Estou lendo a
tese de doutorado de minha professora de História na UNEB, Doutora Nancy Rita
Sento Sé de Assis: Baianos do Honrado Império do Brasil: Honra, Virtude e Poder no Recôncavo
1808-1889[1].
Como o próprio
título sugere, a doutora trabalha a honra, a moral, a virtuosidade e o poder no
Recôncavo da Bahia, entre 1808-1889. No período analisado, o Brasil passou de
colônia, a Reino, e de Reino a Império. A professora demonstra, no decorrer do
trabalho, o que era considerado virtude e honra e como elas defendidas nas
diversas esferas sociais. Em um momento discute a virtude feminina, como era trabalhada
e como a honra era protegida e no caso de
sua ofensa,que crimes eram praticados em nome da sua defesa, trazendo
exemplos ocorridos nos período, todos eles comprovados através de documentos
encontrados nos diversos arquivos da Bahia, mui principalmente o Arquivo Público
do Estado. Todavia não é só a honra da mulher que deveria ser preservada e, se
ofendida, vingada. Muitas outras situações ofensivas à honra seja dos poderosos, seja de escravos e pobres são
analisadas e no contexto jurídico, os crimes contra ela praticados(calúnia e
difamação) são estudados através de
processos crimes, demonstrando como os crimes eram punidos. Por outro lado, a
autora imbrica a educação como um elemento que
pode modificar, ao longo do
tempo, a sociedade e, com ela, as próprias
situações que poderiam ser consideradas
como ofensa à honra como a mesma educação influencia comportamentos, mudanças de atitudes,enfim, os
próprios conceitos trabalhados: virtude, honra, poder.
O texto é mesmo
muito interessante, no entanto, deixei-me levar em direção a um dos pontos tratados, a honra e a educação das
mulheres, e o fiz quando deparei-me com
este trecho:
“Trancá-las num
convento para que se conservassem castas, ou quando não mais o fossem, ainda
seria um expediente utilizado, mas... (Educá-las para a sociedade)parece ter
sido a solução encontrada. Aquelas mudanças já eram então admitidas entre os
que conduziam os projetos de uma educação feminina, mas naquelas propostas e
modelos de mulheres, conservar-se-á o mais antigo, correspondendo àquele de virtuosa mãe [que] teve a rara
felicidade de encontrar na sua pessoa os tesouros de Débora, as energias de
Ruth e a ternura de Rachel (...), tipo de verdadeira mulher bíblica, filha extremada, mãe exemplar, mulher forte”
(pg.48)
Voltei no tempo,
e me surpreendi: Voltei aos anos 60, quando eu, com sete ou oito anos fui
interna, já falei disto, mas com a leitura desta tese, tenho obrigação de
retornar ao assunto, para demonstrar os resquícios de uma época colonial em que
o que era perfeito era o que realmente vinha da província, no caso Portugal,
que ditava tudo, as normas da educação, da etiqueta, do machismo, da
inferioridade do gênero feminino. No decorrer do texto podemos observar que, no
que se refere à moralidade, a honradez, as coisas não mudaram muito, desde
àquela época, até a bem pouco tempo atrás, menos de 50 anos atrás, os mesmos
casos pela autora apontados como de ofensa a honra das famílias, das mulheres, continuavam
sendo tratados da mesma maneira.
Por que falo de resquícios?
Porque me lembro perfeitamente como éramos educadas no colégio interno.
Evidentemente que tivemos alguma evolução, já se formava professoras à época,
já existia muitas professoras ensinando em diversos colégios, penso que também
já tínhamos passado a barreira do gênero nas faculdades, mas ainda persistia a educação
para o lar. Éramos educadas para sermos mães de família, para obedecer aos pais
e, depois aos maridos. Aprendíamos, aliás, matéria do currículo normal, de prendas
domésticas. (já nem sei se não eram prendas do lar) Pense aí, prendas
domésticas. Eu consegui sair do
internato sem saber fazer porra nenhuma neste particular, aliás, o que aprendi
a fazer foi limpeza, pois era obrigada a limpar dormitório, refeitório,
banheiros, igreja, e tudo que fosse necessário, era assim que pagava a minha
educação. Não a tive de graça.
Lembro-me que um
dos meus trabalhos, porque tinham de me manter ocupada sempre, pois caso
contrário eu sempre estava aprontando alguma, era limpar a biblioteca, arrumar
os livros que eram retirados da estante dentre outros afazeres. Assim, aos onze
ou doze anos, dei de cara com livros proibidos, que todas as maiores tinham
curiosidade de ler, mas que as freiras não deixavam, querendo, com esta
atitude, preservar as mulheres de conhecer qualquer coisa sobre sexo, política,
poder. Sexo era mesmo um tabu, só se falava nisto em aula de ciência, e assim
mesmo, para que soubéssemos a diferença entre uma mulher e um homem. A única freira que nos falou de sexo um pouco
mais profundamente, que nos falou prazer feminino no sexo, não para nos
instruir mesmo, muito mais para evitar as masturbações que tinham lugar há
todos os dias quando, algumas de nós despertávamos para o sexo e sentíamos a
necessidade física de exercitar os músculos vaginais, pedido ardoroso do próprio
corpo e impossível de ser controlado. A freira explicava que o prazer tinha de
ser de dois, que o prazer de um só, decorrente da masturbação, na verdade, era
pecado. Que nós devíamos nos livrar destes pensamentos, porque continuar com
eles era pecar, e que não seríamos perdoadas por Deus. Puta merda, imaginem só.
