sábado, 12 de julho de 2014

EKUNYA, EKASAKÓ;ENRURELIWA OTTULI - Justiça pelo Avesso

“Onira: «enenèle eyo va», orimòna yèttaka”:Aquele que diz «Essa formiga aí» É porque a viu andar.
Esse é um provérbio macua, catalogado pelo padre Alexandre Valente de Matos(1982)[1]
O que este provérbio quer dizer? Quer dizer o mesmo que “onde há fumo a fogo”, ou seja,  quando há algum comentário, alguma crítica, alguma conversa sobre determinado ato de alguém, é provável que  ele tenha acontecido mesmo, e este  provérbio era usado  pelos régulos  para  culpar alguém de determinado  ato. Segundo mesmo autor,  se uma mulher fosse se queixar do marido ao régulo, alegando que ele a maltratou,  e, após ouvido o marido, o régulo não estando confiante nas desculpas daquele, aplicava tal provérbio,e argumentava que ninguém viria  fazer uma queixa gratuitamente[2]
A utilização dos provérbios  nos julgamentos  era uma constante na resolução dos milandos[3] cafreais[4].  Não só na resolução de milandos eles eram usados, também o eram pelos  anciãos quando reunidos para decidirem sobre algum  acontecimento.
Milandos, de acordo com o art. 107 do Regulamento das Circunscrições, eram “ questões cafreaes todas aquellas que, respeitantes a família e propriedade, segundo os usos e costumes tradicionais dos indígenas, se resolvem entre elles mediante restituições, pagamentos e indemnizações, de caráter inteiramente civil“. [5] 
Como se disse, os provérbios não tinham somente aplicação  nos julgamentos das questões cafreais, eles eram de uso comum  e serviam , como está bem demonstrado em  Ualalapi[6]  para a  educação dos mais jovens. É através dos provérbios que os mais velhos  ensinavam  aos mais novos como  respeitar as leis,  como lidar com os mais velhos, com o saber se sair de situações, quando se deve ficar calado, enfim, era através deles que os jovens eram socializados.É o instrumento da oralidade, da tradição oral.
Há um diálogo entre um jovem e seu avó, em que o  ancião, sabiamente, querendo proteger o neto e para que ele não  comentasse coisas que poderiam  complicar a sua vida, estando ele a falar  de uma morte de um jovem guerreiro de nome Mputa que o Imperador Gungunhana  determinara, mantém com este o seguinte diálogo:
”-Mputa esqueceu que a trovoada produz a chuva, filho. Mulher de Rei é sagrada.
- Porquê, avô? O que ela tem entre as coxas outra mulher não terá?
-Não fales assim, filho, não fales assim, pois há anos atrás, o teu pai ainda não tinha nascido, houve um homem que ousou lançar impropérios jamais ouvidos ao rei, e passou o resto da vida carregando os testículos sem fim. Não fales assim. Deixa o Mputa. Deixa-o! Ele esqueceu que quem agita a lagoa levanta o lodo.
- mas cacarejar não é pôr ovo, avô?
- Não fales mais, calemo-nos. Se Mputa tem razão sairá ileso, pois o macaco não se deixa vencer pela árvore.” (KHOSA; 1987:48-49)
No mesmo livro há  outra passagem em que a personagem  Malule, conversando com alguém sobre a morte de Damboia, irmã do imperador, uma mulher má, que mandara matar muitos homens e morrera de uma menstruação sem fim diz:
“- Crapulosa?
- Não ligues. São Palavras do vulgo. Não tem fundamento. Damboia teve a  vida mais sã  que eu conheci.
- Para onde vai o fumo, vai fogo, Malule.
- Nunca hás-de encontrar água raspando uma pedra. Deixa-me falar. Eu conheço a verdade. Vivi na Corte...
- Mas  qual é o homem que não tem ranho no nariz Malule?
- Se Damboia teve erros não foram de grande monta. Ela meteu-se com homens como qualquer mulher. E nisso não nos devemos  meter. O tecto da casa conhece o dono.
- Mas o caracol deixa baba por onde passa.”  o diálogo continua, e é ainda o jovem que  diz: “mesmo que caminhes numa baixa, a corcunda há de ver-se,”  (KHOSA:1987:66)
O diálogo recheado de provérbios demonstra como uma pessoa mais velha tenta ensinar a uma mais jovem, que ela não deve  divulgar coisas dos outros, que nem sempre o que se fala é verdade, sendo, entretanto, com  outros provérbios, contestado pelo mais jovem, que tenta lhe dizer que não é possível que com tantos comentários não exista um pouco de verdade na estória.
Todavia há um provérbio interessantíssimo, e este se aplicava  em relação à justiça colonial distribuída pelos colonizadores, e que demonstra todo o desprestígio que ela gozava  perante os africanos, que  ao terem alguma questão resolvida pelos administradores coloniais, através das leis portuguesas,  assim se posicionavam:  “Ekunya, ekasakó; enrureliwa  ottuli”  -O milando (resolvido por brancos na administração) é como o casaco, que se despe pela parte das costas”(Idem.367).
De acordo com o padre catalogador  dos provérbios,  quando alguém tinha a sorte ou o azar de  levar um milando até a administração, “premunia-se de argumentos que diminuíssem ao máximo, ou mesmo, anulassem toda a sua responsabilidade, alegando falsas razões ou mesmo imputando-as para outrem. Se alguém era absolvido, portanto, do seu milando, utilizando   o desconhecimento dos costumes indígenas pelos administradores, ou utilizando alguma artimanha e conseguia, com isto,  uma absolvição ou atenuação dos efeitos da condenação,  então a pessoa dizia exatamente  que “ milando da administração e como casaco que se despe  por trás”.  Numa  perfeita alusão de que nada ali era sério, que a justiça dos brancos não era  a correta e que eles não a temiam.
