Estava no comboio entre o
Cais Sodré e Cascais e, passando pela Torre de Belém lembrei-me do Sr. da Torre
fiquei imaginando como teria sido a sua partida. Confesso que este pensamento
me deixou muito triste, não por causa do Sr. Garcia D´Ávila, embora a lembrança
dele, que desencadeara todo o pensamento, me deixava aflita, pois pensei no
sofrimento daqueles que partiam e daqueles que viam partir os seus filhos,
esposos, pais.
Torre de Belém -Pt´ |
Este pensamento me
incomodou anto que fiquei mesmo triste e perguntando-me, quem teria ido se
despedir do Sr. Garcia D´Ávila. Uma
irmã, sua mãe, um irmão? Continuo sem
saber, porque a vida do Garcia antes de sua ida para o Brasil é uma verdadeira
incógnita. Ninguém fala nada, e alguns arriscam a dizer que ele era criado de
Tomé de Souza, sendo criado no sentido de ser criado na casa, e não criado no
sentido de empregado.
Por causa destes
pensamentos fui reler os Lusíadas de Camões, pois lembrei que tem uma passagem
que ele fala literalmente desta partida dos portugueses para mares longínquos
e, para ratificar os meus temores e tremores, pois o pensamento me angustiava
tanto que me dava arrepios, encontrei:
Cascais Pt |
(Huns por amigos,
outros por parentes
Outros por ver
somente) concorria,
Saudosos na vista,
e descontentes,
E nós, com a
virtuosa companhia
De mil Religiosos
diligentes,
Em procissão
solemne a Deos orando,
Para os batéis
viemos caminhando.
Em tão longo
caminho, e duvidoso,
Por perdidos as
gentes nos julgavam
As mulheres com
choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam,
Mãis, esposas,
irmaõs, que o temeroso, Amor mais confia, acrescentavam
A desesperação o
frio medo
De já não nos
tornar a ver tão cedo
Já a vista pouco a pouco se desterra
Daquelles patrios montes que ficavam,
Ficava o charo Tejo e a fresca serra
De Cintra e nella os olhos se alongavam
Ficava-nos também na amada terra
O coração que as mágoas la deixavam
e já depois que toda se escondeo
Não vimos mais, em fim, que o mar, e o Ceo"[1]
Praça do Comercio Pt |
Vocês podem bem assimilar, através dos versos deste ilustre
português, que participou de tantas viagens, portanto ele mesmo sentindo a dor
da partida e a dor de quem ficou à espera de quem podia, como se sofria em cada uma destas despedidas.
Bom, mas eu não podia ficar assim tão
triste e deprimida, afinal estava em Lisboa e tinha de me animar para
aproveitar muito a terrinha do Sr Garcia D´Avila, e ai já comecei a me
preocupar com ele. Será possível que ele podia aparecer por ali! Fiquei apreensiva
só de pensar na possibilidade. Imaginei a cena: o Sr. Garcia me enchendo a
paciência, me perguntando coisas e eu calada, sem poder responder nada, porque
estava no comboio e muita gente a me olhar. Que droga que seria! Procurei afastar o pensamento do Sr. Garcia,
mas parecia que o homem estava querendo aparecer de qualquer maneira.
Felizmente ele não apareceu nem ali e
nem em lugar algum, enquanto eu estava em Lisboa. Pensei até em ir em Rates,
mas desisti.
Cheguei em Salvador e, chegando em
casa, ao abrir a porta, e isto era quase meia noite, quem é que está de um lado
para outro na varanda: O Sr. da Torre, que parecia muito irritado.
Logo atrás de mim estava o meu irmão,
e eu vi o Sr. da Torre vindo na minha direção
indignado e bradando. Dei uma recuada e meu irmão perguntou-me: o que
houve? Você está amarela! Viu alguma coisa aí?
Não, nada, penso que é a emoção de
estar chegando em casa mesmo.
- Por que você não diz a ele que eu
estou aqui? Ou melhor, este homem aí não está a ver-me?
Não podia responder nada e deixei o
Sr. Garcia falando sozinho, o que o irritou mais ainda.
Meu irmão ajudou-me com as malas,
olhou a casa toda e em seguida foi embora, e aí foi que eu pude me dirigir ao
Sr. Garcia, que estava mesmo irritadíssimo
-Quem é este moleque que veio ai consigo?
-Meu irmão Sr. Garcia, meu irmão.
-Nunca disseste-me que tinhas irmãos!
-O Sr nunca me perguntou.
- Onde ele mora?
-Tenho vários irmãos e cada um mora
em um lugar, aqui em Arembepe, e em outros lugares em Salvador, uma delas mora
em Sergipe Del Rey
- Onde? Sergipe Del Rey! É outra que
vive nas minhas terras sem pagar-me foro?
- Sei lá Sr. Garcia se esta parte,
onde ela mora, é vossa.
- Isto agora não interessa? Onde
estivestes? Vim aqui inúmeras vezes e não estavas em casa.
- Viajei Sr Garcia, fui em Portugal?
