Começava sempre pelo andar mais alto, onde ficavam as varas da Fazenda Pública. Fazia assim, não só por ter poucos processos envolvendo questões fiscais, como também porque, como se diz: “para descer todo santo ajuda”.
Naquele dia tinha uma sensação esquisita: não conseguia se concentrar nas coisas, estava sempre divagando e pensando no companheiro. O que será que estava acontecendo, porque ele estava tão nervoso? Por que passara a semana anterior a questioná-la sobre os dias de audiência, os horários delas. Ele nunca fizera isto.
- Você vai ter audiência na terça feira à tarde? Qual a Vara? Quer que eu faça a audiência para você. Se quiser é só dizer.
- Não, não tenho audiência neste dia e, se tivesse, não deixaria você fazer, porque os processos são complicados e só quem esta acostumado com eles pode saber como conduzir as questões que possam surgir.
A semana passara rápido, o companheiro muito ansioso e preocupado.
Chegara a terça feira, ela, como sempre, foi para o escritório pela manhã levada pelo companheiro, que naquele dia se queixava: - “o meu distúrbio neuro-vegetativo está no auge”
É: era verdade mesmo, o suor frio lhe escorria das mãos. Estava tenso e nervoso. A tensão era tamanha que ela ficara calada todo o tempo enquanto se dirigiam ao escritório.
Vivia com aquele homem há uns bons 18 anos e ainda não o conhecia bem, embora passassem vinte quatro horas juntos. Trabalhavam juntos, almoçavam juntos, dormiam juntos, acordavam juntos, enfim, estavam sempre juntos, não que estivessem sempre um com o outro, mas juntos. Só se separavam quando um deles, por questões de trabalho, precisava viajar, ou em dias de sábado, quando o companheiro ia para o seu ritual semanal. “o baba da praia”. Se ele estivesse em sua cidade natal, nesse dia era infalível, não havia qualquer argumento ou compromisso, ele estava lá.
Já se acostumara tanto com isto que nem questionava nada. Compromissos no sábado, somente após o baba. Ia a praia com os filhos, mas ficava em uma barraca de praia bem longe do local onde ele jogava baba, sempre foi assim.
Já se encontrava no terceiro andar, Varas Cíveis e Comerciais. Um processo na 15ª. O Dr. de nome imenso com quatro sílabas não havia despachado, devia ser muito estafante ter um nome tão pesado. O processo já tinha mais de dois anos, parecia brincadeira; 14ª. – Não doutora, o doutor hoje não vem aqui, não está passando bem.
13ª. Processo concluso para julgamento. Data da conclusão, dezembro de 1984. O homem da gravatinha borboleta e bigodinho fino não fazia nada. Uma petição para o escrivão apresentar o processo para julgamento. O escrivão recalcitra, não queria se indispor com “o gravatinhas”, mas era impossível não receber o requerimento, caso contrário, ele também seria alvo de uma representação.
Era tida como uma “manga azeda”, pois nunca tivera medo de nada, embora tivesse o respeito e a amizade de muitos funcionários da Justiça.
Continua a descer, já está no segundo andar. Vai até a 8ª Vara, gostava do escrivão e dos funcionários. O escrivão, safadamente, lhe paquerava. Ela gostava disto, não lhe dava muita corda, mas gostava dos galanteios. Aliás, ficava mesmo era querendo entender aquilo. Pensava consigo mesmo: Será que este “sacana” não se olha no espelho? Um homem feio, baixinho, que pintava os cabelos, tinha alguma ilusão de que ela o olhasse de outra maneira, que não a profissional. Sorria, neste aspecto tinha jogo de cintura, deixava que ele pensasse que poderia ter uma chance. 7ª. Vara, o escrivão trabalhava com os filhos, um deles problemático e lindo
Na 9ª Vara tinha um juiz que era um poço de vaidade, grosseria e muitas outras qualidades negativas, inclusive falava alto e cuspia em todos quando falava mais alterado, o que era normal. Com ela, entretanto, tratamento “vip”, ela era sua colega em um curso de especialização em processo.
Já eram três da tarde. De repente lembra-se: poxa, tenho de ir à Vara de Família urgente, já tinha me esquecido que Mariana me pediu que procurasse saber a quantas andava o inventário de seu pai. Se não fosse agora não mais seria possível naquele dia.
