Depois do convite presidencial ao endividamento, e já endividado em atenção a tão nobre pedido, temos de nos livrar das dívidas, e então...
Olhem! Sem querer dar de erudita, de
culta, esnobe, sei lá mais o que, estou, presentemente, de intimidades com
ARISTÓFANES.
Porra meu! Ter intimidade com alguém que
tem este nome já é motivo para ser admirada, pois tenho certeza que, ninguém em
sã consciência se aproximaria de alguém que se chamasse ARISTÓFANES, todavia,
como minha mãe e Marta casaram-se com homens que se chamam AURENTINO, vá lá que
eu estou muito bem na fita. Aliás, como na moda, “Causando”.
Pois é. O meu relacionamento com dito
senhor provém do fato de que, por estar muito cansada de leituras que só me
transportam à África, por causa do trabalho de pesquisa do doutorado, procurei
me distanciar bem disto e, como na casa da minha “senhoria” portuguesa tem
muitos e muitos livros, escolho um sem olhar muito bem a autoria. Escolhi pelo
título e pela espessura. Um livro destas coleções que se chamam “de bolso”.
O título - AS NUVENS
Ora, como queria mesmo espairecer, nada
como algo que falasse de nuvens, pois fiz ligação direta, com céu, anjos,
universo, chuva, sonhos, coisas que o nome nos remete.
Puxei o livro da estante, não sem
trabalho, porque a minha senhoria adora colocar coisas nas frentes dos livros,
não entendo bem porque, mas ela o faz e “prontos”, como diria um bom português.
Surpresa! O autor: ARISTÓFANES. Pensei. Já vi, ou ouvi, este nome em algum
lugar, mas juro que não me lembrava onde e nem o motivo. Bom, mas abri o
miserável e comecei a ler o prefácio, que é de autoria de Custódio Magueijo,
que também é o tradutor.(1984)
Vou logo lhes dizer que se trata de um
ateniense que viveu em 445 a.C.(para quem não sabe a.C. significa antes de
cristo).
Pelo prefácio já comecei a simpatizar com
o ARIS, claro que começando a ter uma relação íntima, não ia querer chamar o
homem por aquele palavrão que era o seu nome. Pois o ARIS, de acordo com o
prefaciante, ou é prefaciador? Bom isto não interessa, o que interessa é que,
segundo ele, o ARIS era: “Precocemente apetrechado com os « ornamentos» da
cultura (coisas da memória...), revela-se um jovem prodigioso pela capacidade
de converter a quantidade em qualidade, o saber em compreensão, o ver em
observar”.(p7) Bom, com esta descrição, me interessei mais ainda pelo ARIS, mas
um motivo maior, logo a seguir comentado pelo prefaciador, me deixou mesmo
louca de vontade de criar mesmo uma relação mais íntima com ele, vejam bem se
não tenho razão: “Enquanto uns canalizam esta capacidade para a ciência, para a
filosofia, para as artes plásticas, etc. Aristófanes tem o condão de reduzir a
vida e os homens aos seus aspectos mais ridículos ou risíveis – que tal é o seu
modo próprio de afirmar a seriedade fundamental da existência”(Id) Aí endoidei
mesmo. Como será que alguém pode tornar o ser humano tão ridículo e através
deste ridículo afirmar a seriedade da existência dele? Como será que a
seriedade da existência pode se apresentar no ridículo do ser humano? Será que
só existe a verdade quando se está diante do que o homem tem de mais ridículo?
O que será ridículo para o ARIS?
Rapaz, não nego não: fiquei excitadíssima.
Ainda no prefácio vi que o ARIS era
chegado mesmo a uma comédia, era assim que ele se expressava, expunha as suas
críticas e a sua “filosofia”. Logo, como bom comediante que era, era exatamente
trazendo o ridículo dos homens, que a sua crítica ao social era feita. Pensei:
realmente, tenho de conhecer este miserável, não dá mais para deixá-lo passar
pela minha vida sem termos um relacionamento mais íntimo. Temos em comum,
(ousadia pura), olhem bem, isto só foi com o prefácio, uma coisa: “a comédia”,
para mim realmente uma maneira de gozar, criticar, de expor defeitos de uma
maneira menos agressiva e mais inteligível, embora com toda a agressividade,
pois mostrar ao outro o seu defeito, é para muitos uma agressão, o que não
deixa de ser, mas mostrá-la num tom irônico, acentuando o ridículo da situação
e da ação, é mesmo extraordinário. Faço isto com atos e fatos da minha própria
vida.
