domingo, 27 de março de 2011

Uma referência

Atravessou o Atlântico há três anos, não antes de ter percorrido muitos kilometros em diversos sítios do outro lado. Diversas vezes esteve em Cascais, Estoril, Sintra, Almada, Porto. Andou pelas ruas, ladeiras e escadarias de Lisboa. Desceu muitas e muitas vezes a escadinha de Carnaxide, umas vezes calmamente, outras vezes correndo para não perder o horário do “autocarro”. Chamava atenção pelo brilho, pelo lacinho que trazia sempre consigo
Quantas e quantas vezes andou pela Rua Augusta, soberana, vaidosa, sabendo que chamava atenção.
De tanto fazer sucesso, foi procurada inúmeras vezes, pois queria uma sósia urgente, porque quando ela acabasse, estivesse no seu final de vida, dando os últimos suspiros, poderia ser substituída, infelizmente, ou felizmente, porque depois entendeu perfeitamente que seria insubstituível, porque uma sósia jamais passaria ou viveria as emoções que viveu e os fatos que presenciou.
No comboio, no metro, nas calçadas da Cidade Universitária, nos corredores da Faculdade de Letras e na biblioteca da Faculdade de Direito, deslizava silenciosa, era cúmplice do silêncio e se esforçava mesmo para não incomodar ninguém, o que não era muito difícil, porque era levezinha e parecia mesmo flutuar.
Bom, mas teve mesmo de atravessar o Atlântico, e o fez, embora guardada, cuidadosamente guardada, para não perder o seu brilho.
Chegou a Salvador, saiu do Aeroporto já com uma ansiedade imensa, queria ficar livre, conhecer outras praças, outras praias, outros lugares; já trazia a certeza, no caminho, que não mais seria a mesma, era impossível. Atravessar os mares e ser a mesma: nunca! Afinal, cada dia é diferente do outro, mesmo que se pense que tudo é igual, há de se notar que sempre há um detalhe que faz com que as coisas possam ser semelhantes, mas, nunca iguais.
Estava demorando muito, ela sentindo a pressão de muita coisa em cima de si. Queria sua liberdade, queria andar, sentir os cheiros, ver pessoas, visitar lugares, o que sempre fizera, e que queria continuar fazendo.
Saiu do Aeroporto de Salvador e sabia que estava sendo transportada para algum lugar, que não era assim tão perto, estava angustiada, nervosa; então ela estava em outras terras e ninguém se lembrava dela, de lhe dar a sua liberdade,fazê-la retornar ao seu ritual, que ela amava de paixão? Que droga!
De repente sente que o carro parou. Sim, ela tinha chegado á algum lugar, percebe que alguém lhe tira de dentro do carro, começa a ficar mais e mais ansiosa. - Para onde me levam? Que lugar é este? Ouço vozes desconhecidas, quem são estas pessoas?
Tudo para, fica quieto; ouve apenas uma batida de porta. Otimista, pensa: - Bom, agora entraram em casa e eu vou ficar livre, vou poder sair deste aperto e vou cumprir a minha função e os meus desejos, que nada tem a ver com a situação que me encontro agora
Engano seu; a porta bateu sim, mas é porque saíram da casa deixando-a presa e sozinha com a sua ansiedade, com o seu nervoso.
Não havia o que fazer, a não ser se acalmar e esperar; felizmente, estava junto de algo cheiroso, mesmo muito apertadinha, estava confortável e apreciava aquele cheiro de perfume masculino.
Espera: o tempo passa, mas nada acontece. Horas passam, parecia uma eternidade, até que, finalmente, LIBERDADE! Retiram-na da sua prisão, ela vê um ambiente onde nunca esteve, é colocada junto à parede. Sente a textura do chão, é diferente de onde já havia pisado. Que lugar seria este?
Reconhece a voz, a respiração de alguém muito próximo, fica menos aflita, estava em ambiente amigo, com certeza.
Vê que alguém procura alguma coisa em uma mala e pensa: - bom, eu já estou em liberdade, mas não quero ser egoísta e desejo que todos os outros, que vieram comigo nesta aventura, fiquem livres, e parece que isto vai acontecer agora, e percebe que muitas coisas são libertadas.
Parece que o dia esta findando! A casa fica muito silenciosa, o quarto onde está, e agora sabe mesmo que é um quarto, fica escuro, vê que a pessoa que mexe nas malas, que fecha as janelas, que sai e entra do quarto, vai deitar, parece muito cansada.
O dia amanhece e ela percebe que a casa começou a se movimentar. Pensa consigo: - bom, agora vão me levar para fazer um reconhecimento do local onde estou, mas percebe que ainda não está na hora, outro companheiro foi escolhido para fazer tal reconhecimento antes dela. Se enfeza, mas fica quieta, sabe que voltará a ter os seus dias gloriosos.
Aconteceu nessa mesma tarde. Junto com a sua companheira, sua dona na verdade, pisa em pedras desconhecidas, caminhos nunca antes trilhados. Sente a textura do solo, duro, pedras mesmo. Há altos e baixos, entra em becos não muito limpos, sente odores novos, percebe que há uma grande diferença entre esse espaço e o que costumava freqüentar, mas não se incomoda muito, afinal é uma aventureira, gosta de coisas novas, de descobrir coisas, de ser feliz com a liberdade.
Ouve vozes, pessoas felizes abraçando a companheira, tão eufóricas que terminam lhe machucando sem querer. Agüenta firme, vai ser notada com certeza, alguém vai lhe olhar e lhe dizer o que sempre ouviu, e o que nunca é demais: Que coisa linda! É muito interessante! Onde você achou isto!
