Mercado Municipal SP |
Estava ela sozinha; se dirigia ao Mercado
Municipal e depois iria, mais uma vez, cruzar a Ipiranga, ali onde ela
confronta com a Avenida São João. Iria ao Bar da Brahma, ia tomar o chopp e
comer a feijoada tradicional do dia de sábado. As coisas agora estavam
diferentes, nunca estivera no Bar da Brahma durante o dia, só ia ao final da
tarde e ficava ouvindo o piano, lá em cima no primeiro andar. Gostava disto.
Ficava sentada à mesa ao lado do piano, porque assim poderia pedir músicas ao
velho pianista, que ainda usava o terno, possivelmente, do último casamento.
Era um senhor dos cabelos ralos, bem magro e que fumava muito. Naquele tempo
ainda se fumava, sem qualquer constrangimento, dentro dos bares.
Tinha uma sensação esquisita. Seria
saudade? O pensamento logo se dissipa, não poderia ter saudades, pois quem a
levou até ali outrora, certamente, tinha levado tantas outras mais, portanto
não precisava ter qualquer tipo de sentimento, quanto pior, saudades.
Entretanto não quer falar do bar da
Brahma, quer falar mesmo é do acontecido no caminho para ele.
Baião de dois |
Frutas - SP |
Entrou no metro soltou na Estação da Sé,
pois queria ir ao Mercado Municipal, onde efetivamente foi. Queria ver os bares
do primeiro andar, olhar os vitrais do mercado, as frutas arrumadas mostrando a
sua exuberância de cores e diversidade de origem. Ficava encantada.
Deliciava-se sozinha nesses lugares, sempre foi assim. Adorava passear pelos
mercados. O de São Paulo então, com toda a sua imponência e beleza era um dos
preferidos. Lembrou-se da Ribeira, ou seja, do Mercado da Ribeira em Lisboa,
fraco em relação ao de São Paulo. Fez uma comparação com o de Barcelona, talvez
mais “internacional” de que ele, mas não mais bonito.
Não só gostava de Mercados, como também de
feiras livres, não tinha qualquer preconceito em fazer tais passeios em dias de
sábados e domingos, sempre adorou a fartura, a diversificação, as cores dos
alimentos.
Bacalhau-SP |
Bom, estava ali no Mercado olhando, o bacalhau. Lembrou-se que alguns portugueses que vieram ao Brasil
lhe disseram que não encontravam bacalhau bom, que os que aqui vendiam eram
amarelados. Certamente não estiveram no lugar certo, porque aqui tem bacalhau
que nada deixa a desejar ao bacalhau que se compra em Portugal, muito pelo
contrário.
Foi exatamente nesta barraca do mercado
que tudo teve o seu início. Estava sozinha e não tinha com quem comentar o
preço do peixe, e aí deve ter falado alto da exorbitância do valor do pacote de
bacalhau embalado a vácuo. Quando fez o comentário ouviu:
- Realmente é muito caro, mas não se acha
um filé de bacalhau assim toda hora.
Virou-se para olhar quem fizera o
comentário:
Um homem alto, moreno, de cabelos
prateados estava ao seu lado. Usava óculos escuros e ela não lhe pode ver os
olhos.
Comentou alguma coisa, mas saiu do local
dirigindo-se a outra banca que vendia bacalhau
Ah, este sim, este esta bom e o preço era
um pouco inferior ao do outro. Pediu 2 kg e ia pagar a bagatela de 140,00
(cento e quarenta reais)
- Bem que eu podia ser convidado para o
banquete.
Virou-se novamente, e para sua surpresa o
mesmo homem estava ao seu lado.
- Sorrindo disse. Impossível, este
bacalhau vai para muito longe
- Distância não é problema se o convite
for feito. O riso de dentes perfeitos iluminou o rosto daquele belo homem.
- Rindo, diz que é realmente impossível.
