quarta-feira, 28 de março de 2018

O dia da chegada - Garcia D´Ávila X


O Sr. da Torre entrou e eu nem percebi, estava tão ocupada com os problemas, que não percebi que ele estava ali, mais uma vez, sentado na minha sala e me observando.
-Sr. Garcia, quantas vezes já lhe pedi para o senhor não entrar assim? Dê um jeito de me avisar, ainda morro de susto.
-Bati na porta, mas estavas tão concentrada no que estas a fazer que não ouviste.
Me dei conta, neste momento que estava com um livro na mão, mas eu não o estava lendo, estava tão preocupada com os problemas que estão aparecendo a cada dia, que o livro estava apenas aberto, olhava as letras, mas não conseguia assimilar nada.
- Estás muito triste, disse o Sr. Garcia.
- Sim, estou, preocupada com meu filho
- O que? Tens filho?
- Qual a razão do espanto Sr. Garcia: tenho filhos e netos.
-Netos?
-Sim senhor, filhos, netos, marido.
-Marido! Duvido. Nunca vejo ninguém aqui, estas sempre só.
-Coincidência, é que o senhor vem em horários que todos estão a trabalhar.
- Não é possível, quantos anos tem?
-Que indiscrição Sr. Garcia, não se pergunta a uma mulher a sua idade.
-Tenho de perguntar-te sim, pra mim és uma menina ainda, não posso imaginar-te mãe, avó. Nada.
-Agradeço a vossa generosidade. Mas tenho tudo isto mesmo. A propósito, me conte um pouco mais sobre Isabel e sobre seus dois outros filhos.
- Por que faria isto?
Para eu saber mais um pouco de si senhor Garcia
- Não quero mexer com isto, todos mortos. Para que me martirizar com estas lembranças? Disse isto e fechou uma cara daquelas, mas ao invés de se picar e me deixar em paz, quedou-se ali sentado, com aquelas botas sujas na minha sala. Se eu não soubesse que ele era uma alma penada, sinceramente, o pau ia comer, como é que se entra na casa dos outros com tanto barro nos pés, sujando a zorra toda. 
Para quebrar o gelo, perguntei-lhe:  Sabe que dia é hoje?
- Dia 29 de março, acho eu?
-EH Sr Garcia, este dia não vos diz nada?
-Não, fazes anos hoje?
-kkkkkkk, eu não, mas a cidade que o Sr ajudou a fundar sim.
-Como? O que dissestes?
-Estou a dizer que a cidade do Salvador está fazendo anos, está comemorando hoje, dia 29 de março de 2018, 469 anos de fundação.
-Estás  louca? A cidade não tem sequer 42 anos, estamos em 1591 e nós chegamos aqui em 1549, onde achaste este número de anos? Não sabes fazer conta? Não me admira, és mulher!
Fiquei piurça com o Sr. da Torre, como aquele fdp adorava humilhar mulheres, que para ele, e todos os homens da sua época, só serviam mesmo para criar filhos, satisfazerem os seus desejos sexuais e manter uma casa arrumada, aliás, com raras e honrosas exceções, ainda se vê isto em pleno século XXI.  Bom, mas ele não ia alterar em nada as suas convicções se eu xingasse, esbravejasse com ele, quando muito me daria umas boas peras (bofetadas) se lhe aborrecesse muito. Rapaz! Descobri que tinha medo daquele fdm.