E  perguntaríamos: se  era assim, se eles mesmo não acreditavam na justiça  dos brancos, por que iam procurá-la? Responderíamos, exatamente por isto, porque as condenações eram atenuadas, lembrando que na justiça cafreal  as coisas funcionavam diferentemente.  As partes tinham o pavor reverencial aos régulos,  uma decisão de algum milando  através do régulo  era tomada em julgamento aberto,  em que as partes e as testemunhas eram ouvidas por todos, que  chegavam mesmo a se pronunciar, não que influíssem no julgamento dos régulos, mas  faziam a sua parte. Por outro lado, aos olhos do régulo nada podia ser escondido, dado que todos se conheciam e todos sabiam de tudo que se passava, inclusive o próprio régulo, alie-se a isto que em alguns julgamentos havia um preparativo, que envolvia comida, bebida, tudo isto patrocinado pelas partes envolvidas.
Em relação aos administradores, acostumados com leis que deveriam ser observadas na sua textualidade,  completamente   ignorantes dos costumes indígenas, julgavam de acordo com a sua própria consciência, ou seja, os seus próprios costumes e as leis portuguesas. Assim, um milando que, de acordo com os régulos, poderia  ser solucionado  até com a “morte” do ofensor, com indenização à vitima ou aos seus familiares,  não recebia o mesmo tratamento  quando era solucionado pelos brancos, que não admitiam a pena de morte, que condenavam ao degredo, à prisão com trabalhos  forçados,  enfim,  bem diversas as penalizações.
Por outro lado, a própria administração portuguesa contribuía para  este descrédito, primeiro a demora do julgamento; segundo, a lei  deixava ao  arbítrio do “indígena”  recorrer  à justiça dos colonizadores, ou  procurar a justiça cafreal, só não  sendo possível  isto  quando se tratava de crimes, ou seja a justiça criminal  era da competência da justiça  portuguesa.  O regulamento das circunscrições de 1907, portaria 671-A, no seu artigo 63º dá competência ao régulo para julgamento das questões civis (milandos) entre os indígenas do seu regulado, excetuando-se as causas de divórcio, competência que também é atribuída aos administradores no art.109. “São competentes para o julgamento e decisão das questões cafreaes os régulos  e os administradores de circunscrição.”[7]
Mais ainda, deixavam uma  brecha para, quando resolvido um milando  pelos administradores, e não ficando satisfeito  o indígena com a decisão, poderiam eles, submeter a questão  aos seus chefes, e vice-versa.
Quanto pior, quando uma pessoa que nada tinha a ver com o milando, por não ficar satisfeita com a decisão, por ter algum interesse que a questão fosse resolvida  em favor de  uma das partes, fosse reclamar da decisão diretamente ao Secretario de Negócios  Indígenas, como ocorreu)   com o caso relatado pelo Comandante Militar do Bilene, que resolveu uma questão entre indígenas. A questão foi resolvida negando-se ao queixoso as  4 cabeças de gado que ele pretendia. Segundo o comandante, todos se mostraram satisfeitos com a decisão, no entanto, no final da tarde, apresenta-se no comando o régulo de nome Joema, que estava embriagado, pedindo licença para ir a Chibuto para expor novamente o caso, porque não se conformava com a decisão. O comandante em sua informação ao Governador, diz que estranha a atitude do régulo, uma vez que ele não fora parte na causa, vindo a saber depois, através do intérprete, que o interesse do régulo era porque o queixoso tinha lhe prometido uma vaca se ganhasse a questão. AHM, Cx. 148. Nota nº 112 de 26.04.1905.
O desprestigioda Justiça portuguesa também e objeto do relatório de Manoel Monteiro Lopes:  “Era antigamente uso entre os indígenas apresentarem o mesmo milando ás differentes auctoridades, que se iam succedendo nas suas terras, e como nem sempre a decisão d´uma era igual á da outra, resultava d´aqui um grande desprestigio do europeu aos olhos dos indígenas.”[8]
Por tudo isto, pelo desprestigio, pelas soluções diferenciadas para os mesmos casos, pelo afastamento  da indenização com a qual os indígenas estavam acostumados, bem como das provas por ele utilizadas, inclusive a do “muave” e ainda pelo desconhecimento  dos usos e costumes dos indígenas, que não entendiam os julgamentos feitos pelos administradores, e também porque tinham condição de enganá-los e desrespeitar as decisões, é que eles, os indígenas,  diziam; “Ekunya, ekasakó; enrureliwa  ottuli”  -O milando (resolvido por brancos na administração) é como o casaco, que se despe pela parte das costas”

           




[1] VALENTE DE MATOS, Alexandre – Cultura Moçambicana – Provérbios Macuas.  Lisboa, IICT, 1982, p161
[2] Idem
[3] Milandos – questões entre indígenas resolvidas segundo os seus usos e costumes
[4] Cafre , nome pelo qual os portugueses  qualificavam os nativos da África.
[5] Portaria 671-A de 12.09.1908, que regulamentou, em Moçambique, o decreto de 23 de maio de 1907.Boletim Oficial de Moçambique, nº 40, de 03.10.1908. pp 425-435
[6] UALALAPI – romance histórico de Ungulani Ba Ka Khosa escritor moçambicano, Lisboa, Editora Caminho, 2ª. Edição 1987.
[7] Idem
[8] Relatório do Governador da Cia de Moçambique, Manoel Monteiro Lopes, nº 16, pg. 128

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