- Como impossível? Quem tem de saber se é
impossível ou não sou eu que vou ser convidado, pois quem vai ter de se
deslocar, procurar endereço, ir até o local sou eu.
Novamente um sorriso. Paga o valor do
bacalhau, coloca tudo na bolsa e continua andando pelo mercado, perambulando
só, pois não ia comprar mais nada, afinal estava mesmo indo era para o Bhrama.
Para aqui, ali, olha uma fruta com o nome
estranho. Compra 100 gramas de gengibre desidratada, come uma, uma maravilha.
Percebe, pelo canto do olho, que o homem lindo dos cabelos grisalhos lhe
acompanha.
Apressa-se, tem de chegar até, pelo menos,
as três no Bhrama, pois queria mesmo comer a feijoada, estava com saudades da
couve, da laranja, dos pés de porco, dos embutidos.
Anda rápido para a saída, tá meio perdida,
pois não sabe que lado seguir.
- Para onde você vai?
- Quase grosseiramente volta-se e diz:
- Com certeza não é para o mesmo lugar que
o senhor.
- Quem sabe? Se você disser onde vai posso
estar indo para o mesmo local. Uma coincidência ou uma estratégia: fica por
conta do destino.
Acelera o passo. Na verdade não queria dar
trela aquela conversa mole, ia almoçar sambar, beber, não havia lugar para
devaneios, mudanças de planos.
O homem continua a seguir-lhe.
- Diga aonde vai? Possa ser que eu encurte
o seu caminho. Estou vendo que você não é daqui, posso mesmo te ajudar.
- Não obrigada, sei perfeitamente onde vou
e como chegar, portanto...
-Não seja assim, você esta sendo grosseira
com alguém que quer apenas lhe ajudar e ter o prazer da sua companhia
- Que grosseira o que? Só não quero ser
incomodada.
Segue quase correndo em direção à Sé.
De repente pensou. Poxa queria ver direito
a cara deste homem, e só havia uma possibilidade, parar e olhar mesmo para ele,
e foi que fez.
O homem era mesmo lindo. Moreno, dentes
brancos e bonitos, boca desenhada, nariz fino, cabelos grisalhos. Não viu o
olho, ele continuava usando os óculos escuros.
Com a sua inesperada reação, o homem fica
parado e, parecendo ler os seus pensamentos, tira os óculos e lhe estende a
mão: Roberto Garcia.
Ela, não tendo saída, também estende a mão
e lhe diz o seu nome.
Surpreso ao ouvir o sobrenome lhe pergunta
qual a origem do apelido, ela diz que é da família do seu pai. Passam alguns
minutos conversando sobre os apelidos, sobre a família, sobre terras distantes.
O gelo foi quebrado, e o homem pergunta se pode, agora, lhe acompanhar.
- Tá bem, mas para onde vou agora não sei
se é mesmo o seu caminho, portanto...
- Se você não disser para onde é, não
posso saber se é ou não caminho.
-Vou ao Bar da Brahma.
- Como? Você vai para onde?
- O que você ouviu; Bar da Bhrama
- Não posso crer, pois estava mesmo fazendo
hora no Mercado para encontrar alguns amigos para ir exatamente ao Brahma.
Vamos comer a feijoada e ouvir música.
- Sim, e cadê os seus amigos?
- Eles sabem que se não me encontrarem no
Mercado me encontram lá no Bar.
Praça da República-SP |
- Ela se deu conta que já estava quase na
Praça da República, vinha conversando e não percebera que chegaram rapidíssimo.
Outro momento de nostalgia pura, olhou
para o Hotel em frente ao Bar, rememorou muita coisa. O amor, a amizade, o
prazer de estar ali acompanhada de alguém que muito quis, e que pensava que lhe
queria, mas não podia ficar triste, não podia demonstrar esta saudade assim a
um desconhecido, que, entretanto percebeu uma modificação na sua voz.
- O que foi? Aconteceu alguma coisa?