-Senhor Garcia, o Sr. não quer me falar um pouco da fundação da cidade, de Thomé de Souza, enfim, de como foi a chegada dos senhores aqui.
-Que queres saber?
-Tudo com detalhes.
-E tu, quando aqui chegastes
-A minha chegada não vem ao caso, quero saber da vossa.
-Quando chegastes como era a cidade?
-Sr. Garcia, o que quero saber é da vossa chegada, e não da minha.
A conversa estava pendendo para um lado que eu não queria, se ele encasquetasse em saber a data da minha chegada estava tudo perdido, já pensou eu dizer que cheguei em 1953 e que foi no hospital espanhol, lá na Barra, e que nos morávamos no Garcia, kkkk o homem desta vez não ia me perdoar de maneira alguma, ia cumprir as suas ameaças e me denunciar mesmo  ao Santo Oficio.
-Sabe senhor Garcia, eu soube que os senhores chegaram aqui em Salvador aos 25 dias do mês de março de 1549?
Torre de Belem -Lisboa-Pt
-Quem disse isto? Está errado. Chegamos aos 29 de março de 1549.
-Foi mesmo senhor Garcia? Ri interiormente; ele tinha caído no laço:  estão informando falsamente as pessoas esta data que falei.
Senti que agora ia ter jogo, ainda bem que pensei rápido e como estratégia falei a data errada. Daí em diante não consegui mais parar o senhor Garcia, que de um só fôlego começou:
“ Zarpamos de Lisboa em 1º de fevereiro de 1549,  trouxemos uns quatrocentos soldados e muitos degredados,. A expedição era composta de 6 unidades: naus Conceição, cujo capitão era o próprio Thomé de Sousa, Salvador, Ajuda e caravelas Leoa, Rainha e um bergantim[1] e ainda outros navios de particulares. Trouxemos entre 200 a 400 soldados, colonos contratados e 400 degredados, além de funcionários e mestres de obras e, como não poderia deixar de ser, seis missionários capitaneados por Manoel da Nóbrega.”[2]
-Oh gente! Não vieram junto com Thomé de Sousa o provedor mor e o ouvidor geral?
-Claro que sim, O provedor Mór foi nomeado desde Lisboa e era o Antônio Cardoso de Barros, que inclusive era donatário do Ceará e veio capitaneando a nau Salvador, e Pero Borges de Sousa como Ouvidor Geral, e Pero de Góes, por conhecer bem a nossa costa como Capitão Mór, ficando encarregado da sua vigilância.[3] 
- Sr. Garcia, este Pero Borges fazia o que em Portugal?
-É um homem de bem,
-Acho que o Sr. está enganado, ele não era tão homem de bem assim, conta-se que ele
-Como ousas?
-Oh Sr. Garcia! Aqui nós já estamos acostumados com estes malfeitores que, por ter a proteção do Rei(Governo), se dão de santo, quando tem um passado por demais comprometedor.
-Como sabes disto?

