quinta-feira, 15 de março de 2018

O Sr. da Torre e a Vereança


Estava no comboio entre o Cais Sodré e Cascais e, passando pela Torre de Belém lembrei-me do Sr. da Torre fiquei imaginando como teria sido a sua partida. Confesso que este pensamento me deixou muito triste, não por causa do Sr. Garcia D´Ávila, embora a lembrança dele, que desencadeara todo o pensamento, me deixava aflita, pois pensei no sofrimento daqueles que partiam e daqueles que viam partir os seus filhos, esposos, pais.
Torre de Belém -Pt´
Este pensamento me incomodou anto que fiquei mesmo triste e perguntando-me, quem teria ido se despedir do Sr. Garcia D´Ávila.  Uma irmã, sua mãe, um irmão?  Continuo sem saber, porque a vida do Garcia antes de sua ida para o Brasil é uma verdadeira incógnita. Ninguém fala nada, e alguns arriscam a dizer que ele era criado de Tomé de Souza, sendo criado no sentido de ser criado na casa, e não criado no sentido de empregado.
Por causa destes pensamentos fui reler os Lusíadas de Camões, pois lembrei que tem uma passagem que ele fala literalmente desta partida dos portugueses para mares longínquos e, para ratificar os meus temores e tremores, pois o pensamento me angustiava tanto que me dava arrepios, encontrei:

   
     
Cascais Pt
A gente da cidade aquelle dia

(Huns por amigos, outros por parentes
Outros por ver somente) concorria,
Saudosos na vista, e descontentes,
E nós, com a virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes,
Em procissão solemne a Deos orando,
Para os batéis viemos caminhando.
Em tão longo caminho, e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavam
As mulheres com choro piedoso,
 Os homens com suspiros que arrancavam,
Mãis, esposas, irmaõs, que o temeroso, Amor mais confia, acrescentavam
A desesperação o frio medo
De já não nos tornar a ver tão cedo

      Já a vista pouco a pouco se desterra
      Daquelles  patrios montes que ficavam,
      Ficava o charo Tejo e a fresca serra
      De Cintra  e nella os olhos se alongavam
      Ficava-nos também na amada terra
     O coração que as mágoas la deixavam
     e já depois que toda se escondeo
     Não vimos mais, em fim, que o mar, e o Ceo"[1]  

Praça do Comercio Pt 
Vocês podem bem  assimilar, através dos versos deste ilustre português, que participou de tantas viagens, portanto ele mesmo sentindo a dor da partida e a dor de quem ficou à espera de quem podia,  como se sofria em cada uma destas despedidas.

