Confesso que sai do
Castelo de Garcia D´Ávila ainda sem perceber direito o que tivera acontecido,
no caminho vinha dirigindo o carro e querendo acreditar que tudo não passara de
um sonho. Sonho! Tá doida! Você está dirigindo o seu carro, está indo para
casa, e acha que foi sonho, se tivesse sonhado, neste momento estavas mortinha,
estão já se viu dirigir dormindo, ainda mais em uma estrada.
O racional me dizia que
fora real, que existiu mesmo aquela conversa, mas eu, por mais real que tivesse
sido tudo aquilo, continuava incrédula.
Decidi: vou voltar lá um
outro dia para ver o que acontece, mas vou me preparar e ler mais um pouco
sobre aquele Senhor, que tinha um olhar feroz, quando se via contrariado, e eu
o contrariara algumas vezes, porque estava falando de uma vida, coitado, que
ele não iria presenciar. Eu estava falando de fatos, para ele futuros, para mim
remotamente passados. Ele pensando no presente passado, e eu no passado
presente, era mesmo inverossímil.
À noite não dormi
direito, a imagem do Senhor da Torre parecia ter se grudado em mim sem querer
sair, estava me incomodando aquilo, e isto me levou a ratificar a minha decisão
de lá retornar, embora com medo, pois não gosto nem um pouco das histórias de
alma do ouro mundo, entretanto, tinha mesmo que me certificar que aquilo realmente
acontecera.
Esperei um mês para tomar
coragem, enquanto isto ia lendo sobre os Garcia D´Ávila e a história da Bahia
colonial.
Finalmente, chego,
novamente, à Casa da Torre: era um belo e ensolarado dia de dezembro, tinha
muita gente visitando o castelo, crianças fazendo muita zoada, pessoas falando muito
alto, enfim, me pareceu não ser um dia propicio. Ledo engano: assim que passo
pelo pórtico, quem está lá me parecendo a espera de alguém, possivelmente de
mim, o Sr. Garcia D’Avila em pessoa. Parecia mais limpo, mais arrumado, mas o
olhar era o mesmo, duro, seco, amedrontador.
Assim que atravessei o
pórtico de entrada ele levantou-se e veio em minha direção, vinha com a mão
estendida, acho que para me cumprimentar. Eu não sabia o que fazer, não queria
parecer idiota frente a tantas pessoas, mas eu tinha de falar com ele, pois se
não o fizesse já começaria mal a nossa entrevista desse dia, e outra não foi a
minha atitude, também levantei a mão, que, por incrível que possa parecer, foi
delicadamente tocada pelo Senhor da Torre acompanhada de uma reverência. Tomei
um susto, achei que ele ia beijar minha mão, mas não podia esperar este gesto
de um homem tão grosseiro e tão orgulhoso e pedante, acostumado com todos aos
seus pés.
-Que bom que viestes?
Estava à espera.
-Sabias que viria senhor?
-Claro que sim,
disseste-me que voltarias para contar-me o resto da história. Apesar de achar
que és uma bruxa e poder denunciá-la a qualquer momento, a vossa narrativa
diverte-me muito, e não é fácil alguém fazer-me rir. Venha, senta-te aqui e
recomeças de onde parou.
Danou-se, pensei eu! Onde
foi que parei mesmo? Não me lembrava, acho que deixei a história na filha dele.
Sr Garcia, a vossa vida é
muito cheia de aventuras e detalhes, e eu não lembro de todos eles assim,
gostaria muito, mas é difícil guardar na memória tantos feitos, tantas
vitórias, tantas conquistas.
Chega! Pare de dar voltas
e comeces logo, estavas a falar de minha filha.
-Ufa, que alívio. Alma do
outro mundo ou não, aquela figura me dava muito medo.
Antes de falar da sua
filha, entretanto, gostaria que o Sr. Falasse um pouco da sua segunda esposa,
Dona Mécia Rodriguez
- Não, não quero falar
dela, ela morreu e eu tive de cuidar da Isabel sozinho, apesar das duas não se
darem muito bem, ela me ajudava na criação da menina, por outro lado ela me
desagradou ao legar terras para a Igreja, e eu tive que negociar para tê-las de
volta[1]
Ah, aconteceu isto? Eu
não sabia. Será que foi por isto que a Isabel, sua filha a denunciou ao Santo
Oficio, mesmo ela depois de morta?