Parece que você ficou triste repentinamente?
Praça da República-SP |
- Não, apenas não consigo perceber como
deixam esta cidade ficar desta maneira. A Praça da República tão suja deste
jeito, drogados por todos os lados, a água dos lagos turva de uma maneira que
não se pode ver os peixes, enfim, o descaso do poder publico em relação ao
patrimônio público.
- Não acredito que este tom melancólico
seja só por isso. Acho que tem algo mais de que isto? Vamos lá, diga o que se
passa com você.
- Nada, nada mesmo, é melhor entrarmos,
pode ser que o seu pessoal já esteja ai te esperando, por outro lado tenho de
arrumar um lugar para ficar, pois estou sozinha como você pode ver, e não vou
encontrar quem quer que seja aí dentro.
Roberto, procurando sua mão disse:
-Você só vai estar sozinha aqui se quiser.
Você pode ficar comigo e com os meus amigos, eles não vão se importar de
nenhuma maneira, mas se você não quiser estar com eles pode ficar comigo
sozinho, o que até prefiro, pois quero conhecer bem esta mulher que traz tanta
tristeza no olhar.
-Ela sorri e diz que não vai ficar com
ninguém, que já estava acostumada a estar sozinha e que isto não era problema.
Ele insiste e segura a mão dela e vai
entrando.
O bar esta um pouco diferente dos tempos
de outrora, quando ela vinha para o happy hour, mas nada que o desfigurasse
tanto e não a fizesse retornar a um tempo que já podia ter sido apagado da
memória, mas era impossível, aquele lugar realmente lhe trazia muitas
recordações mesmo, recordações boas, que insistiam em lhe fazer ter saudades.
Era completamente impossível não voltar no tempo.O mesmo trio tocava as
mesmas músicas de antes, lágrimas escorreram no seu rosto. Num gesto
inconsciente apertou a mão que segurava a sua, o que fez com que Roberto lhe
olhasse.
Bar Brahma |
-O que há? Por favor, diga o que você tem?
Por que tanta tristeza? Fazendo estas perguntas toca-lhe o rosto tentando
limpar-lhe as lágrimas.
Não adiantava, as lágrimas insistiam em
correr, era impossível tentar reter esta emoção. Vira-se para Roberto e diz:
-Não adianta, não vou ficar aqui, pensei
que seguraria esta emoção, mas ela é forte demais. Vou embora.
- Vai nada. Seja lá o que for, você vai
superar isto. Vamos entrar de uma vez. Vamos ficar um pouco na varanda depois
entraremos para comer a feijoada e dançar um pouco. Você está muito linda e
precisa ser vista, admirada, todos tem de lhe ver e quero fazer inveja aos meus
amigos por estar com uma bela mulher como você.
- Sorriu, tentou enxugar as lágrimas,
embora soubesse que a cada passo recordações outras viriam. Era como se
estivesse revivendo momentos muitos felizes, eles insistiam em lhe mostrar o
quanto ainda o passado estava presente em si.
A mão forte de Roberto apertava a sua,
parecia querer lhe dar força, lhe dar a segurança que ela precisava para entrar
ali, estar ali, ficar ali. Podia ser aquele o momento muito importante para
quebrar tantos elos que a ligavam a um passado que tinha de ser esquecido,
pensando bem, aquele homem tinha caído do céu. Devia ser um anjo enviado de
Deus exatamente para cumprir esta missão junto a si,
Entrou definitivamente com passos fortes,
altiva, segura, como costumava entrar ali outrora.
- Ei, Roberto. Alguém chama. Ele vira-se e
lá estão uns cinco homens, quase todos da mesma idade, uns cinqüenta e poucos
anos. Todos com boa aparência e sozinhos.
A mão sente uma pressão mais forte, era
como se ele quisesse lhe dizer. Vamos lá, não tema nada, eles não vão fazer
mal. Eles se encaminham para o grupo.
