sexta-feira, 25 de julho de 2014

Educação Virtuosa!

Estou lendo a tese de doutorado de minha professora de História na UNEB, Doutora Nancy Rita Sento Sé de Assis: Baianos do Honrado Império do Brasil: Honra, Virtude e Poder no Recôncavo 1808-1889[1].
Como o próprio título sugere, a doutora trabalha a honra, a moral, a virtuosidade e o poder no Recôncavo da Bahia, entre 1808-1889. No período analisado, o Brasil passou de colônia, a Reino, e de Reino a Império. A professora demonstra, no decorrer do trabalho, o que era considerado virtude e honra e como elas defendidas nas diversas esferas sociais. Em um momento discute a virtude feminina, como era trabalhada e como a honra era protegida e no caso de  sua ofensa,que crimes eram  praticados em nome da sua defesa, trazendo exemplos ocorridos nos período, todos eles comprovados através de documentos encontrados nos diversos arquivos da Bahia, mui principalmente o Arquivo Público do Estado. Todavia não é só a honra da mulher que deveria ser preservada e, se ofendida, vingada. Muitas outras situações ofensivas à honra seja  dos poderosos, seja de escravos e pobres são analisadas e no contexto jurídico, os crimes contra ela praticados(calúnia e difamação)  são estudados através de processos crimes, demonstrando como os crimes eram punidos. Por outro lado, a autora imbrica a educação como um elemento que  pode  modificar, ao longo do tempo, a sociedade e, com ela,  as próprias situações  que poderiam ser consideradas como ofensa à honra como a mesma educação influencia  comportamentos, mudanças de atitudes,enfim, os próprios conceitos trabalhados: virtude, honra, poder.  
O texto é mesmo muito interessante, no entanto, deixei-me levar em direção a um dos  pontos tratados, a honra e a educação das mulheres, e o fiz quando  deparei-me com este trecho:
“Trancá-las num convento para que se conservassem castas, ou quando não mais o fossem, ainda seria um expediente utilizado, mas... (Educá-las para a sociedade)parece ter sido a solução encontrada. Aquelas mudanças já eram então admitidas entre os que conduziam os projetos de uma educação feminina, mas naquelas propostas e modelos de mulheres, conservar-se-á o mais antigo, correspondendo àquele de virtuosa mãe [que] teve a rara felicidade de encontrar na sua pessoa os tesouros de Débora, as energias de Ruth e a ternura de Rachel (...), tipo de verdadeira mulher bíblica, filha extremada, mãe exemplar, mulher forte” (pg.48)
Voltei no tempo, e me surpreendi: Voltei aos anos 60, quando eu, com sete ou oito anos fui interna, já falei disto, mas com a leitura desta tese, tenho obrigação de retornar ao assunto, para demonstrar os resquícios de uma época colonial em que o que era perfeito era o que realmente vinha da província, no caso Portugal, que ditava tudo, as normas da educação, da etiqueta, do machismo, da inferioridade do gênero feminino. No decorrer do texto podemos observar que, no que se refere à moralidade, a honradez, as coisas não mudaram muito, desde àquela época, até a bem pouco tempo atrás, menos de 50 anos atrás, os mesmos casos pela autora apontados como de ofensa a honra das famílias, das mulheres, continuavam sendo tratados da mesma maneira.
Por que falo de resquícios? Porque me lembro perfeitamente como éramos educadas no colégio interno. Evidentemente que tivemos alguma evolução, já se formava professoras à época, já existia muitas professoras ensinando em diversos colégios, penso que também já tínhamos passado a barreira do gênero nas faculdades, mas ainda persistia a educação para o lar. Éramos educadas para sermos mães de família, para obedecer aos pais e, depois aos maridos. Aprendíamos, aliás, matéria do currículo normal, de prendas domésticas. (já nem sei se não eram prendas do lar) Pense aí, prendas domésticas.  Eu consegui sair do internato sem saber fazer porra nenhuma neste particular, aliás, o que aprendi a fazer foi limpeza, pois era obrigada a limpar dormitório, refeitório, banheiros, igreja, e tudo que fosse necessário, era assim que pagava a minha educação. Não a tive de graça.
Lembro-me que um dos meus trabalhos, porque tinham de me manter ocupada sempre, pois caso contrário eu sempre estava aprontando alguma, era limpar a biblioteca, arrumar os livros que eram retirados da estante dentre outros afazeres. Assim, aos onze ou doze anos, dei de cara com livros proibidos, que todas as maiores tinham curiosidade de ler, mas que as freiras não deixavam, querendo, com esta atitude, preservar as mulheres de conhecer qualquer coisa sobre sexo, política, poder. Sexo era mesmo um tabu, só se falava nisto em aula de ciência, e assim mesmo, para que soubéssemos a diferença entre uma mulher e um homem.  A única freira que nos falou de sexo um pouco mais profundamente, que nos falou prazer feminino no sexo, não para nos instruir mesmo, muito mais para evitar as masturbações que tinham lugar há todos os dias quando, algumas de nós despertávamos para o sexo e sentíamos a necessidade física de exercitar os músculos vaginais, pedido ardoroso do próprio corpo e impossível de ser controlado. A freira explicava que o prazer tinha de ser de dois, que o prazer de um só, decorrente da masturbação, na verdade, era pecado. Que nós devíamos nos livrar destes pensamentos, porque continuar com eles era pecar, e que não seríamos perdoadas por Deus. Puta merda, imaginem só. Por causa de uma esfregadinha ali ou aqui iríamos queimar no fogo dos infernos, que miséria.