Também não vou falar
sobre isto, são coisas familiares que não dizem respeito a si e nem a ninguém,
mas nada aconteceu com a denúncia, até porque Méxia[2] já não estava entre nós.
Pois é, senhor a vossa
filha casou-se, mas o marido morreu logo e o Sr. arrumou-lhe outro casamento
desta feita com o neto de Caramuru, Diogo Dias, com quem ela teve um filho, o
seu neto Francisco, acontece que, como o senhor bem sabe, sua filha (1593) e o
seu genro (1597) faleceram muito cedo e Francisco foi criado por si, que o fez
seu herdeiro[3].CALMON:1983-34)
Não sei se o Sr. lembra,
mas o seu passamento ocorreu em 1609, quando o sr. Se foi com noventa anos,
deixando todo o seu latifúndio e todos os seus bens para o Seu neto, FRANCISCO
DIAS D´ÁVILA[4]
e alguns legados para a Misericórdia e algumas irmandades.
- Eu me fui? Fui para
onde? Eu não fui a lugar algum, como vês estou aqui tomando conta do meu gado,
do meu feudo, dos meus escravos, aumentando o meu patrimônio e valorizando
Portugal e aumentando o meu poder.
Talvez não saibas da importância que tenho nesta colônia, onde sou um
dos mais ricos do lugar, sou chamado para deter revoltas de indígenas[5], expulsar invasores, dar
guarida a tropas, Tomé de Souza voltou para Portugal. Passei pelos governadores
Duarte da Costa, Mem de Sá e tantos outros, e continuo aqui, sendo um guardião
das minhas terras e da capital, pois é daqui que eu aviso que há navios
entrando na cidade, ou seguindo em direção a ela, pois acendo a Almenara dando
o sinal para que todos fiquem alertas.
Sabemos disto Sr. Garcia,
e agradecemos muito o que o senhor fez, embora não concordemos com a
metodologia, mas também entendemos que nada poderia ser diferente. Agradecemos
e muito que esta sua casa fortaleza tenha servido de guardiã mor desta
província, a sua almenara[6] era eficaz e evitou que a
cidade fosse tomada de assalto muitas
vezes, pois a comunicação entre as almenaras sempre funcionou e o alerta
era mais de que importante.
Tentei falar do filho que
ele tivera – João Homem, mas ele me pareceu ficar muito aborrecido, e, mais uma
vez, eu resolvi ir embora, antes que ele ficasse muito enraivecido e avançasse
contra mim. Mesmo um espirito, e eu sabia que ele era, não me deixava nada bem
a sua agressividade.
Há muito mais para
contar, mas vou dar um jeito de abordar tudo com um pouco mais de tato com o
Sr. D´Ávila.
Até a próxima.
[1]
No Livro de Tombo de nº II do Mosteiro de São Bento, pg 284, onde esta o
registro do testamento de Garcia D´Ávila, ele se refere ao legado da sua
esposa e de como ele trouxe as terras de
volta..
[2]
É assim que está grafado o nome da esposa do Sr. Garcia D´Ávila no seu
testamento acima referido no item 1
[3]
CALMON PEDRO, História da Casa da Torre, Uma Dinastia de Pioneiros, 3ª ed.
Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia,1983.,
[4]
Também pode ser visto no livro de Tombo do Mosteiro todo o testamento de Garcia
D´Ávila.
[5]
Quando Duarte da Costa era o Governador do Brasil teve de enfrentar revoltas
dos indígenas e Garcia D´Avila da sua torre comandava as operações, estando à frente dos combatentesmbatentes foi o próprio filho de Duarte da
Costa, Álvaro da Costa, este último tinha hábitos que desagradavam o padre
Sardinha, contenda que culminou com o chamado do Bispo à Portugal,
possivelmente par dar explicações do seu comportamento em relação ao
Governador e ao seu filho, entretanto a
viagem não se concluiu porque houve um naufrágio e o bispo faleceu..
[6]
Almenara – facho que se acendia nas torres e castelos para dar sinal ao longe.
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