O vestido é branco, é como se
fosse uma bata mais comprida, estilo indiano, coisas que gosta. É completamente
transparente e foi comprado, exatamente, pelo insuportável calor que esta
fazendo na cidade. A casa onde está é cheia de portas de espelhos
e, de repente, olha para a da cozinha e se vê ali refletida, aliás, não quer
crer que seja ela mesma. O vestido
transparente permite notar que a sua silhueta foi embora, já não tem divisão no
corpo, já não sabe mais onde fica a cintura, estomago ou barriga, tá tudo
junto, e como diria alguém, “ta tudo junto e misturado”; uma mistura horrível,
que não deve ter gosto de porra nenhuma, talvez por isso mesmo algumas pessoas,
normais-anormais, não tenham qualquer desejo pela sua figura. Sim, porque o que
se lhe apresenta ali naquele espelho não é nada. Será um homem? Será uma
mulher? Um travesti? Aquilo não é nada, é um amontoado de carne que se expandiu
para todos os lados cobrindo todos os espaços, destruindo suas formas,
acrescentando-lhe curvas indesejáveis e pregas incríveis.
Fica indignada, pensa em tirar o
vestido, aquela porra que lhe permitiu, sem ela querer, que se desse conta do
lastimável estado em que se encontra aos 59 anos.
Não será melhor quebrar as portas
da casa? Quebrar cada espelinho daquele que lhe faz ver a realidade que tenta
em todos os momentos esconder, ou melhor, não perceber. Aqueles pedacinhos de
espelhos devem estar lhe desconfigurando; é claro que não pode estar daquela
maneira, aquela não é ela, ou melhor: será mesmo que aquela é ela ou ela é
aquele que se vê? Será esta, ou a que
pensa que é, que é a real ?
Merda de espelhos; tenta não os olhar mais, mas não tem jeito,
eles estão em todas as partes. E a claridade! Esta miserável cúmplice daqueles
pedacinhos malditos de realidade, também contribui para que ela se dê conta do
que realmente é. O contraste da luz faz
com que a silhueta apareça por baixo do leve tecido, é isto mesmo; é ela sem
cintura, com o estomago alto, com gorduras localizadas nas laterais, com a
bunda mole, com os braços cheios de pelanca, que já não podem nem mesmo dar um
bye: ao invés de saudação, as pessoas terminariam por ficar ofendidas.
Puta que pariu! Pensa em como as
pessoas são falsas e como procuram se enganar a si e aos outros todos os dias. De
que adianta a yoga, o pilates, as caminhadas? Porra nenhuma, as marcas do tempo
estão aqui a lhe mostrar que nada vai resolver a bancarrota em que o seu corpo se
encontra, daí para frente, se é que isto pode mesmo piorar, já esta muito
insatisfeita com o que vê, não sabe o que pode acontecer: pensa que vai andar
recolhendo pelancas e enfiando-as não sabe onde. Será que um cirurgião plástico teria
capacidade de tirar metade destas pelancas? Não acredita, ele ia ter de
recortar tanto que a obra final iria ficar uma merda. Assim é que a desconfiguração
seria mesmo total, porque o resultado não seria nem ela e nem nada.
Diabos de pedacinhos de espelhos inconvenientes;
tem vontade de dar uma porrada na dona da casa, como se ela tivesse alguma
participação nisto, como se fosse culpada da sua velhice, dos seus defeitos físicos,
da perfeição da genética. Sim, perfeição da genética, é exatamente aquilo que a
sua genitora foi com a idade que ela está agora, só espera que, quando
alcançar a idade que ela tem atualmente, ao menos consiga andar: a mãe já não
o faz.
Resolve sair daquele espaço
torturador, aliás, parece uma casa de terror, e vai para o quarto. Vê-se,
então, num espelho maior, não muda nada, até mesmo piora, os quadrinhos dos
espelhos das portas se juntam neste espelho maior para lhe mostrar, com mais
detalhes, o que o passar dos anos lhe deixou de herança, além das dívidas, claro.
Tem de tudo, efeito de casca de laranja na pele, aquele que é combatido com
diversos produtos que, simples e vergonhosamente, são sempre derrotados pelo
tempo. Mossas de celulite! Têm pelas pernas, ancas, braços. Era melhor ser um só buraco, ao invés de
tantos em tantos lugares diversos. Aqui
também, os anticeluliticos perderam, descaradamente, a guerra. Os responsáveis
por estas “armadilhas” deveriam ser presos, isto é uma afronta aos
consumidores, uma mentira descarada e deslavada, vendida em supermercados,
farmácias, botecos até, no Brasil agora se vende em ônibus.