Pois bem, lá vou lendo o prefácio e me
deparo com: “[...] e quanto à seriedade fundamental do riso, também não
precisamos senão de ouvir o que nos diz uma personagem dos Arcanos (vv496-501),
intimamente sintonizada com a tese que o autor defende: « Não se irritem,
senhores espectadores, pelo facto de eu, além de pobre de pedir, ainda por
cima, no meio de atenienses e numa comédia, vir falar acerca da cidade. Ora a
verdade é que a comédia também ter a ver com a justiça.»”(ibid) Aí meu amigo!
Sem desculpa, sem adiamento, sem qualquer dúvida: quero de vez conhecer o ARI,
tirar tudo que ele pudesse me dar, talvez para nada, mas queria saber dele e o
porquê do título - AS NUVENS.
Parto para o texto que vou resumir por
óbvio. Havia em Atenas um cidadão chamado, olhem bem o nome, Estrepsíades, que
era um proprietário rural, mas que tinha casado com uma moça da urbis,
pertencente à aristocracia ateniense. Ele acostumado as lides rurais, ela
acostumada á vida da cidade, para onde o homem, com o casamento, se muda e
passa a viver. Da união nasce um filho que suscitou muitas discussões entre os
pais por força da educação, porque cada um lhe queria dar uma educação
diferente;o pai, para que este crescesse um homem digno e responsável, a mãe
para que o rapaz tivesse a vida mundana, com muitos gastos e diversões, como
convinha a um membro da elite ateninese, o que prevaleceu.
O velho, para resolver o problema do filho
(FIDÍPEDES), que devido à vida de jogos, pois que este era frequentador das
corridas e de tudo o quanto pudesse gastar dinheiro, estava vendo as suas
finanças irem por água a baixo, tomar uma atitude, e então procura uma solução,
que acha ter encontrado: que era enviar o filho para a escola de
“Sócrates”, que segundo ele, tinha a reputação de formar as pessoas nas
sutilezas da oratória. Pensou o velho: se meu filho se formar na escola e
aprender o dom da oratória, poderá, através das palavras, convencer os meus
credores que não lhes devo nada. Interessei-me mais ainda neste momento!
Pense aí: convencer credores, pela palavra, de que nada lhes deve.
Continuando a estória. “Fidipedes, claro,
não quis nem saber disto, o pai lhe mostra o local onde funciona a escola, lhe
diz que aquilo é um “frontisterio” que significa o pensadouro de espíritos
sábios”, que naquele lugar “[...] moram “uns homens que estudam o céu e
demonstram que êle é uma fornalha que esta a nossa volta, e nós, os humanos,
somos carvões". Tais criaturas – em troca de dinheiro, é claro – ensinam
uma pessoa a discorrer tão bem, que é capaz de vencer todas as causas, justas
ou injustas(ibd.p22) e o filho retrucando lhe diz: “[...] conheço-os de
gingeira... Queres tu dizeres uns vigaristas muito amarelentos, sempre de pata
ao léu, uma cálifa de que fazem parte este miserável Sócrates e Querefonte...
”(ibd)
O dialogo continua, e o pai, ao ser
perguntado o que lá se ensina diz: “êles lá, segundo se diz, tem duas teses ou
raciocínios o mais forte, ou lá o que é, e o mais fraco. Ora um destes dois
raciocínios, precisamente o mais fraco, garantem eles que tem cá uma
lábia, que é capaz de vencer as causas mais injustas.Portanto, se tu me
aprenderes este tal raciocínio injusto, todas as dívidas que eu contrai por tua causa...
truca: não pagarei nada a ninguém, nem a ponta dum corno”(ibd.p24).
Bom o fato é que o filho não aceita e o
próprio Estrepsíades resolve que vai ser aluno da escola e para tanto vai ter
com Sócrates. Daí para frente é hilariante todo o resto do livro. O velho, que
já e muito mal recebido por um dos discípulos, que se enfurece com o bater da
porta, e já lhe chama de ignorante: “Por Zeus, és mesmo um ignorante, para
martelares a porta com esta força toda, sem consideração por quem está por
dentro. Estas a ver? Por sua causa, um pensamento já praticamente descoberto,
zás: abortou”(ibd.p.26).
O pobre do homem pergunta o que é esta
coisa de abortar e o discípulo lhe diz que isto é segredo que somente pode ser
revelado aos discípulos.
