Estava eu a ver a novela Caminho das Índias que demonstrava o costume indiano de os pais do noivo serem presenteados pelos pais da noiva, que também deveria levar consigo uma boa quantia. Não posso imaginar no Brasil um costume deste, acho que estaríamos, 80% das mulheres, solteiras, caso este fosse um costume da nossa sociedade. Felizmente não é, penso eu, pois nunca me deparei com uma situação desta, até porque, se assim fosse, seria mãe solteira.
Brincadeiras a parte. Estudando os usos e costumes de Moçambique para efeitos da complementação da tese de doutoramento, que tem como tema central a Aplicação da Justiça nas Colônias portuguesas, especificamente em Moçambique, deparei-me com um costume denominado LOBOLO.
Contrariamente ao que aparece na novela Caminho das Índias, entre as etnias Moçambicanas quem efetivava o pagamento do “dote” era o homem. O homem, na verdade, pagava pela mulher com quem iria se casar. Por ela, ele pagava aos pais uma determinada quantia, que variava de acordo com a região e etnia dos noivos, esclarecendo-se de logo que em Moçambique, no tempo colonial, a poligamia era aceita e que um homem, se dinheiro tivesse, poderia comprar tantas mulheres quanto pudesse, bastando, tão somente, fazer o pagamento do “lobolo”, que poderia ser, tanto em dinheiro, quanto em outros bens, sendo muito regular a entrega de certo número de cabeças de gado, e que o estudo feito remonta ao Século XX – 1900-1910
De acordo com Gonçalves Cota (1944:223) “as famílias patriarcais equilibram a perda duma filha que casa recebendo por ela dinheiro ou quaisquer valores econômicos que lhes permitem adquirir outra mulher para um filho que ficará sob autoridade do pai e o auxiliará; as famílias matriarcais não adoptam êste sistema, mas também conseguem o mesmo equilíbrio adquirindo para o seu grupo, em vez desses valores compensatórios, o proprio noivo que trabalhará para casa e ficará sob autoridade dos sogros.”
Vê-se, pois, que em Moçambique existiam dois sistemas familiares: o matriarcal e o patriarcal, sendo que o lobolo, o pagamento de uma compensação pela saída de uma filha do convívio da família, só acontecia na família patrilinear, porquanto na matrilinear era o homem que passava a conviver na casa da família da mulher, ajudando nos serviços para a manutenção da própria família: tomar conta do gado, se houvesse, arrumar madeira para as fogueiras, etc.
O “lobolo”, valor pago pelo pretendente a marido não pertencia à jovem que iria casar, ficava pertencendo à sua família, e seria utilizado pelo pai, caso ele tivesse filhos homens, na compra da mulher para estes, somente no caso de não existir filho varão, éque opai podia gastar o valor do lobolo com outro fim.
De acordo com Gonçalves Cota, (1944:227) houve casos em que os pais não respeitaram esta regra e com o dinheiro do lobolo da filha compraram uma nova mulher para si próprios.
O pagamento do lobolo gera uma série de consequências, que inclui a devolução do mesmo em diversos casos:
a) Quando a mulher comete adultério;
b) Quando abandona o marido;
c) Quando não procria;
d) Quando não cumpre os deveres conjugais.
Em todos estes casos o lobolo tem de ser devolvido ao marido, existindo vários “milandos” solicitando tal devolução. “Milandos” eram as questões entre indígenas submetidas ao julgamento das autoridades administrativas portuguesas, que eram responsáveis pela aplicação da Justiça aos indígenas, assim identificados desde o ano de 1894 pela lei, Decreto de 20 de Setembro de 1894(D.G nº 220 de 28.09.1894), como sendo “os nascidos no ultramar, de pae e mãe indígenas, e que não se distingam pela sua instrucção e costumes do commum da sua raça” (Art. 10º do Regulamento de 28.09.1894). A estes deveria ser aplicado um ordenamento jurídico diverso daquele que era aplicado aos portugueses.
Naturalmente que os portugueses não poderiam aceitar a poligamia, afinal eram cristãos e a lei civil punia o adultério e, portanto, não se poderia dar qualquer “status” de português a pessoas com costumes tão bárbaros, como eram identificados os usos e costumes dos indígenas, mui principalmente a poligamia, tanto que, quando em 1917 foi exigido o Alvará de assimilado,através da Portaria Provincial de nº 317 uma das exigências era que o pretendente a assimilado adotasse a monogamia; os outros requisitos eram: saber ler e escrever a língua portuguesa, ter meio de subsistência e viver afastado dos usos e costumes dos indígenas.
Mas voltando ao lobolo, que de acordo com JEFFREYS (1951:53) é o preço da criança e não o da mulher, pois segundo ele com o pagamento do lobolo o marido adquire o direito de ficar com os filhos: “a criança torna-se sua quando ele paga para transferir o seu “status” de membro do grupo da mãe para o seu próprio.
A discussão se o preço é pela mulher ou se pelas crianças no momento não vai ser objeto deste artigo, que quer discutir as causas que determinavam a devolução do lobolo e como os administradores das diversas circunscrições civis em Moçambique resolviam as questões que lhes eram postas tendo como causa de pedir a devolução do pagamento efetivado aos pais da mulher.
