Chegou a casa visivelmente mal
humorada. Não conseguia entender por que se tinha permitido passar por uma cena
daquelas; então pagara quase a metade de um salário mínimo para falar duas
palavras com um híbrido e acabar o tempo sem que nada de, minimamente,
esclarecedor, ou com alguma possibilidade de sê-lo, acontecesse.
Vinha no carro e, de vez em
quando, como para se acreditar que aquilo ocorrera mesmo, se olhava pelo
retrovisor e via a sua cara de tacho e de besta com toda aquela situação,
perdera uma hora do seu dia, perdera dinheiro, ficara mal humorada, perdera
inclusive o horário de chegar a casa, um tempo precioso para corrigir algumas
provas, estas sim importantes, porque sua obrigação, que fora atrasada por
aquele acontecimento que não se repetiria.
Decidira isto dirigindo o carro e,
olhando o mar à sua esquerda, pensava: quem tem um marzão deste precisa de
porra de analista para que? Ela sempre pensara assim, se os problemas a atormentavam
em demasia ela largava tudo e ia caminhar na praia, se não estivesse em local
de praia procurava um rio, como fez muitas vezes em Portugal, quando ia sentar
à frente do Tejo e deixava que os pensamentos fluíssem, que as lágrimas
rolassem até se dar por confortada e mais leve.
Quando abriu a porta de casa,
porém, o seu mau humor retornou com força. Viu-se mesmo diante da inusitada
situação: cheia de provas para corrigir, planos de aula por fazer, processos a
sentenciar e perde tempo com aquela sessão inútil, com uma pessoa hibrida, que,
pode até ser muito boa, mas que para ela não passou de mais um para lhe tirar
um dinheirinho.
Foi direito para o escritório, o
computador ficara ligado, a tela azul lhe demonstrava isto. Que droga, o bicho
deve estar quentinho, tomara que não tenha nenhum problema. Ao lado do
computador, em cima da mesa, jaziam processos e provas, um dos processos, o
primeiro, aberto em uma página qualquer.
Pensa: Vou tomar banho, colocar
uma roupa confortável, fazer algo para comer, e só vou levantar quando acabar todos
estes processos. É isto que vou fazer, até porque ocupando a minha mente
esqueço este dia horroroso que vai ficar para a minha história como um marco da
minha imbecilidade. Nunca fora pela cabeça dos outros em nada, errado ou certo,
mais errado de que certo, decidiu sempre só que fazer da, e na, sua vida, mesmo
quando estava sob a dependência dos pais fora assim, fazia com que eles pensassem
que ela tinha acordado com eles, mas se pudesse e tivesse a chance, fazia como
bem entendesse atitude que lhe foi facilitada, muitas vezes, por viver afastada
dos pais durante muito tempo, enquanto estudava em colégio interno.
Lembrando desta faceta da sua
vida, o internato, falou consigo própria: por que não comecei a conversa com o
hibrido exatamente neste ponto? Será que alguns problemas de rejeição que tenho
é proveniente disto? Rejeição? Palavra forte. Quer saber, este pensamento não
vai me levar a nada e eu tenho de me concentrar para trabalhar, amanhã tenho de
devolver todos estes processos decididos e se ficar pensando em coisas que não vão
me levar a nada, não os resolvo e prejudico uma porção de gente, que está
esperando pelas decisões, alguns, atribuindo a estas a própria subsistência, o
futuro, os sonhos e aos alunos, que, também, de uma maneira ou de outra,
dependem de saber o resultado das suas provas.
Será que é o peso da
responsabilidade sobre a vida dos outros que está me deixando assim:
carrancunda, intransigente, melancólica, às vezes muito triste. Idiota, se você sabe de todos os seus
“senões” para que foi para esta maldita sessão? Então se você reconhece que
está mesmo com problemas pessoais e de relacionamento por força, exatamente,
destes problemas, para que diabo foi procurar alguém que, possivelmente, em um
determinado momento, iria identificar estes problemas como se você nunca se
tivesse observado a si mesma, e como se não soubesse as causas de todos eles.
Diabos! Não conseguia desviar o
pensamento daquela sessão. Para começar a trabalhar ia tomar um banho, fazer
uma comida rápida, e começar a decidir, só ia levantar quando tudo estivesse
acabado.
Tirou a roupa e foi para o
banheiro, embaixo do chuveiro deixando a água escorrer pelo corpo, ela olhava o
espaço que era tão seu, tão privado, tão ela. Ela tinha escolhido tudo, o
revestimento, a madeira do armário, o blindex, o vaso, as toalhas, enfim,
aquele era um espaço todo seu, embora ela dividisse com o companheiro, mas bem
que ela podia colocar na porta o seu nome que ninguém ia estranhar, exatamente
pela personalização do banheiro. Do Box,
deixando a água escorrer pelo corpo, ela olhava tudo; tudo muito escolhido,
muitas idas e vindas às casas de materiais de construção, muitas revistas de
decoração, enfim, aquilo ali fora criado por ela e ela gostava do resultado e
da segurança que aquele banheiro lhe dava. A orquídea em cima da bancada da pia
parecia feliz, as suas flores lindas e lilases estavam vivas e felizes. Lilás,
lá vem a merda da parede da sala de recepção do analista. Caracas! Será que não vou me livrar disto? Terminou o banho mais rápido por força desta
intromissão daquela sala no seu momento tão privado no seu banheiro. Enxugou-se,
enrolou-se na toalha e foi para a cozinha, tirou os peitos de frango da
geladeira, colocou água no fogo, ia fazer macarrão e peito de frango grelhado,
e já estava quase na hora do Marcos chegar.