O velho insiste e dizendo que quer ser,
também, discípulo, por isto está ali, e em razão desta informação, o seu pedido
é atendido e o segredo lhe é revelado: “Foi o caso que ainda agora perguntava
Sócrates a Querefonte quantas vezes é que uma pulga era capaz de saltar o
comprimento das suas próprias patas. É que um destes bichos, depois de afifar uma
ferroada nas sobrancelhas de Querefonte, foi aterrar na cabeça de
Sócrates”(Ibd.)
O discípulo vai informando outras
descobertas de Sócrates, mas o velho quer mesmo falar com o próprio e, quando
se lhe abrem a porta, ele vê varias figuras em posições estranhas, deitados de
cabeça para baixo, acocorados, rastejando e lhe explicam que eles estão a
meditar.
Vendo uns outros discípulos de cabeça para
baixo, o homem pergunta o que eles estão a fazer, ao que lhe respondem: "
Estes sondam o Érebo até as profundezas do Tártaro." E o candidato a
discípulo questiona: "E porque diacho está o olho do cu virado
para o céu?" (ibd.p.30)
Finalmente o homem encontra com Sócrates e
os diálogos são realmente notáveis, Sócrates que é pedante e se julga quase um
Deus, estando acima das almas mundanas pergunta-lhe: Por que me chamas ó
efémera criatura?(ibd.p32) Ao que o velho retruca: Primeiro quero saber o que
estas a fazer aí em cima? E Sócrates lhe responde: “Caminho nos ares a olhar o
sol cá do alto”.(ibd)
O dialogo entre os dois é fenomenal, mas
vocês têm mesmo de ler. Sócrates está sempre no pedestal, é ironizado todo o
tempo por isso, e o ARIS no decorrer de toda comédia satiriza a sua filosofia,
caracterizando-a com o inútil e vã, compara-o a sofistas, enfim, toda a comédia
é uma critica ao modelo de vida dos filósofos, dos seus ensinamentos e da
sociedade ateniense como um todo.
Mas, ainda estava eu a querer saber por
que o livro chamava-se “as Nuvens”, e a resposta está á p. 34. As nuvens eram
as divindades para Sócrates, que repudia os deuses atenienses. Elas se
transformavam em tudo.
Os diálogos entre o aluno e o professor
são entremeados de intervenções, sejam das nuvens, e de outros personagens:
Corifeu, raciocínio justo, raciocínio injusto. Os questionamentos feitos ao
aluno e as suas respostas mostram a inutilidade de todo o saber ensinado
pela escola socrática, que é comparada aos sofistas, cujo método de ensino é
particularmente ridicularizado pelo ARIS que demonstra como, além de inúteis,
podem ser prejudiciais aos jovens.
Chega-se à conclusão que o velho não vai
aprender nada, de acordo com Sócrates, p. 54. ”Este gajo é um ignorante, um
bárbaro”. E quando ele não se lembra da primeira pergunta que lhe foi feita,
Sócrates o manda para o raio que o parta e ainda chama-o de velho desmiolado p.
78.
O velho, finalmente, consegue levar o
filho até a escola de Sócrates e este vai receber lições dos dois raciocínios,
o justo e o injusto e Estrepsíades adverte Sócrates que o rapaz tem de ficar
apto a refutar todo o raciocínio que é justo.
Quando o filho sai da escola, com a cor
amarelada dos filósofos, começa a aplicar os seus conhecimentos e ensina o pai
como se livrar dos credores, dizendo que tudo era uma questão de interpretação
da lei, e não só; começa a aplicar castigos ao pai, castigos estes que ele
convence o pai que são justos, numa declarada critica aos socráticos, que são
comparados aos sofistas, que de um raciocínio errado passam a convencer
alguém da verdade dele. O pai se maldiz de ter colocado o filho na escola de
Sócrates, e vai lá e tenta matar o filósofo, para tanto sobe ao telhado e toca
fogo em tudo, não antes de ser visto pelo mestre em cima do telhado e ser
questionado por ali estar, ao que ele responde com a mesma resposta que um dia
ouvira de Sócrates: “Caminho nos ares, olhando o sol cá do alto”.(Ibd.p.130).
Recomendo que todos leiam esta comédia do
ARIS, porque é realmente hilariante ver como ele trabalha a lógica do absurdo,
quero dizer, assim é que entendi. Leiam. Vocês vão ficar nas NUVENS e sem dever
nada a ninguém!
Aristofanes - As Nuvens - Prefacio, tradução e notas de
Custódio Magueijo, Lisboa Editorial Inquerito, 2a.ed. 1984
Nenhum comentário:
Postar um comentário