Estive ontem no comércio, tive
que ir ao banco do Brasil para resolver problemas financeiros, mas foi muito
bom ter esta oportunidade de ir até o comércio em um dia que não fosse o da
festa do Bonfim, porque é, talvez, o único dia em que vou ao centro da cidade
baixa a cada ano.
Fui sem carro, não há vagas
disponíveis, portanto tive a chance de andar a pé e revisitar alguns lugares,
embora tudo esteja muito decadente. Fiquei surpresa porque o bondinho do plano
inclinado está funcionando, fizeram uma reforma e pintaram as cabines de azul,
penso que quiseram fazê-los originais, mas preferia, sinceramente, a cor
anterior. Adoro subir ou descer nestes bondinhos, a vista é impagável; todo
mundo, ao menos uma vez na vida, deveria descer ou subir aqueles bondinhos. O
pedaço da Baía de Todos os Santos que se vê é extraordinário. Vislumbrar, ao
longe, a Igreja do Nosso Senhor do Bonfim é maravilhosos, ver a Ilha do outro
lado, os navios ao largo, uma parte do porto, o velho casario desgastado pelo
tempo é que é deprimente, mas não apaga a beleza da paisagem que se descortina.
Não entendo como tem gente que viaja de costas.
Antes de chegar até o bondinho
andei pelas acabadas ruas do comércio, ruas onde passei uma boa parte da minha vida.
Trabalhei 12 anos em um escritório de advocacia que ficava na Rua Portugal. Não
nego que não tenho grandes saudades do escritório, mas tenho uma saudade enorme
de tudo que vivi nesses doze anos.
Lembro da penúria em que vivia
por falta exclusiva de clientes, mas nada que me fizesse desistir de ser
advogada, de pensar que, com o meu trabalho, poderiam ajudar muitos, aliás, o
que fiz. Trabalhávamos eu, meu companheiro, meu irmão e, depois de algum tempo,
Lauro, além de dar guarida a outras pessoas, colegas de profissão e também
amigas da minha irmã menor que procuravam trabalho. Imaginem só: fudidos e
ainda dividindo o que não tínhamos, além de, em muitos casos, substituirmos o
Estado na prestação de assistência judiciária, mas o fato é que, com tudo isto,
sobrevivemos.
O escritório foi arrumado, nos
parâmetros da época, bem arrumado. Logo nos dois primeiros meses de
funcionamento, um amigo nos levou uma causa de um fazendeiro, nada que não
conseguíssemos resolver facilmente, e, para felicidade nossa, minha e do meu
companheiro, e por influência deste último, tudo foi resolvido rápido e a
contento dentro da Junta Comercial. O homem ficou para lá de satisfeito, e nos
pagou muito bem, inacreditavelmente bem, tanto que pagamos os móveis do
escritório e ainda compramos um “frigobar”, além de ficarmos com algum dinheiro
na mão para os três ou quatro próximos aluguéis e, acreditem, ainda demos uma
participação àquele que levou o cliente.
O fato é que aos trancos e
barrancos fomos em frente. Fazíamos cobranças e, por força do trabalho extra
escritório de meu companheiro, começamos a trabalhar com direito marítimo. Lógico
que as causas eram poucas, mas o fato é que, quando surgiam sempre sobrava um
dinheirinho bom.
Recordo-me que a hora do almoço
era quase uma festa, porque tínhamos de dividir o que não tínhamos com uma
porção de gente. Imaginem só, sem termos dinheiro comer e ainda dividir a
comida com meu irmão, a amiga da minha irmã, Lauro e mais quem estivesse no
escritório. Nossa comida resumia-se,
quase em todos os dias, a sanduiches de pernil ou de salame, este último era o
preferido, não porque fosse melhor do que o do pernil, porque este é imbatível,
mas porque ele realizava o milagre da multiplicação. Fico até hoje procurando
saber como aquela espelunca do comércio sobreviveu por tanto tempo. Acreditem
se quiserem: comprávamos apenas um sanduiche na espelunca, um pão francês
recheado de salame cortado mais ou menos fininho, o salame ia saindo por todos
os lados. Cosme, meu irmão, era o comprador oficial deste sanduiche. Na volta,
e no caminho, ele comprava uns seis pães e aí o milagre acontecia, o salame de
um só sanduiche da espelunca fazia o preenchimento dos outros pães, que eram
divididos com todos, dependendo da quantidade de pessoas que estivessem no escritório
podíamos comer um pão inteiro, um pão e meio, e até dois. Achávamos uma
maravilha.
O de pernil (Rei do Pernil) era
mais caro, mais gostoso, porém menor, mesmo assim, comprávamos dois e
dividíamos o maravilhoso recheio para mais quatro pães, sempre tínhamos uma média
de seis a oito pães para o almoço. Quando as coisas melhoravam e aparecia um
dinheirinho, íamos todos felizes contentes ao restaurante. Acreditem se
quiserem, melhoramos tanto que, em alguns natais, o pernil ia inteiro para casa,
saliento que o meu companheiro somente poucas vezes participava destes almoços,
porque ele tinha outro trabalho e podia comer em restaurantes com clientes.
Após o almoço, regado a refresco
ou a refrigerante, jogávamos as cartas, era muito engraçado, todos esperando à
hora de “bater as cartas”, tínhamos até um slogan para o horário. “joga as
cartas, joga as cartas, joga as cartas”. Morríamos de rir, pois, às vezes, quase
no final de uma partida, alguém batia na porta, e tínhamos que esconder as
cartas correndo. Era mesmo uma farra.
Rua das Princezas |
O tempo foi passando, Lauro saiu
do escritório, Iraci foi para a Itália, só ficamos nós três: eu, Carlos e Cosme
vivíamos daquilo ali, muitas vezes, eu e Carlos tomávamos café da manha
(lanche) no Lisboa, que era de espanhóis, outras vezes, quando ele ganhava algum dinheiro, ou entrava
algum no escritório, comíamos no Colón, no Torremolinos, e até
mesmo noLe Bistroquê, onde comia
“filet a Poivre”, inesquecível.
Fui algumas sextas feiras ao Juarez, o
melhor filet da Bahia, mas as coisas não
eram fáceis e eu resolvi estudar para fazer concursos, e foi o que fiz, no
entanto, continuo, ao menos no dia da lavagem do Bonfim, a ir comer o pernil,
não tem nenhum melhor na Bahia, quiçá no mundo, e foi que fiz para finalizar
esta minha nostálgica ida ao Comércio, que ficou ainda mais nostálgica quando
soube da passagem do querido Manolo, de quem nunca vou esquecer, até porque,
gentilmente, para não me chamar de gorda, sempre que estive lá depois de Juíza
e até mesmo depois que passei algum tempo em Portugal, ele me dizia: “a doutora
está bonitona, forte”. Que você esteja bem Manolo, e que os seus filhos
continuem a nos deliciar com o melhor pernil da Bahia. (pão francês e pernil de
porco assado com gotas de limão). Recomendo. Ah! Não se esqueçam de tomar o refresco: qualquer
um deles.
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