Acorda pensando na sua vida; como
se isto fosse uma grande novidade! Ela vive pensando na sua vida e na de tantos quantos a
rodeiam. Reza, pede a Deus por todos, e, num gesto, leva à mão ao crucifixo que
carrega no pescoço: é um crucifixo de ouro cravejado com pequenas pedras verdes(verdadeiras), que lhe foi dado de presente e, desde o dia em que o ganhou, e lá se vão anos, está ali no pescoço, só sai dele quando a sua dona vai fazer ultrassonografias ou
outro qualquer exame, ou ainda quando vai para a acupuntura. É um companheiro e
tanto, pois, mesmo com a beleza da peça, que é mesmo uma joia, a sua
representação é o que mais vale, por isso mesmo o gesto de levar a mão ao
pescoço e pedir a ajuda tão necessária.
Quem lhe deu esta joia, também
lhe deu a pulseira de ouro que carrega no braço esquerdo junto ao relógio, que
também, por incrível que possa parecer, é um dos muitos presentes que recebeu da mesma pessoa,
O seu pensamento já não está mais nos outros, e sim nela, porque num gesto
quase que automático passa uma perna na outra e sente a tornozeleira, uma correntinha
de ouro com um trevo e uma figa, que, por mais estranho que possa parecer,
também lhe foi dado pela mesma pessoa.
Sorri e passa a mão pelas
orelhas, e nota que também ali a presença da pessoa se faz presente, está com
um brinco de ouro com pedras azuis, que também lhe foi dado pelo mesmo presenteador.
Pensa: Como alguém pode esquecer
outra carregando em si tantas lembranças; quanto pior quando, algumas delas, a
exemplo da tornozeleira, lhe foram oferecidas após, ela e o presenteador, estarem separados, e ela recebeu, simplesmente, porque ele soube que a antiga fora perdida, que, por acaso, também lhe foi presenteada pela mesma pessoa.
Lágrimas escorrem pelo canto do
olho. Sim, por que tudo tinha de acontecer? Para que uma pessoa que faz questão
de estar tão presente causou uma tão grande ausência, um vazio enorme num peito
aberto ao amor.
Que estranha maneira de se fazer
presente é esta, quase se tatuando no corpo de outrem! Que estranha maneira é
esta de alguém sofrer por outrem deixando que a sua presença se encrustre em si
desta maneira.
Não tira nunca as coisas, parece
que tem medo de perder este contato, de retirar uma tatuagem que lhe deixará
marcas feias, que sempre lhe lembrarão do que estava tatuado ali, quanto pior,
se as tatuagens eram perfeitas, coloridas e lindas, as marcas da sua retirada
serão feias, vão parecer queimaduras na pele, vão mesmo é deixar marcas
indeléveis perenizando uma ausência presente.
Tenta parar de pensar nisto, mas
é impossível. Tenta lembrar-se da sua casa, e aí nota que isto não vai afastar
o pensamento e nem a presença de quem quer esquecer. A sua casa está tão cheia de lembranças
quanto o seu próprio corpo. Na sua sala
a televisão que lhe traz o mundo para dentro dela lhe foi presenteada pela
pessoa. O aparelho de som onde ouve as suas músicas preferidas, que lhe fazem
sonhar, também lhe foi oferecido pela mesma pessoa. Os próprios discos, uma
grande maioria deles, também são pequenos mimos, enormes nos seus efeitos,
quando lhe levam a recordar momentos tão felizes, mas que se foram, embora
fiquem ali perenizados por vontade de ambos, talvez inconscientemente por ele,
Tony Bennet, Bossa Lounge, Al Jarrou, Emilio Santiago, Andrea Boticceli, Zeca
Pagodinho, Djavan, Gloria Stefan, tantos, tantos outros, e tantas recordações.
Pois é, o som que toma conta do
coração e da casa entra por todos os seus poros, ela se arrepia só de pensar
nisto e de lembrar que, quando ouve as músicas, na sua grande maioria, quando está só, o faz deitada numa rede
que lhe foi trazida pela mesma pessoa, em alguma das muitas viagens que faz ao nordeste. Todas as redes da casa. É incrível! Eela pensa:
são mais de cinco, e todas, sem exceção, chegaram a casa através dele.
Desiste de lembrar-se de mais
coisas, mas a sua casa não tem somente sala, e ela se lembra das taças de
vinho, ali a hegemonia dele é mesmo gritante, tudo ali lhe foi trazido por ele,
que também é quem, quando aparece, leva o conteúdo das taças, mas não é só isto
que, na cozinha, acusa a sua presença que se impõe de todas as maneiras. Os
pratos brancos que substituíram os que foram quebrados, pratos iguais aos que
tinham enquanto juntos e moravam na mesma casa. Não só os pratos, há também o
abridor de garrafas, as facas grandes, o facão, os belos pratos de servir refeições.
Dentro do freezer esta o bacalhau especial trazido do mercado municipal de São
Paulo. Na despensa o palmito, ele sabe que ela gosta e faz estes mimos.
Quer não pensar, quer não fazer
mais nenhuma associação da ausência presente que se impõe todos os dias na sua
vida, mas é impossível. Agora, mais de que nunca, ele vai estar presente, mesmo
quando ela não estiver em casa, quando sair dela para procurar alguma diversão,
procurar deixar de ficar tão doída com tantas lembranças e com tanta presença, Sabe
que não adiantará nada a fuga, pois o que vai proporcionar este distanciamento
da casa onde a presença é tão grande é exatamente um carro que, se não um
presente, é uma doação condicionada, uma espécie de usufruto de bem móvel,
porque é dele.
Não consegue mesmo entender, não
sabe por que uma pessoa pode, faz questão, de se fazer tão presente e, ao mesmo
tempo, ser uma ausência tão grande que leva a outra a duvidar que isto exista ou
existiu mesmo. Não! Isto é mesmo real, a
pulseira, o crucifixo, a tornozeleira, o brinco, as tatuagens da alma, tudo
isto é muito real, muito presente.
Não sabe o que fazer; pega no
crucifixo e solicita a ajuda de Deus, e, neste momento,percebe: ironicamente,
está vestida com um pijama que era dele!!!!!!!! Tem de gargalhar mesmo. É o que faz
no seu solitário quarto do outro lado do Atlântico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário