“Onira: «enenèle eyo va», orimòna
yèttaka”:Aquele que diz «Essa formiga aí» É porque a viu andar.
Esse é um provérbio macua,
catalogado pelo padre Alexandre Valente de Matos(1982)[1]
O que este provérbio quer dizer?
Quer dizer o mesmo que “onde há fumo a fogo”, ou seja, quando há algum comentário, alguma crítica,
alguma conversa sobre determinado ato de alguém, é provável que ele tenha acontecido mesmo, e este provérbio era usado pelos régulos
para culpar alguém de determinado ato. Segundo mesmo autor, se uma mulher fosse se queixar do marido ao régulo,
alegando que ele a maltratou, e, após
ouvido o marido, o régulo não estando confiante nas desculpas daquele, aplicava
tal provérbio,e argumentava que ninguém viria fazer uma queixa gratuitamente[2]
A utilização dos provérbios nos julgamentos era uma constante na resolução dos milandos[3]
cafreais[4]. Não só na resolução de milandos eles eram
usados, também o eram pelos anciãos
quando reunidos para decidirem sobre algum
acontecimento.
Milandos, de acordo com o art. 107 do
Regulamento das Circunscrições, eram “ questões cafreaes todas aquellas que,
respeitantes a família e propriedade, segundo os usos e costumes tradicionais
dos indígenas, se resolvem entre elles mediante restituições, pagamentos e
indemnizações, de caráter inteiramente civil“. [5]
Como se disse, os provérbios não
tinham somente aplicação nos julgamentos
das questões cafreais, eles eram de uso comum e serviam , como está bem demonstrado em Ualalapi[6] para a educação dos mais jovens. É através dos
provérbios que os mais velhos ensinavam aos mais novos como respeitar as leis, como lidar com os mais velhos, com o saber se
sair de situações, quando se deve ficar calado, enfim, era através deles que os
jovens eram socializados.É o instrumento da oralidade, da tradição oral.
Há um diálogo entre um jovem e
seu avó, em que o ancião, sabiamente,
querendo proteger o neto e para que ele não
comentasse coisas que poderiam
complicar a sua vida, estando ele a falar de uma morte de um jovem guerreiro de nome
Mputa que o Imperador Gungunhana
determinara, mantém com este o seguinte diálogo:
”-Mputa esqueceu que a trovoada
produz a chuva, filho. Mulher de Rei é sagrada.
- Porquê, avô? O que ela tem
entre as coxas outra mulher não terá?
-Não fales assim, filho, não
fales assim, pois há anos atrás, o teu pai ainda não tinha nascido, houve um
homem que ousou lançar impropérios jamais ouvidos ao rei, e passou o resto da
vida carregando os testículos sem fim. Não fales assim. Deixa o Mputa. Deixa-o!
Ele esqueceu que quem agita a lagoa levanta o lodo.
- mas cacarejar não é pôr ovo,
avô?
- Não fales mais, calemo-nos. Se
Mputa tem razão sairá ileso, pois o macaco não se deixa vencer pela árvore.”
(KHOSA; 1987:48-49)
No mesmo livro há outra passagem em que a personagem Malule, conversando com alguém sobre a morte
de Damboia, irmã do imperador, uma mulher má, que mandara matar muitos homens e
morrera de uma menstruação sem fim diz:
“- Crapulosa?
- Não ligues. São Palavras do
vulgo. Não tem fundamento. Damboia teve a
vida mais sã que eu conheci.
- Para onde vai o fumo, vai fogo,
Malule.
- Nunca hás-de encontrar água
raspando uma pedra. Deixa-me falar. Eu conheço a verdade. Vivi na Corte...
- Mas qual é o homem que não tem ranho no nariz
Malule?
- Se Damboia teve erros não foram
de grande monta. Ela meteu-se com homens como qualquer mulher. E nisso não nos
devemos meter. O tecto da casa conhece o
dono.
- Mas o caracol deixa baba por
onde passa.” o diálogo continua, e é
ainda o jovem que diz: “mesmo que
caminhes numa baixa, a corcunda há de ver-se,”
(KHOSA:1987:66)
O diálogo recheado de provérbios
demonstra como uma pessoa mais velha tenta ensinar a uma mais jovem, que ela
não deve divulgar coisas dos outros, que
nem sempre o que se fala é verdade, sendo, entretanto, com outros provérbios, contestado pelo mais
jovem, que tenta lhe dizer que não é possível que com tantos comentários não
exista um pouco de verdade na estória.
Todavia há um provérbio interessantíssimo,
e este se aplicava em relação à justiça
colonial distribuída pelos colonizadores, e que demonstra todo o desprestígio
que ela gozava perante os africanos,
que ao terem alguma questão resolvida
pelos administradores coloniais, através das leis portuguesas, assim se posicionavam: “Ekunya, ekasakó; enrureliwa ottuli”
-O milando (resolvido por brancos na administração) é como o casaco, que
se despe pela parte das costas”(Idem.367).
De acordo com o padre
catalogador dos provérbios, quando alguém tinha a sorte ou o azar de levar um milando até a administração,
“premunia-se de argumentos que diminuíssem ao máximo, ou mesmo, anulassem toda
a sua responsabilidade, alegando falsas razões ou mesmo imputando-as para
outrem. Se alguém era absolvido, portanto, do seu milando, utilizando o desconhecimento dos costumes indígenas
pelos administradores, ou utilizando alguma artimanha e conseguia, com isto, uma absolvição ou atenuação dos efeitos da
condenação, então a pessoa dizia
exatamente que “ milando da
administração e como casaco que se despe
por trás”. Numa perfeita alusão de que nada ali era sério,
que a justiça dos brancos não era a
correta e que eles não a temiam.
