa aque  estava sendo feita, esta era a massa que ela dizia, “podre”, era para as empadas, que teriam recheio de carne moida. As forminhas eram forradas de massa  pelos meninos,  mas o recheoio era colocado por ela, que também fazia o tampão, tinha uma prática da zorra para fazer isto. O perú  aguardava na fila o seu momento de  ir para o forno, tinha sido temperado no dia anterior e tinha dormido na geladeira. O peru, pequeno ou grande, não podia faltar, talvez o patriarca tenha ganho em alguma cesta de natal, que na época era dada pelas empresas. Já lá se vai o tempo em que as empresas mimavam os seus funcionarios na época de natal.
 A confusão na sala estava formada! Estava faltando algo: as folhas de
pitanga, que tinham de ser espalhadas pela casa, não se sabe bem porque, mas  era uma tradição. Na casa dos avós maternos, além das folhas de pitanga,  também era colocada areia  fina no chão, até hoje não se encontra explicação :  a casa era lavada, encerada, e depois de tudo isto, se jogava areia. Um dia, quem sabe, vamos entender o motivo da areia. Teoricamente a explicação pode ser para que a sujeira que viesse no sapato de alguém ficasse ali na areia e não colasse no chão. Não é assim que se faz com sujeira de bicho dentro de casa, coloca-se  areia  num canto para ele fazer as necessidades? Deve ser  por aí.
Resolvido o problema  da pitanga, cujas folhas(galhos) eram, providencialmente, cedidas por uma vizinha, hora de forrar as camas, ( na do casal tinha de ser a colcha rosa de cetim, era do enxoval do casamento, uma relíquia), colocar panos nos móveis,  toalha na mesa, enfim, deixar tudo  comnpletamente limpo e belo.
O garrafão de vinho (cinco litros) ja ocupava o seu espaço junto da geladeira, era o único espaço onde ele poderia ficar sem que  ninguém o derrubasse: se isto acontecesse o patriarca, com certeza, daria uns bons tabefes no causador de tal desastre. Na geladeira já estavam as jarras de “Q suco” de vários sabores, e, quando o dinheiro dava,  algumas  garrafas de guaraná fratelli vita e gazoza de limão, que era a bebida preferida da matriarca.
O cheiro que vinha da cozinha era maravilhoso, o peru começava a dar sinais de “vida”, para nós é claro, porque  ele tava mortinho, e da pior maneira possivel , fora condenado à fogueira. Na prateleira de baixo  do forno,  uma rodada de empadas começavam a dourar, ficavam efetivamente lindas. A tonalidade que a tampa adquiria  era como se tivesse sido envernizada, efeito da pincelada do ovo  na massa.  Assada a primeira rodada, outra entrava no forno, costumava-se fazer, minimamente  50, porque não era somente a família (pais e filhos) que  fariam parte da ceia, muitos outros familiares viriam, bem como amigos.
O peru todo moreninho saia do forno, agora  eram as duas empandas que entravam  garbosas no forno, tinham crescido bastante, quanto  mais crescessem antes de serem colocadas no forno, sinal de que iam ficar bem fofinhas.
Bom o serviço braçal na cozinha estava quase terminado, mas outro tinha de começar, que era a propria limpeza da área, não antes de ser feita a salada, o arroz com passas, o bolo. Tudo pronto, e as aias da limpeza aguardando para por mãos a obra.
Oito horas da noite, estava tudo pronto, tudo arrumado, todos de banho tomado, roupas novas vestidas, e a matriarca, a  última se arrumar, ainda  dava os ultimos reparos na cozinha.
O patriarca, já mais para lá de que para cá, pois estava com os amigos tomando umas, chegava com o panetone e um queijo cuia na mão(a marca era Palmyra e não vai existir mais nunca nenhum melhor que ele), e mais um garrafão de vinho, que o fazia pender para um lado, em razão do desequilibrio do peso entre um braço e outro, o pêndulo que já vinha envergado, oscilava mais ainda.
A parentada começava a chegar, os mais velhos traziam presentes que eram colocados na árvore. Os da casa  ficavam curiosos para saber o que era de quem, mas ainda não era hora. Presentes só eram abertos depois da missa do galo, que todos deveriam assistir, de pequeno a grande.
Bom, acabada a missa, todos voltam para a casa e começava, efetivamente, o natal, com as suas comidas, suas bebidas, com a entrega dos presentes; estes eram efetivamente surpresas, a quantidade parece que crescia mesmo, pois enquanto a criançada estava na missa do galo,  papai noel passava por ali. É que a matriarca, antes mesmo de sair, e sem que  ninguém percebesse, colocava na árvore os presentes dos padrinhos e das madrinhas dos filhos, que lhe eram enviados com antecedência, também colocava os seus, um vestidinho para uma, um short para outro, uma camisola, uma seiva de alfazema, enfim, ela  tanto fazia, ela própria, os presentes, como, se sobrasse algum dinheiro, comprava  mimos, a exemplo  da seiva de alfazema que as filhas maiores adoravam.
Quando era possível, o patriarca  comprava  um tecido, sabonetes, perfumes baratos, chinelos, para que os filhos dessem à matriarca, isto quando o dinheiro tava bem curto mesmo, do contrário o presente era geral, ou seja, para todos da família: uma geladeira nova, um fogão novo, uma televisão, esta última, quando entrou na casa foi um verdadeiro alvoroço, pois na época só rico é que tinha televisão, bom, mais isto é outra   história.
No dia 25 a coisa mudava de figura, as sobras  eram empacotadas e todos iam, sacrifico total, de ônibus, isto quando moravam em Salvador, para a casa dos avós, onde o escaldado de peru estava sendo preparado e todos ficavam felizes esperando o momento divino de, mais uma vez, juntos, agradecer a Deus mais um Natal comendo o saboroso escaldado de Dona Nieta.

Era assim! Feliz Natal

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