- Onde? Em que nau viajastes? Não
soube de nenhuma partindo por estes tempos, tampouco de nenhuma chegada de
qualquer nau hoje.
acesso à Capela Sistina-Vaticano |
Fontana de Trevi - It |
Meu Deus, como explicar a este homem
que fui de avião?. Era melhor não.
Como fui não vem ao caso, mas o certo
é que fui e estou chegando agora, como o senhor pode ver. Estive na Itália e em
Portugal.
-Itália? Que fostes fazer na Itália?
-Fui ver o Papa?
-O que! Tu fostes ver o Papa, a troco
de que?
- A troco da fé Sr Garcia, apenas
isto.
- E ele recebeu-te?
-Não, não o vi
-Tinha graça, ele jamais receberia
uma mulher sem eira nem beira.
Dei risada, então era assim que
aquele filho da mãe me via, uma mulher sem eira nem beira, talvez até uma
desclassificada.
-Sabe Sr Garcia pensei muito no
senhor enquanto estava em Portugal, principalmente quando estive em Belém: Quem
foi chorar a sua vinda para o Brasil?
-Ninguém foi chorar a minha vinda
para o Brasil, eu vim com o Tomé de Souza e quem se despediu de nós foi a
esposa e a família dele, afinal eu morava na casa dele.
-Por que o senhor morava na casa
dele?
O homem me olhou de uma maneira que
parecia querer me matar, tive, imediatamente, de mudar o rumo da prosa.
-Senhor Garcia, como foi que o senhor
se tornou vereador?
- Fui escolhido entre os homens bons
da cidade?
-Como era feita esta escolha?
-Então não sabes? Sabes de tudo e não
sabes disto?
-Não, não sei, eu gostaria muito de
saber de tudo, mas não sei.
-Bom fui vereador em 1591, na vigência das Ordenações Manuelinas, embora
já existissem as Ordenações Filipinas, que ainda não tinha sido promulgada. A
esta época eu era já muito rico e influente, fazia parte do que se denominava
“homens bons” e, portanto, podia participar da lista para concorrer à vereança.
Se fazia uma lista com o nome do homens bons, escolhe-se dos listados três nomes
para cada oficio. Tais nomes são colocados
nos pelouros e, no final do ano, estes pelouros são abertos e aí fica-se
sabendo quem serão os vereadores, juízes do período.[2]
- Quais as funções do vereador Sr. Garcia?
- As funções dos vereadores estão
descritas nas Ordenações Manuelinas[3], somos responsáveis pelos
bens dos concelhos, suas aguas, posturas, comércio,enfim. Mas qual é mesmo o
vosso interesse em saber destas coisas?
-Quem sabe quero ser uma vereadora
-kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk, nunca,
es mulher e mulheres não participam das listas.
- Saiba Sr. Garcia, que na atualidade
as mulheres participam de toda a vida politica dom país, podem ser vereadoras,
deputadas, senadoras, Juízas, procuradoras, ou seja: podem exercer qualquer
profissão.
-Estás a sonhar, em que época vives?
Lugar de mulheres é na cozinha, cuidando da casa e servindo aos seus homens.
- No vosso tempo Sr. Garcia, no vosso
tempo.
Notei que o Senhor da Torre estava
ficando, como sempre, possesso, pois ele tinha um tic especial, começava a
ficar vermelho, a voz ficava alterado e começava a bater o pé no chão, mas o
que eu podia faze. Na realidade eu queria mesmo era aborrecê-lo um pouco para
ele ir logo embora, afinal eu tinha acabado de chegar e estava cansada.
-Vou-me embora, estás muito ousada
hoje, deve ser, se é que é real que fostes ao Reino, o que duvido, a não ser
que sejas mesmo uma bruxa, influências dalgumas mulheres da terra.
Achei ótima a decisão do Sr. da Torre
de ir embora, ele já estava saindo todo zangado, quando, antes de chegar ao
portão, virou-se e disse:
Só escapas da Inquisição porque gosto
de ti, apesar das suas loucuras, e ainda vou levar-te para Tatuapara, onde vais
viver comigo e me dar os herdeiros que quero.
Confesso que tremi com estas últimas
palavras, o fato dele ser espirito e da impossibilidade do seu desejo
materializar-se, não me deixava tranquila, muito prelo contrário, cada dia eu
ficava muito mais preocupada, quanto pior quando lembrava de Dona Flor e seus
dois maridos. Nem queria pensar na hipótese de, ainda que no campo espiritual
este homem tocasse em meu corpo, Ave Maria! Jesus é mais!
E fui deitar-me rezando pela alma do Sr, da Torre
E fui deitar-me rezando pela alma do Sr, da Torre
[2]
Pelouros eram pequenas bolas de cera onde era introduzido um papel com o nome
da pessoa que fora escolhido para vereador ou para Juiz Ordinário. No final de
cada ano fazia-se o sorteio e o nome que estivesse na bola sorteada é que era o
vereador ou o Juiz no ano seguinte.
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