-Documentos Sr. Garcia, livros, estudiosos que se debruçaram na história.- Pois não é que esse homem, que chegara ao Brasil com a nobre função de aplicar a justiça, era nada mais nada menos de que um ex-funcionário público português, que foi condenado por desvio de verbas públicas quando da construção do aqueduto, o que só foi descoberto porque a obra não pode ser concluída por falta de verbas[4].

-Isto não pode ser verdade, grita o Sr. Garcia.

É sim Sr Garcia, ele inclusive deveria cumprir pena de três anos afastado do exercício de qualquer função pública, entretanto, foi nomeado, apenas um ano e meio depois da sentença de condenação, para exercer o cargo de Ouvidor Geral, trazendo uns documentos assinado por El Rey, que determinava a “todas as autoridades e moradores da colônia lhe obedeçam e cumpram inteiramente as suas sentenças, juízos e mandados em tudo o que ele fizer e mandar” [5]
Farol da Barra-Salvador-Ba
Os seus poderes eram imensos e equiparados aos desembargadores da Casa de Suplicação do Reino. Este desclassificado  era a autoridade suprema da justiça territorial no Brasil. Conhecia por ação nova, dos casos crimes, para o que tinha alçada até morte natural inclusive, quanto aos escravos, peões, christãos, gentios livres, devendo, porém, nos casos em que, segundo o direito, coubesse a pena de morte, inclusive, tratando-se de pessoas dessa qualidade, proceder nos respectivos feitos afinal e despacha-los com o governador geral, sem apelação, se fossem conformes os seus votos; e, no caso de discordância, deviam ser os autos, com os réus, remetidos ao corregedor em Lisboa, para sentença. (MAX FLEIUSS:1922-21).
Para aqueles que tivessem menos posses, “pessoas de mor qualidade”, Pero Borges poderia aplicar a pena de degredo de até cinco anos. Tinha ainda competência para causas cíveis, com alçada de sessenta mil reis.
O Senhor da Torre ficou olhado para mim com uma cara indecifrável, mas com certeza não era uma cara boa, parecia estar mesmo muito intrigado, afinal ele viera com este homem, que ficou por aqui durante muito tempo, e ao que parece ele não sabia deste detalhe, e mais uma vez olhou-me e disse: és mesmo uma bruxa, vou saber desta história direito e se isto não for verdade, hás de pagar caro esta ofensa a um homem tão ilustre.-
Ruínas Castelo Garcia DÁvila-Ba
Sr Garcia, isto é verdade sim, mas de que adianta o senhor procurar isto agora, já se passou muito tempo, mas não defenda este “canalha”, ele desviou em proveito próprio dinheiro público, tanto que a obra  do aqueduto não pode ser concluída, resultando em que os indignados vereadores escreveram para o Rei pedindo à investigação que foi autorizada, chegando-se à conclusão de que o homem fizera mesmo o desvio do dinheiro, sendo condenado a devolver aos cofres públicos o valor correspondente à quantia desviada e a ficar afastado por três anos de exercício de cargo público. Imagine Sr. Garcia! O valor desviado foi de 114.064 reis e é este  miserável que veio para cá para punir, coitados, indígenas, escravos, e toda e qualquer pessoa que cometesse qualquer crime. Pior que
Ponta de Humaitá vista da Pedra Furada.Ba
tudo Sr. Garcia é que ele veio nomeado pelo mesmo Rei que autorizou a investigação anterior.
O Sr. Garcia estava mudo, só me olhava com um olhar que não consegui definir: incredulidade! Raiva!. Surpresa!. Não sei, mas ele tomou mesmo um baque com aquelas notícias todas que eu, pobre mortal e mulher, estava lhe dando.
Eu, aproveitando este fraquejamento do Sr. da Torre, continuei:   O Sr. sabe que com uma ficha desta o homem foi nomeado e conseguiu que lhe pagasse salários antecipados. Uma vergonha! Eu só queria saber se este desgraçado devolveu o dinheiro. O Thomé de Sousa retornou ao Reino, e, quando da chegada do segundo governador, e o senhor sabe disto, o desgraçado do Pero Borges passou a responder, também, pelo cargo de provedor mor, ou seja, ele lidava com as finanças da Colônia.  Não dá para acreditar, mas foi assim mesmo.
Quando acabei de falar vi o Sr. Garcia levantando e, sem me dizer adeus, desapareceu. Era sempre assim, ele ficava injuriado quando eu falava dos defeitos dos seus pares, dos seus “homens bons” e ele não tinha como contra argumentar.
Baía de Todos os Santos - Salvador-Ba
É, falei para mim mesmo: Acho que este dia da chegada vai ser muito prolongado, pois se de cada pessoa que veio com o Sr. Garcia eu descobrisse um erro, ia demorar sair do dia 29 de março de 1549.
Por do Sol no Porto da Barra-Ba
Resta-me apenas parabenizar Salvador, que, apesar de tudo, continua linda e maravilhosa,  e esperar que o STF dê uma decisão correta e justa no dia 04 de abril,  que retire do cenário político nacional  os milhares de corruptos que se dizem inocentes, ainda que com tantas provas já coletadas!



[1] Bergantim – embarcação do tipo galé, de um a dois mastros e velas redondas ou velas latinas. Levava trinta remos e era utilizado como elemento de ligação, exploração, como auxiliar de armadas e em outros serviços do gênero.
[2], Ver FLEIUSS Max, História Administrativa do Brasil Segunda Edição, Recife, Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1925, pg 13-15,
[3] Idem.
[4] Ver. PEREIRA DE ALMADA, V de S.  Elementos para um Dicionário de Geografia e História Portuguesa, 1888, Elvas. Portugal
[5] Regimento que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548, Lisboa, AHU, códice 112, fls. 1-9.


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