Nos casos de adultério, que somente poderia ser praticado pela mulher, dado que o homem era polígamo, se fazia necessário a devolução do lobolo, fosse qual fosse o tempo que durou o casamento. Os pais da mulher, ou os seus sucessores, tinham de devolver o preço pago por ela, ficando os filhos havidos no período do casamento com o homem.
Nos casos de abandono do lar, também aqui o lobolo era devolvido, e no caso de haver filhos, estes, também podiam ser requisitados pelo marido.
Em todos os demais casos acima indicados, o lobolo tinha de ser devolvido, e se isto não acontecia, os pais da mulher tinham que fazê-la voltar a viver com o “marido”, ou tinham de dar outra filha ao homem, mui particularmente nos casos de não procriação, ou seja, o comprador da mulher tinha que ter a sua mercadoria à disposição. Observe-se que o importante não era a mulher em si, e sim a satisfação do homem que a adquiriu.
Ha casos interessantes que foram submetidos aos administradores portugueses, valendo esclarecer que, antes os “milandos” eram resolvidos pelos régulos, mas os portugueses retiraram daquelas autoridades tradicionais muitos dos seus poderes, com o fim de enfraquecê-las, e distribuíram estes poderes aos administradores, que, se analisarmos pelo lado português, não tinham qualquer formação “jurídica” para se tornarem aplicadores da justiça, e pelo lado do indígena, pior ainda, porque eles não conheciam os costumes desses e, na maioria das vezes, aplicavam um direito hibrido, que não era uma coisa nem outra, nem os usos e costumes dos indígenas, que era mandado observar pela própria Constituição Portuguesa, e nem o direito português, que não admitia a poligamia, nem conhecia o lobolo, não tinha a divisão da família em patrilinear e matrilinear. Para a resolução dos “milandos” os administradores se serviam das informações dos próprios régulos, dos chefes de povoação, cabos, etc. e, ainda de alguns relatos feitos por “portugueses” encarregados de estudarem os usos e costumes indígenas e mais de alguns dispositivos legais, a exemplo do Capítulo III do Regulamento das Circunscrições(BOM nº 40 p. 428).
O fato é que o “lobolo” causava muitos problemas quando tinha de ser devolvido:
Em 1905, por exemplo, uma indígena filha de outro indígena de nome Zambe fugiu da companhia do seu companheiro de nome Mufana Maze, este, então, decidiu “fazer milando” e deu queixa na administração do distrito de Gaza, pedindo a devolução do lobolo e mais a devolução da filha havida no período do casamento. Todos foram ouvidos, o pai da indígena fujona, o querelante, o atual marido da indígena e a própria indígena. Restou apurado que, o Mufana Maze e o pai da indígena estavam mancomunados: o primeiro para receber dinheiro do atual marido, de nome Dambambe, que inclusive, tinha tido relações carnais com ela antes mesmo que ele a vendesse para o querelante, sendo ele o verdadeiro pai da filha da mulher, e o segundo para ter a filha e poder vendê-la. Também restou esclarecido que ele indenizou o primeiro marido, a quem entregou a quantia por ele paga ao pai da indígena. Foram condenados o querelante e o pai da indígena no pagamento de multa e prisão. O primeiro por mentir e querer tomar a filha para vendê-la, e o segundo por vender a mulher a duas pessoas diferentes. (AHM- FDSNI Cx 148- Milandos e Queixas Diversas- Gaza 1905).
Também em 1905 foi registrada uma queixa sob nº 8, no mesmo livro acima identificado, tendo como Querelante o indígena de nome Juelemane de Minhangane (minhangane é o nome do regulo das terras onde o indígena vivia e sempre era usado seu nome para identificar de onde o indígena pertencia) contra Maguibene, também de Minhagane. Diz o primeiro que o segundo era seu tido e recebeu o dinheiro do casamento das suas duas irmãs, que ficaram com ele, sob a proteção do tio, mas este gastou todo o dinheiro. Esclarece que as irmãs foram vendidas pelo seu pai quando ainda eram crianças. Que o tio tem de lhe entregar 5 cabeças de gado e mais 3£ que ainda faltam para completar todo o valor do remanescente.
Provou-se que o querelante tinha razão e o tio foi condenado a pagar o equivalente ao saldo remanescente em 3 meses.
Nota-se, pois, a variedade das questões que podiam ser suscitadas pelo fato do recebimento do lobolo. No segundo caso apresentado o filho do falecido pai das irmãs vendidas, reivindica o valor recebido pelo tio, pela venda delas ainda quando crianças.
O recebimento do lobolo, pois, pela família da “mulher” na realidade, era um pagamento quase que provisório, uma vez que, caso o casamento por qualquer motivo que ela desse causa, fosse desfeito, ele teria de ser devolvido a quem fez a compra.
Em outro momento descreverei mais “milandos”, uma forma muito interessante de conhecer os usos e costumes dos negros (indígenas) portugueses de Moçambique.
FONTES
AHM – FDSNI – Cx 148
BOM I Série nº2, de 18.01.1917, p. 8
BOM nº 40, de 03.10.1908, p 428
D.G nº 43 de 20.02.1894
D.G nº 220 de 28.09.1894.
Bibliografia
COTA, J. Gonçalves. Mitologia e Direito Consuetudinário dos Indigenas de Moçambique, Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1944
JEFFREYS, M.D.W- “Lobolo é o preço da Criança”. African Studies, Vol. 10, nº04, 1951, Trad. De José Carlos D´Almeida e Sousa Marques.
Nenhum comentário:
Postar um comentário