Por causa de uma esfregadinha ali ou aqui iríamos queimar no fogo dos infernos,
que miséria.
“Naquele
contexto, em que se convalida a idéia de valorização da infância, a virgindade
casta é considerada como atributo de moças educadas para a inocência. Inocência
que personificava a tutela da família, mães, pais, irmãos e maridos, aos quais
competia vigiar o que as mulheres viam, ouviam e liam, os seus momentos de
lazer e aprendizado” (pg. 59)
A virgindade
tinha de ser preservada até o casamento, e olhe que eu já estava com 17 anos,
fora do colégio interno, estudando no Colégio da Bahia – Central, no período da
noite. Já trabalhava, mas a estória era a mesma, a virgindade tinha de ser
preservada de qualquer maneira, falaram tanto que me dava um medo da porra ter
relacionamento com homens. Meus namorados, dessa época, não podiam avançar qualquer sinal. Como me
arrependo meu Deus. Perdi tanta oportunidade de estar e ser de alguém a quem
muito quis: um homem que eu desejei tanto, que não tive e não posso ter, pois
ele já foi chamado.
Pois é, tudo isto
me veio numa realidade incrível, lendo os trechos transcritos e muitos outros da
tese que todos deveriam ler, é um grande estudo sobre o que significava a honra
àquela época, e quais as conseqüências da sua ofensa.
Através da
leitura fiquei sabendo que as Irmãs de Caridade chegaram à Bahia em 1853,
portanto cem anos antes do meu nascimento, (pg. 53) e elas eram responsáveis,
não só elas, pela educação das jovens, responsáveis pela educação religiosa,
moral, doméstica. Deviam ensinar as moças a falar francês, vigiar a sua
virgindade e castidade, inclusive, como os pais, vigiar o que liam, o que
escutavam. As moças deveriam sair dos conventos prontas para assumir a vida
familiar, ou seja: ser mãe, esposa, dona de casa, obedecer e agradar aos
maridos, e o mais importante, virtuosas, guardando para o leito marital a sua maior
riqueza, a virgindade. [...] Ambas, obediência e castidade, porém antes
garantidas através da reclusão e do medo, no contexto das transformações oitocentistas,
não seriam introjetadas pelas mulheres, senão por meio de uma educação ancorada
no princípio da auto-repressão sexual em favor da moral e da virtude. Essa
educação pretendia que toda moça de “boa família” conhecesse e estivesse
convencida do alto valor social da sua virgindade. (pg.52).
Torno a me
lembrar do convento, onde li os livros proibidos: Eça de Queiroz não era
acessível, só depois de muito tempo é que vim entender a proibição; então era
possível ler um livro que falava de amor carnal entre irmãos, entre um padre e
uma paroquiana, entre uma mãe e um filho? Jamais: mas eu li os Maias, não como deveria,
pois tinha que ser aos poucos e pulando páginas, sobressaltada. Muito tempo depois li calmamente, não só os
Maias, como o Crime do Padre Amaro, a Rua das Flores, dentre outros de Eça de
Queiroz que tanto mostrou, e bem, a farsa da sociedade portuguesa de
oitocentos.
Mesmo depois de ter
deixado o convento, quantas pessoas vi repudiar uma jovem porque, como eles
diziam na época, “se perdeu”. A criatura virava uma “vagabunda”. Os pais ficavam
decepcionados, com a honra ofendida, os outros pais proibiam as suas filhas de
andar com a “perdida”, e Isto eu já tinha para lá de 18 anos. Aliás, aos
dezenove só não desonrei total minha família, porque tive a sorte, ou o azar,
de ser pedida em casamento.
Bom, pelo parágrafo
acima vocês já notaram que eu não levei muito a sério os ensinamentos das
freiras: fiz faculdade, formei em Direito, casei, descasei, pari. Não posso
afirmar que fui uma boa esposa, acho que não, perdi já dois maridos, portanto
não aprendi como ser obediente, calada, passiva para ficar com alguém em nome
da preservação da família. Não sei se fui, ou sou, boa mãe, nem boa avó agora,
já com três netos. O que sei é que, a exemplo de antigamente, a minha honra e a
da minha família foi salva com um casamento às pressas, que nem bem começou,
com a mesma urgência acabou. Não sei se falaram ou deixaram de falar sobre este
meu casamento relâmpago, mas soube de um comentário vindo do outro lado do
Atlântico: “coitadinha da esmeraldinha, tão jovem e já assim, sozinha e com um
filho para criar”. Não sei se o comentário foi mesmo de pena pela situação, ou
se foi uma critica, mas deixa para lá.
[1]
Assis,
Nancy Rita Sento Sé de. Baianos do Honrado Império do Brasil: Honra,
Virtude e Poder no Recôncavo 1808-1889.
Tese apresentada ao Curso de História da Universidade Federal Fluminense como
requisito para obtenção do grau de Doutor. Área de Concentração: História
Moderna e Contemporânea, 2006.
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