Realmente ela notou a impressão que
causava. Os cinco parados com uma cara de interrogação que chegava mesmo a dar
dó. Ela percebeu isto, embora eles pensassem que evitaram o efeito surpresa,
mas efetivamente não conseguiram
- Esta é Jade, uma velha amiga que
encontrei no Mercado quando me afastei de vocês. Ela vai ficar conosco, pois
está sozinha aqui em São Paulo. Ela não queria, mas eu lhe disse que não havia
problema algum, ato continuo foi lhe apresentando a cada um deles, que lhe
apertavam a mão e apressavam-se em dizer que não tinha problema algum.
Velhos músicos do Brahma |
- A música tocava, os copos de chopp
esvaziavam, enchiam, um turbilhão de pensamentos passava pela cabeça dela, que
tentava disfarçar todas as emoções. O seu corpo, de vez em quando tremia, tinha
um arrepio, e a mão que estava segurando a sua, fazia uma pressão maior.
As horas passavam, o chopp já começava a
fazer o seu primeiro efeito, ela tinha de fazer xixi. Falou com ele que iria ao
sanitário.
- Eu te acompanho. Não quero que ninguém
pense que você esta sozinha aqui
- Não precisa, sei o caminho, é rápido.
- Nada disto. Não vou dar chance ao
destino. Já te encontrei, agora não deixo você mais nunca na minha vida,
Esperei durante 57 anos para encontrar você, idealizei tudo, os cabelos
encaracolados, a cor da pele, o corpo, a maneira de vestir, de andar, de
chorar, a agressividade, tudo. Estou preparado para você e não vou deixar nunca
que você saia da minha vida, portanto eu vou com você ao banheiro, todos têm de
saber que você esta comigo e que é “minha”
“ “Minha”, tá doido homem. Sou de ninguém
não. Não pertenço a ninguém e detesto esta possessividade. Tenta tirar a mão
que lhe prende, mas ele não permite.
Pede licença aos amigos e diz que vai
acompanhá-la até o sanitário. Ela não tem outro jeito que não segui-lo. Ele vai
à frente abrindo o caminho na multidão. Ela o segue, ainda resmunga o “minha”,
mas vai, começava a gostar daquilo, do jogo, da sedução, do momento.
Chegam ao banheiro e ele vai para o masculino.
O dela tem fila, tem de esperar muito. Quando finalmente, depois de uns vinte
minutos, sai do banheiro ele está ali, esperando sorridente:
- O que houve? Parece que você estava
mesmo carregada não?
-Claro que estava, mas a demora foi porque
todas as mulheres parecem ter resolvido ir ao banheiro juntas, no mesmo
momento.
Ele torna a pegar na sua mão e vai, de
novo, na frente abrindo alas. De repente ele se vira para ela e puxa-a para si
num gesto tão rápido que ela sequer pode esquivar-se. E ali, no meio daquele
turbilhão de gente, de pensamentos, de saudades para ela, eles trocam o
primeiro beijo de uma relação que duraria para o resto das suas vidas.
Quando chegam junto dos amigos todos
sorriem, parecem saber o que esta se passando entre eles.
Uma sensação muito boa a invade. Sente,
naquele momento, que tudo tinha acontecido no tempo certo, que ela precisava
ter retornado ali, onde vivera tantos momentos bons, para ter a certeza de que
o passado tinha ido para o seu lugar, aliás, onde sempre esteve, e que, um
grande amor estava mesmo para começar. Deixou-se levar.
Um ano depois deste encontro mudou-se para
São Paulo. Está feliz. Vai muitas vezes ao Brahma, já não chora de qualquer
lembrança, agora se lembra apenas de viver, viver a vida e agradecer a Deus por
ter voltado a esta cidade e ter ido ao Brahma, local onde, por duas vezes,
viveu e ainda vive, um grande e imenso amor.
S A Ú D E
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