Bom, mas eu não podia ficar assim tão triste e deprimida, afinal estava em Lisboa e tinha de me animar para aproveitar muito a terrinha do Sr Garcia D´Avila, e ai já comecei a me preocupar com ele. Será possível que ele podia aparecer por ali! Fiquei apreensiva só de pensar na possibilidade. Imaginei a cena: o Sr. Garcia me enchendo a paciência, me perguntando coisas e eu calada, sem poder responder nada, porque estava no comboio e muita gente a me olhar. Que droga que seria!  Procurei afastar o pensamento do Sr. Garcia, mas parecia que o homem estava querendo aparecer de qualquer maneira.
Felizmente ele não apareceu nem ali e nem em lugar algum, enquanto eu estava em Lisboa. Pensei até em ir em Rates, mas desisti.
Cheguei em Salvador e, chegando em casa, ao abrir a porta, e isto era quase meia noite, quem é que está de um lado para outro na varanda: O Sr. da Torre, que parecia muito irritado.
Logo atrás de mim estava o meu irmão, e eu vi o Sr. da Torre vindo na minha direção  indignado e bradando. Dei uma recuada e meu irmão perguntou-me: o que houve? Você está amarela! Viu alguma coisa aí?
Não, nada, penso que é a emoção de estar chegando em casa mesmo.
- Por que você não diz a ele que eu estou aqui? Ou melhor, este homem aí não está a ver-me?
Não podia responder nada e deixei o Sr. Garcia falando sozinho, o que o irritou mais ainda.
Meu irmão ajudou-me com as malas, olhou a casa toda e em seguida foi embora, e aí foi que eu pude me dirigir ao Sr. Garcia, que estava mesmo irritadíssimo
-Quem é este moleque que veio ai consigo?
-Meu irmão Sr. Garcia, meu irmão.
-Nunca disseste-me que tinhas irmãos!
-O Sr nunca me perguntou.
- Onde ele mora?
-Tenho vários irmãos e cada um mora em um lugar, aqui em Arembepe, e em outros lugares em Salvador, uma delas mora em Sergipe Del Rey
- Onde? Sergipe Del Rey! É outra que vive nas minhas terras sem pagar-me foro?
- Sei lá Sr. Garcia se esta parte, onde ela mora, é vossa.
- Isto agora não interessa? Onde estivestes? Vim aqui inúmeras vezes e não estavas em casa.
- Viajei Sr Garcia, fui em Portugal?
- Onde? Em que nau viajastes? Não soube de nenhuma partindo por estes tempos, tampouco de nenhuma chegada de qualquer nau hoje.
 acesso à Capela Sistina-Vaticano
Fontana de Trevi - It
Meu Deus, como explicar a este homem que fui de avião?. Era melhor não.
Como fui não vem ao caso, mas o certo é que fui e estou chegando agora, como o senhor pode ver. Estive na Itália e em Portugal.
-Itália? Que fostes fazer na Itália?
-Fui ver o Papa?
-O que! Tu fostes ver o Papa, a troco de que?
- A troco da fé Sr Garcia, apenas isto.
- E ele recebeu-te?
-Não, não o vi
-Tinha graça, ele jamais receberia uma mulher sem eira nem beira.
Dei risada, então era assim que aquele filho da mãe me via, uma mulher sem eira nem beira, talvez até uma desclassificada.
-Sabe Sr Garcia pensei muito no senhor enquanto estava em Portugal, principalmente quando estive em Belém: Quem foi chorar a sua vinda para o Brasil?
-Ninguém foi chorar a minha vinda para o Brasil, eu vim com o Tomé de Souza e quem se despediu de nós foi a esposa e a família dele, afinal eu morava na casa dele.
-Por que o senhor morava na casa dele?
O homem me olhou de uma maneira que parecia querer me matar, tive, imediatamente, de mudar o rumo da prosa.
-Senhor Garcia, como foi que o senhor se tornou vereador?
- Fui escolhido entre os homens bons da cidade?
-Como era feita esta escolha?
-Então não sabes? Sabes de tudo e não sabes disto?
-Não, não sei, eu gostaria muito de saber de tudo, mas não sei.
-Bom fui vereador em 1591, na vigência das Ordenações Manuelinas, embora já existissem as Ordenações Filipinas, que ainda não tinha sido promulgada. A esta época eu era já muito rico e influente, fazia parte do que se denominava “homens bons” e, portanto, podia participar da lista para concorrer à vereança. Se fazia uma lista com o nome do homens bons, escolhe-se dos listados três nomes para cada oficio. Tais nomes  são colocados nos pelouros e, no final do ano, estes pelouros são abertos e aí fica-se sabendo quem serão os vereadores, juízes do período.[2]    
- Quais as funções do vereador Sr. Garcia?
- As funções dos vereadores estão descritas nas Ordenações Manuelinas[3], somos responsáveis pelos bens dos concelhos, suas aguas, posturas, comércio,enfim. Mas qual é mesmo o vosso interesse em saber destas coisas?
-Quem sabe quero ser uma vereadora
-kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk, nunca, es mulher e mulheres não participam das listas.
- Saiba Sr. Garcia, que na atualidade as mulheres participam de toda a vida politica dom país, podem ser vereadoras, deputadas, senadoras, Juízas, procuradoras, ou seja: podem exercer qualquer profissão.
-Estás a sonhar, em que época vives? Lugar de mulheres é na cozinha, cuidando da casa e servindo aos seus homens.
- No vosso tempo Sr. Garcia, no vosso tempo.
Notei que o Senhor da Torre estava ficando, como sempre, possesso, pois ele tinha um tic especial, começava a ficar vermelho, a voz ficava alterado e começava a bater o pé no chão, mas o que eu podia faze. Na realidade eu queria mesmo era aborrecê-lo um pouco para ele ir logo embora, afinal eu tinha acabado de chegar e estava cansada.
-Vou-me embora, estás muito ousada hoje, deve ser, se é que é real que fostes ao Reino, o que duvido, a não ser que sejas mesmo uma bruxa, influências dalgumas mulheres da terra.
Achei ótima a decisão do Sr. da Torre de ir embora, ele já estava saindo todo zangado, quando, antes de chegar ao portão, virou-se e disse:
Só escapas da Inquisição porque gosto de ti, apesar das suas loucuras, e ainda vou levar-te para Tatuapara, onde vais viver comigo e me dar os herdeiros que quero.
Confesso que tremi com estas últimas palavras, o fato dele ser espirito e da impossibilidade do seu desejo materializar-se, não me deixava tranquila, muito prelo contrário, cada dia eu ficava muito mais preocupada, quanto pior quando lembrava de Dona Flor e seus dois maridos. Nem queria pensar na hipótese de, ainda que no campo espiritual este homem tocasse em meu corpo, Ave Maria! Jesus é mais!
E fui deitar-me rezando pela alma do Sr, da Torre                                                                                                                                                             



[1] Luis de Camões, Os Lusíadas [1] Canto IV e V do LUSIADA  de Camões. –  Tomo I, Lisboa, Typografia Lacerdina 1805 pgs 154,155 e 162 - A edição citada dos Lusíadas pertence ao acervo pessoal de Vera Correia.
[2] Pelouros eram pequenas bolas de cera onde era introduzido um papel com o nome da pessoa que fora escolhido para vereador ou para Juiz Ordinário. No final de cada ano fazia-se o sorteio e o nome que estivesse na bola sorteada é que era o vereador ou o Juiz no ano seguinte.
[3] Título XLV do Livro I das Ordenações Manuelinas e LXVI  do Livro I das Ordenações Filipinas

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