Marcos gostava muito de macarrão
ao alho e óleo com manjericão, e ela, quando não tinha muito tempo para fazer
nada, sempre escolhia o menu mais fácil e rápido. Ia deixar tudo no ponto,
quando ele chegasse, e enquanto tomava banho ela grelharia o frango e faria o
macarrão.
Saiu da cozinha voltou ao quarto
passou creme no corpo, salpicou perfume pelas partes e em lugares estratégicos
do corpo, sabia que ia ser cheirada e não custava nada agradar o outro, vestiu
uma roupa folgada, mas transparente e sensual, e foi sentar-se no escritório
para os seus afazeres.
A primeira decisão já estava
quase pronta, ela tinha parado na análise das provas, mas estava mesmo no
final, assim este processo foi muito rápido, não passou nem dez minutos para
acabar a sentença. Fechou o primeiro e
partiu para o segundo, que não era complicada, apenas horas extras e reflexos,
tirou de letra, como o fez com mais uns cinco, todos com pouco período de
relação de trabalho e com muito poucos pedidos.
As 20h30min ouve o motor do carro
de Marcos, ela conseguia identificar o som do carro e parecia saber todos os
movimentos desde a hora que ele saia do carro para abrir o portão da garagem
até chegar dentro de casa. Ela sorriu: realmente, conviver tanto tempo com
alguém faz isto, você sabe da habitualidade, das manias, do cotidiano da pessoa,
isto enquanto ela está em casa, pois quando sai pelo portão da casa pela manhã,
ali acabam as habitualidades e começam outras habitualidades das quais ela não
participa, e, aliás, nem poderia, e nem deveria saber da existência delas.
Ouve Marcos dizer “vá para lá
Brick”, não pule em cima de mim. Levanta-se e vai até a sala, a tempo de ver
Marcos quase correndo do cachorro que insiste em pular nele. Dá-lhe um beijo
fraternal; depois de tanto tempo de convivência a efusividade do encontro só dá
mesmo para um beijo fraternal. Eles não eram irmãos ainda, mas o relacionamento
parecia caminhar a passos largos para isto.
Talvez este também fosse mais um problema para discutir com o analista.
Porra, que analista nenhum, se eu já identifico o problema, eu posso muito bem
procurar a solução.
Fala com Marcos e enquanto este
vai tomar um banho, ela vai para a cozinha preparar o jantar. O banho de Marcos
é demorado, ele tem todo um protocolo: fica embaixo da água quente por muito
tempo, fala sozinho, gesticula, é até engraçado vê-lo tomando banho, embora ela
faça isto muito poucas vezes, já fez mais, até já dividiu o Box e muitas coisas
outras ali, mas agora é melhor que cada um tenha a sua privacidade enquanto faz
coisas que gosta, e coisas tão íntimas, quanto é tomar um belo e bom banho.
Quando Marcos sai do banheiro a
mesa já está pronta. Há uma garrafa de vinho aberta, as taças, água, os dois
pratos. As panelas não saíram do fogão, que ficava próximo à mesa da cozinha, só
eles dois para o jantar e ela não tinha tanto tempo de ficar botando comidas em
pratinhos para ficar bonitinho. Marcos já
vem de pijamas, senta-se serve o vinho e começam a comer. Não falam muito,
apenas o que era necessário, algum comentário a respeito do vinho, o que ele
adorava, pois se julga um exímio conhecedor. Ela sempre sorri, ele até conhece
um pouco, mas nada que faça dele um enólogo. Eles têm sempre em casa vinhos: os
preferidos portugueses (alentejanos), africanos do sul, argentinos, chilenos,
espanhóis. Comem, depois retiram os
pratos da mesa, no que ele a ajuda, tomam o resto do vinho na sala da televisão.
A rotina igual, daqui a pouco
Marcos estará roncando, mas se ela desligar a televisão ele vai balançar o pé e
dizer que esta vendo o programa. Ela já sabe e deixa lá, volta para o escritório,
logo após tirar os pratos da mesa e colocar na pia, pega a ultima taça de vinho
e volta para o escritório, precisa fazer mais alguns processos e corrigir, ao
menos, umas vinte provas. É o que faz. Chega à sala de televisão dá um beijo na
testa de Marcos e vai se fechar no escritório.
No escritório lembra que não falou
com Marcos da sua visita ao analista. Também para que não é? Ele ia dizer que ela tava maluca mesmo, que não
via motivo algum para ela procurar um analista.
Hoje, especialmente hoje, ela
concorda com Marcos.
Amanhã será outro dia, vamos ver
como acordo em relação a esta história do divã.
Boa noite.
Já tinha lido ,ri e amei. Aliás como tudo que você escreve eu curto! !!!!
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