E
perguntaríamos: se era assim, se
eles mesmo não acreditavam na justiça
dos brancos, por que iam procurá-la? Responderíamos, exatamente por
isto, porque as condenações eram atenuadas, lembrando que na justiça
cafreal as coisas funcionavam
diferentemente. As partes tinham o pavor
reverencial aos régulos, uma decisão de
algum milando através do régulo era tomada em julgamento aberto, em que as partes e as testemunhas eram
ouvidas por todos, que chegavam mesmo a
se pronunciar, não que influíssem no julgamento dos régulos, mas faziam a sua parte. Por outro lado, aos olhos
do régulo nada podia ser escondido, dado que todos se conheciam e todos sabiam
de tudo que se passava, inclusive o próprio régulo, alie-se a isto que em
alguns julgamentos havia um preparativo, que envolvia comida, bebida, tudo isto
patrocinado pelas partes envolvidas.
Em relação aos administradores,
acostumados com leis que deveriam ser observadas na sua textualidade, completamente ignorantes dos costumes indígenas, julgavam
de acordo com a sua própria consciência, ou seja, os seus próprios costumes e
as leis portuguesas. Assim, um milando que, de acordo com os régulos,
poderia ser solucionado até com a “morte” do ofensor, com indenização
à vitima ou aos seus familiares, não
recebia o mesmo tratamento quando era
solucionado pelos brancos, que não admitiam a pena de morte, que condenavam ao
degredo, à prisão com trabalhos
forçados, enfim, bem diversas as penalizações.
Por outro lado, a própria
administração portuguesa contribuía para
este descrédito, primeiro a demora do julgamento; segundo, a lei deixava ao
arbítrio do “indígena”
recorrer à justiça dos
colonizadores, ou procurar a justiça
cafreal, só não sendo possível isto
quando se tratava de crimes, ou seja a justiça criminal era da competência da justiça portuguesa. O regulamento das circunscrições de 1907,
portaria 671-A, no seu artigo 63º dá competência ao régulo para julgamento das
questões civis (milandos) entre os indígenas do seu regulado, excetuando-se as
causas de divórcio, competência que também é atribuída aos administradores no
art.109. “São competentes para o julgamento e decisão das questões cafreaes os
régulos e os administradores de
circunscrição.”[7]
Mais ainda, deixavam uma brecha para, quando resolvido um milando pelos administradores, e não ficando
satisfeito o indígena com a decisão,
poderiam eles, submeter a questão aos
seus chefes, e vice-versa.
Quanto pior, quando uma pessoa
que nada tinha a ver com o milando, por não ficar satisfeita com a decisão, por
ter algum interesse que a questão fosse resolvida em favor de
uma das partes, fosse reclamar da decisão diretamente ao Secretario de
Negócios Indígenas, como ocorreu) com o caso relatado pelo Comandante Militar
do Bilene, que resolveu uma questão entre indígenas. A questão foi
resolvida negando-se ao queixoso as 4
cabeças de gado que ele pretendia. Segundo o comandante, todos se mostraram
satisfeitos com a decisão, no entanto, no final da tarde, apresenta-se no
comando o régulo de nome Joema, que estava embriagado, pedindo licença para ir a
Chibuto para expor novamente o caso, porque não se conformava com a decisão. O
comandante em sua informação ao Governador, diz que estranha a atitude do
régulo, uma vez que ele não fora parte na causa, vindo a saber depois, através
do intérprete, que o interesse do régulo era porque o queixoso tinha lhe
prometido uma vaca se ganhasse a
questão. AHM, Cx. 148. Nota nº 112 de 26.04.1905.
O
desprestigioda Justiça portuguesa também e objeto do relatório de Manoel
Monteiro Lopes: “Era antigamente uso
entre os indígenas apresentarem o mesmo milando ás differentes auctoridades,
que se iam succedendo nas suas terras, e como nem sempre a decisão d´uma era
igual á da outra, resultava d´aqui um grande desprestigio do europeu aos olhos
dos indígenas.”[8]
Por
tudo isto, pelo desprestigio, pelas soluções diferenciadas para os mesmos
casos, pelo afastamento da indenização
com a qual os indígenas estavam acostumados, bem como das provas por ele
utilizadas, inclusive a do “muave” e ainda pelo desconhecimento dos usos e costumes dos indígenas, que não
entendiam os julgamentos feitos pelos administradores, e também porque tinham
condição de enganá-los e desrespeitar as decisões, é que eles, os indígenas, diziam; “Ekunya, ekasakó; enrureliwa ottuli”
-O milando (resolvido por brancos na administração) é como o casaco, que
se despe pela parte das costas”
[1]
VALENTE DE MATOS, Alexandre –
Cultura Moçambicana – Provérbios Macuas.
Lisboa, IICT, 1982, p161
[2]
Idem
[3]
Milandos – questões entre indígenas resolvidas segundo os seus usos e costumes
[4]
Cafre , nome pelo qual os portugueses
qualificavam os nativos da África.
[5]
Portaria 671-A de 12.09.1908, que
regulamentou, em Moçambique, o decreto de 23 de maio de 1907.Boletim Oficial de
Moçambique, nº 40, de 03.10.1908. pp 425-435
[6]
UALALAPI – romance histórico de
Ungulani Ba Ka Khosa escritor moçambicano, Lisboa, Editora Caminho, 2ª. Edição
1987.
[7]
Idem
[8] Relatório do Governador da Cia de
Moçambique, Manoel Monteiro Lopes, nº 16, pg. 128
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