“Naquele contexto, em que se convalida a idéia de valorização da infância, a virgindade casta é considerada como atributo de moças educadas para a inocência. Inocência que personificava a tutela da família, mães, pais, irmãos e maridos, aos quais competia vigiar o que as mulheres viam, ouviam e liam, os seus momentos de lazer e aprendizado” (pg. 59)
A virgindade tinha de ser preservada até o casamento, e olhe que eu já estava com 17 anos, fora do colégio interno, estudando no Colégio da Bahia – Central, no período da noite. Já trabalhava, mas a estória era a mesma, a virgindade tinha de ser preservada de qualquer maneira, falaram tanto que me dava um medo da porra ter relacionamento com homens. Meus namorados, dessa época, não podiam avançar qualquer sinal. Como me arrependo meu Deus. Perdi tanta oportunidade de estar e ser de alguém a quem muito quis: um homem que eu desejei tanto, que não tive e não posso ter, pois ele já foi chamado.
Pois é, tudo isto me veio numa realidade incrível, lendo os trechos transcritos e muitos outros da tese que todos deveriam ler, é um grande estudo sobre o que significava a honra àquela época, e quais as conseqüências da sua ofensa.
Através da leitura fiquei sabendo que as Irmãs de Caridade chegaram à Bahia em 1853, portanto cem anos antes do meu nascimento, (pg. 53) e elas eram responsáveis, não só elas, pela educação das jovens, responsáveis pela educação religiosa, moral, doméstica. Deviam ensinar as moças a falar francês, vigiar a sua virgindade e castidade, inclusive, como os pais, vigiar o que liam, o que escutavam. As moças deveriam sair dos conventos prontas para assumir a vida familiar, ou seja: ser mãe, esposa, dona de casa, obedecer e agradar aos maridos, e o mais importante, virtuosas, guardando para o leito marital a sua maior riqueza, a virgindade. [...] Ambas, obediência e castidade, porém antes garantidas através da reclusão e do medo, no contexto das transformações oitocentistas, não seriam introjetadas pelas mulheres, senão por meio de uma educação ancorada no princípio da auto-repressão sexual em favor da moral e da virtude. Essa educação pretendia que toda moça de “boa família” conhecesse e estivesse convencida do alto valor social da sua virgindade. (pg.52).
Torno a me lembrar do convento, onde li os livros proibidos: Eça de Queiroz não era acessível, só depois de muito tempo é que vim entender a proibição; então era possível ler um livro que falava de amor carnal entre irmãos, entre um padre e uma paroquiana, entre uma mãe e um filho?  Jamais: mas eu li os Maias, não como deveria, pois tinha que ser aos poucos e pulando páginas, sobressaltada.  Muito tempo depois li calmamente, não só os Maias, como o Crime do Padre Amaro, a Rua das Flores, dentre outros de Eça de Queiroz que tanto mostrou, e bem, a farsa da sociedade portuguesa de oitocentos.
Mesmo depois de ter deixado o convento, quantas pessoas vi repudiar uma jovem porque, como eles diziam na época, “se perdeu”. A criatura virava uma “vagabunda”. Os pais ficavam decepcionados, com a honra ofendida, os outros pais proibiam as suas filhas de andar com a “perdida”, e Isto eu já tinha para lá de 18 anos. Aliás, aos dezenove só não desonrei total minha família, porque tive a sorte, ou o azar, de ser pedida em casamento.
Bom, pelo parágrafo acima vocês já notaram que eu não levei muito a sério os ensinamentos das freiras: fiz faculdade, formei em Direito, casei, descasei, pari. Não posso afirmar que fui uma boa esposa, acho que não, perdi já dois maridos, portanto não aprendi como ser obediente, calada, passiva para ficar com alguém em nome da preservação da família. Não sei se fui, ou sou, boa mãe, nem boa avó agora, já com três netos. O que sei é que, a exemplo de antigamente, a minha honra e a da minha família foi salva com um casamento às pressas, que nem bem começou, com a mesma urgência acabou. Não sei se falaram ou deixaram de falar sobre este meu casamento relâmpago, mas soube de um comentário vindo do outro lado do Atlântico: “coitadinha da esmeraldinha, tão jovem e já assim, sozinha e com um filho para criar”. Não sei se o comentário foi mesmo de pena pela situação, ou se foi uma critica, mas deixa para lá. 




[1] Assis, Nancy Rita Sento Sé de. Baianos do Honrado Império do Brasil: Honra, Virtude e Poder no Recôncavo 1808-1889. Tese apresentada ao Curso de História da Universidade Federal Fluminense como requisito para obtenção do grau de Doutor. Área de Concentração: História Moderna e Contemporânea, 2006.

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