Vai apressada. Passa pelos corredores do prédio antigo, sobe as escadas chega no segundo andar. O corredor esta cheio e ela segue para o seu destino. Ia falar com a “Roanda” uma daquelas escrivãs que sabem tudo, querem tudo, falam de tudo.
Passando pela porta de um dos cartórios, entretanto, pensa ter visto o seu companheiro, mas estava com pressa e não parou para ver se era ele mesmo. Falava com a Roanda quando parece escutar o nome do seu companheiro e o nome de uma amiga de uma sua irmã.
Pensa: que coincidência! Será que ele tá fazendo alguma audiência para a moça e não lhe disse nada, afinal ela estava se divorciando do marido, podia ser isto.
Sai do cartório e olha o corredor; ninguém, a não ser uma amiga do seu companheiro que não a vê. Ela não gostava muito da peça e, portanto, não tinha qualquer intenção de ser vista e falar com ela.
Continua falando com a Roanda, mas algo lhe futuca. – Saia aí, vá lá à sala de audiência da 2ª Vara de Família.
Acha engraçado este apelo; parecia que ela ouvia mesmo uma voz a lhe dizer isto, uma mão invisível a lhe empurrar. Vê o processo do inventário, faz algumas anotações e sai do cartório.
- Vá na sala de audiência da 2ª Vara. Sim, agora mais nítido ainda, uma voz lhe dizia isto.
Bom, não era todo dia que se ouvia uma voz de “ninguém” mandando fazer alguma coisa.
Vai. Abre a porta da sala:
Surpresa: De um lado o seu companheiro e um amigo comum advogado; do outro lado a amiga da sua irmã e uma advogada bem conhecida no meio forense.
Eles não perceberam a sua entrada.
Olha, mais atentamente, para ver se entendia a situação: O que estaria o seu companheiro fazendo ali, do lado direito da mesa de audiência, no lugar dedicado “ao réu” nos processos, quanto pior, numa vara de família, tendo, do outro lado, na posição do “autor”, a amiga da sua irmã.
Não estava entendendo nada, mas já estava ali dentro e tinha agora de saber o que estava acontecendo. Seu companheiro levanta a vista e vira para o lado onde ela se encontra. Toma um baita susto; fica lívido, branco, lhe olha apavorado, está visivelmente transtornado. O advogado lhe segura o braço firmemente, era como o controlasse para que ele não se levantasse.
A Juíza, percebendo a reação do senhor, olha na direção do olhar dele. O seu olhar encontra com o dela. – Olá doutora, como está a senhora? Todos se viram para ela, que também está pálida, prestes a ter um troço.
Tinha matado a charada. Do lado da mesa onde estava a amiga da sua irmã, junto da bolsa da advogada, estava uma pasta - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ALIMENTOS. AUTOR – uma pessoa com o nome parecido com o do seu neto, - RÉU - o nome do seu companheiro.
Responde ao cumprimento da Juíza, que também era sua colega no curso de especialização em processo. Tem muita dificuldade em manter a calma, a dignidade, a educação. Consegue, mas o seu corpo treme, a voz denúncia o seu estado de espírito.
Vira-se, pede licença, e sai da sala. Não sabe como conseguiu andar até a saída.
Segue em direção a escadas, desce os degraus como se estivesse caminhando para o nada. Não sabe aonde ir, o que fazer. O seu mundo desmoronou naquele instante. O seu luto começara, não tinha noção do que aconteceria daí para frente.
Alcança o hall de entrada. Ela que sempre achara lindo aquele hall suntuoso, hoje parecia não querer atravessá-lo para encontrar a rua, aliás, nem o via, talvez a única coisa que ligava os dois naquele momento era a frieza do mármore que revestia aquele salão. Estava destruída, arrasada, enlutada.
Pensa em voltar. Será que isto é um sonho? Pergunta a si própria. Eu vi isto mesmo? Não! Claro que não. Deve ser alguma confusão. Não pode estar acontecendo.
Vai andando sem rumo, desce a ladeira que vai dar muito longe do seu destino, aliás, um destino desconhecido, que até hoje, uns doze anos após esse episódio, ainda permanece assim.
- Olá doutora? Como está a senhora hoje?
Estou bem, estou esperando começar a audiência da 2ª Vara de Família.
- Não espere doutora. O Juiz hoje não virá. É domingo. E melhor a senhora tomar o seu café. Hoje é dia de visita e a senhora tem de estar bem bonita para receber os seus filhos...
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