Não demorou muito, aliás, muito menos do que poderia ser: A pisada teve o seu efeito porque quem machucou agora estava preocupado e olha diretamente para si: AH! Espanto!!! - Que coisa linda!
Pois é, comprei em Lisboa, fala a companheira, que também a adora.
Este foi o seu primeiro e glorioso momento em terras outras. Outros mais deveriam chegar rapidamente e as oportunidades surgiam agora aos borbotões.
Foi a Salvador, andava pelas ruas da cidade, sabia que era olhada, tinha a sensação de que, a qualquer momento, alguém ia levá-la consigo. Todavia ela não permitiria, gostava da sua companheira, afinal ela a descobrira e lhe dera esta vida que adorava.
Entra no ônibus para voltar a casa, alguém lhe olha com mais intensidade. - É agora: vão me pegar. O que faço? Como devo reagir? A companheira percebe o interesse e discretamente a puxa para embaixo do banco. Esta protegida, graças a Deus!
É verão, vai ter festa onde mora. Produzida, ela vai para a rua, toca música de carnaval, toca samba, ela vai deslizando no asfalto quente: se mostra, vai para trás, para frente, de um lado para outro, sabe que chama atenção e adora isto.
O asfalto esquenta o que já estava para lá de quente, sente o suor escorrer, molhar tudo, mas não se intimida, quer experimentar todas estas novas sensações.
Encontra amigos, que a olham maravilhados. Vê uma mulher que diz à companheira: - Você desliza mesmo no asfalto não é? Fico impressionada quando você passa sozinha embora com todas estas pessoas junto de si, mas é como você estivesse saboreando os momentos sem se preocupar com ninguém. É isto mesmo, é assim que ela sente, ela e sua companheira são assim, se entregam, sentem, parecem sentir mais de que os outros as emoções.
Os dias passam, ela agora já tem material para fazer a sua história deste lado do Atlântico, neste em que esta agora. É diferente, é outra vida, outra cultura. Aqui a segregação (pretos e brancos) é menor. Todos a apreciam, independentemente da cor; somente a sua própria cor é que realmente chama atenção. Brilha onde quer que vá, é alvo de comentários, é elogiada, e se mostra, se amostra mesmo, gosta disto.
Um dia, andando vagarosamente com a companheira pela praça da cidade, ouve um amigo dizer-lhe : - “Rapaz o seu pé é uma referência nesta cidade”. Se sente a gloriosa, estão falando dela. O papo continua: - “Quando a gente vê você olha diretamente para o seu pé, porque é mesmo uma referência nestas festas daqui”.
Está para lá de feliz.
Vai a uma outra festa popular, desta vez em Itapoã: ela e sua companheira. Um amigo se aproxima e diz: - Que maravilha? Onde você consegue estas coisas de tanto bom gosto? Sua companheira diz: - Foi lá em Lisboa, na Zara de Lisboa, tenho procurado outras, mas não acho mais.
Mais adiante, já cansadas, ela e a companheira sentam. A companheira lhe deixa mais a vontade, ela precisa respirar direito, está molhada de suor, na verdade ensopada. Um homem aproxima-se delas, senta ao lado, rapidamente a companheira lhe coloca no seu devido lugar. Sente o chão de areia e sente a proximidade da pessoa que chegou, que fica ali, numa conversa mole danada. A companheira, mais uma vez, lhe deixa livre, lhe deixa respirar. O homem olha diretamente para ela, afaga os pés da sua amiga, mesmo sem retirar os olhos de si. A companheira diz para ele largar o seu pé, está com chulé. Ela se sente ofendidissíma, então ela ia ter chulé, ia ficar mal cheirosa. Que é isto companheira? Aí vem o inesperado: o homem diz a companheira, você não tem chulé; você esta é suando muito, dizendo isto lhe pega e lhe cheira e completa: que cheiro bom de vida, aliás, é uma combinação perfeita, você e a sua companheira: você fica parecendo uma princesa.
Ela se sente gloriosa, sempre recebeu elogios, mas nunca assim, tão calorosos, tão sentidos, tão gostosos, tão afáveis.
Pisa mais forte na volta a casa, afinal, fora mesmo afagada por outras mãos que não a da sua companheira e amiga.
Os dias passam, a companheira volta a cruzar o Atlântico, ela fica aqui, aguardando a sua volta. Fica triste, bem verdade, mas sabe que já não agüenta fortes emoções, além de saber que a sua companheira quer preservá-la, quer lhe prolongar a vida, lhe dar mais emoções, guardar a sua relíquia.
E é o que acontece, fica guardadinha, mas, todos os anos, durante o verão, ela sai do seu armário, folgosa, brilhante, com todo o seu fulgor, arrancando, por onde passa, as recordações das suas passagens pela cidade, recebendo elogios de todos. Vem lutando para sobreviver, sabe que o seu fim está próximo, mas resiste, não quer dar o braço a torcer, não quer ser aposentada, não quer ser velha, não quer ser inútil, e aceita que a companheira lhe dê cuidados, que outrora não admitiria. Esta ali, cansada, andou muito ontem, pulou, sambou, se molhou, se mostrou. Um amigo falou de si para outros amigos, cinco pessoas, de uma só vez, lhe olham e balançam a cabeça afirmativamente, porque concordam com a apresentação feita.-  São lindas não são? O seu pé fica lindo, tão pequenininho, tão certinho, pés de princesa.
Sim, quem faz este pé de princesa, quem faz a referência do pé da minha companheira sou eu:

Descansando
Em plena atividade

    As
                          Sapatilhas


         Douradas
  


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