Quer quebrar o espelho, não o faz,
a voz da razão não lhe permite, ela lembra que está em casa alheia e que,
apesar do corpo que ele reflete lhe pertencer, ele, espelho miserável,
propagador da verdade, não é dela, além do mais, ele está cumprindo, e bem, a sua
função, talvez a mais social que poderia ter, mostrar-lhe exatamente como ela é
e está.
A razão, também, talvez para lhe
fazer esquecer as rugas que tomam conta do seu rosto, as pregas que fazem as suas
mãos parecerem de bruxa dos desenhos animados, dos seus pés enrugados e secos, fica
martelando: “Você é sábia, tudo isto que se mostra no espelho é muito pequeno
diante do que você é intelectualmente, diante da sabedoria que tudo isto que se
espelha no seu físico lhe trouxe”.
“Manda a razão à porra: então sua
ordinária! De que vai adiantar todo este saber se ninguém tiver coragem de se
aproximar de mim, de estar comigo, se a minha aparência não deixa que as
pessoas se aproximem, nem mesmo para compartilhar o saber? Sai de
mim e vá procurar consolar outra idiota, não eu, que to me lixando para o
saber, ele sequer me deu condição de pagar
algumas plásticas que não me deixariam chegar a isto, ao menos, por
enquanto”.
“Doutora, olhe bem, Você alcançou
coisas que muitos poucos conseguiram. Você faz parte de um mundo distante do
comum dos mortais, isto é um privilégio, e isto só se consegue com o passar do tempo,
portanto, mais uma vez lhe digo, aprenda a gostar destas marcas porque elas são
o resultado da sua própria vida, da sua experiência, do seu saber”.
“Olhe razão, vá para o inferno:
então eu fiz tudo isto diferente dos pobres
mortais, mas o tempo me dá o mesmo efeito que dá a eles, se fosse diferente, se
alguma coisa fosse relevante em relação a tal da minha experiência, também o
meu físico teria de ter algum privilégio sobre os dos demais mortais, que
fizeram outros sacrifícios diversos dos meus”.
“Dra., Mestre, Doutora, olhe
bem, veja quantos títulos. Quem os tem tantos? Veja o que você conseguiu?”
“Querida razão, não me aborreça.
Quantas ou quantos têm estes títulos eu não sei, espero que bem poucos se o
resultado final for o que hoje tenho: A solidão, as marcas do tempo se
instalando sem pedir qualquer autorização, a elevação das minhas “taxas”, os triglicérides, o colesterol, a pressão
arterial. Ah! Tem uma coisa que baixa, o “estradiol” e com ele o fogo do
desejo, da paixão, que já nem posso partilhar com alguém. Também os peitos, estes miseráveis: os róseos mamilos que se impunham diante de
olhares vorazes, e que pareciam querer ganhar qualquer guerra, agora,
cabisbaixos, olham para o chão, nem mesmo nas poucas vezes que, correspondendo
a alguma estimulação endurecem, mudam de direção, continuam a olhar para baixo,
possivelmente envergonhados do estado em que se encontram. Olhe razão, vá para
aquele lugar e me deixe em paz com as suas ponderadas ponderações. Como você é
abstrata não tem onde se lhe pegue, fica assim, dando de sábia e “gostosona”.
Certamente você nunca saberá o que é ser gostosona, nunca sentirá o prazer de
ser tocada, bolinada, mexida. Nunca terá o gosto de ouvir, ao passar na rua,
alguém (e olhe que a esta altura não faria nem exigência do sexo) dizer que
você é gostosa, ou ainda, para os menos novos, que você é a luz do dia, flor do
dia, uma boneca que anda e fala, dentre
outras destas coisas ridículas que fazem um bem da porra ao ego, e, se deixarmos
passar disto, ao próprio corpo. Você não sabe nada disto, nem amor você
conhece, porque cheia de razão como é, racionalizando tudo e sempre, não vai se
permitir dominar por um sentimento, que, na maioria das vezes, nos retira o próprio
eu para que outro dele se aposse. Olhe razão: deixe-me em paz com esta história
de saber.”
Olhou-se outra vez no espelho,
tirou o vestido, vestiu uma calça grossa e uma blusa folgada, que não lhe
deixasse qualquer marca, calçou o tênis, foi subir a serra, descarregar a raiva
e recobrar as energias, afinal, o tempo lhe deixara mais uma marca, a da
responsabilidade, e por ela, ela tinha de se cuidar, de tentar viver da melhor
maneira possível, ainda tinha dependentes, ainda não podia fazer o que lhe desse
na telha, o melhor mesmo era tentar baixar as taxas, e se foi.....
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