Continuo andando
em Salvador com os olhos de ver, olhos que jamais pretendo que deixem de ver,
já falei antes, que os meus olhos agora não só enxergam e olham, eles vêm,
sentem, recriam, estão a serviço da memória, do conhecimento, da reconstrução.
Quanto tempo perdi sem usar os meus olhos de ver, e com eles é que estou na
Cidade Alta ali pelas bandas da Paço Municipal; à minha frente está a Câmara,
do lado esquerdo, estando eu de costas para o prédio da Câmara, está o Palácio
do governo do outro lado a Rua da Misericórdia que vai dar na Sé, e após no
Terreiro de Jesus. Estou, efetivamente
no centro da cidade. Descendo a rua vou
parar um pouco antes da porta de Santa Luzia, (São Bento) que limita a cidade
pelo Norte, se sigo pela direita, alcanço o Terreiro de Jesus, Pelourinho e a porta
Sul da cidade, a porta de Santa Catarina (Carmo).
Estamos no ano
de 1591, estávamos todos esperando o novo governador geral, o que fora designado
não chegou, vítima de fortes correntes que o fizeram retornar a Portugal, onde
morreu, mas afinal chega o grande dia da chegada do novo governador.
O Sr. Francisco
de Sousa, Francisco das Manhas,[1]
chega e já traz, em suas costas, o peso de duas mortes: a do governador Manuel
Teles Barreto e a daquele que fora nomeado para substituí-lo o Francisco
Giraldes e, talvez pela carga que trazia na nau que o transportava, ou muito
abençoada ou, contrariamente, amaldiçoada, escapou da doença que atingiu muitos
da sua comitiva. Muitos chegaram doentes embora o governador, como informa o
Frei Vicente do Salvador, ” os veio curando e provendo do necessário”[2],
mas a sua imunidade não durou muito, pois, pouco depois, também, adoeceu e ficou
aos cuidados dos jesuítas. A ansiedade e a curiosidade pela chegada do novo
governador geral, entretanto, foi quase que anulada por uma autoridade que com
ele desembarcou na Bahia – Heitor Furtado de Mendonça. Ah meu Deus! Se todos
tivessem o conhecimento de quem era este homem, desejariam que a nau que o
trouxe à estas plagas tivesse o mesmo fim da que conduziu o governador nomeado
anteriormente, ou talvez, quem sabe, um naufrágio bem providencial.
Fico intrigada e
assustada, embora não tivesse qualquer motivo aparente para temer o Inquisidor,
preocupa-me a maneira de estar na vida, apesar de cristã e de não cometer
pecados que interessassem à Inquisição, vez que vivia “a portas a dentro” com um
mancebo português, o que apesar de aceito pela sociedade, não era, de maneira alguma
uma situação muito confortável e, se algum invejoso ou invejosa fizesse isto chegar
os ouvidos do Inquisidor, talvez tivesse problemas. Cheguei a tremer com este
pensamento, pois já tinha ouvido falar dos castigos aplicados aos hereges, aos
sodomitas, aos judeus, castigos que variavam da tortura até à morte. Sim estava
um tanto intranquila, mas tinha de esperar o que ia acontecer, inclusive em
relação ao novo governador.
Não precisei
esperar muito, pois que, apesar do governador ainda está adoentado, o
Inquisidor, que já estava bem, não perdeu tempo e procurou, de logo, mostrar
toda a sua autoridade, obrigando a que todas as autoridades locais ficasse a si
subjugados, ou melhor, devessem obediência a autoridade mor do Santo Oficio, aí
estando incluído o próprio Bispo, Dom Antônio Barreiro, e, no dia 28 de julho de
1591 ,celebrou-se, com as pompas devidas, o primeiro Auto de Fé aqui celebrado.[3]
A sociedade toda
presente, acompanhando a procissão que percorreu as ruelas de Salvador,
inclusive o pobre do governador que ainda estava convalescendo, mas não
poderia, ainda assim, faltar a tamanha cerimonia, era capaz até de ser
processado pelo próprio Santo Oficio, e isto jamais ele iria arriscar.
[...] a
pequenina capital da América Portuguesa nunca presenciara tamanha aglomeração humana
e tanta pompa como naquele domingo invernoso. As cerimônias iniciaram-se de
manhã cedo, na primitiva igreja da Ajuda, a antiga “Sé de palha”: daí saiu o cortejo
em direção à Catedral, que segundo palavras do vereador e latifundiário Gabriel
Soares de Sousa, já nesta época ostentava “três naves, de honesta grandeza,
alta e bem assombrada, com cinco capelas muito bem feitas e ornamentadas e dois
altares na ombreira da capela-mor, porém ainda não está acabada”.5 Soleníssima,
a procissão percorreu as principais ruas de Salvador, dela participando o
Bispo, os cônegos do Cabido, todos os oficiais da Governança e da Justiça, além
dos vigários, curas, capelães, clérigos, os frades de São Francisco, São Bento
e da Companhia de Jesus, os membros das confrarias religiosas, e mais povo de
toda a Capitania.[...][4].
Lá atrás, no lugar que me
era quase que designado, seguia este cortejo ficando a imaginar se todas
aquelas pessoas que seguiam aquela demonstração de poder e riqueza, não seriam,
adiante, réus em processos inquisitoriais. Pensava assim porque, também sabia
eu, ainda por ouvir dizer, que muitos para escaparem de castigos, denunciavam
irmãos, parentes, amigos, vizinhos, e, com muito mais razões os inimigos, pois
esta era uma maneira de vingança.
Nem bem acabara a
cerimônia, o primeiro delator se apressa, incrivelmente e é um Padre. Pergunto
eu, o que diria um padre a um Inquisidor do Santo Oficio? Já tinha ouvido falar
em alguns padres pecadores, que praticavam a sodomia, tinham amásias, filhos
espúrios, praticavam sexo com as freiras, mas em minha inocência, não acreditava
nisto.
Bom, de uma maneira ou de
outra, todos que quisessem denunciar, confessar teria de fazê-lo, sem qualquer
punição, a não ser as penitências eclesiásticas, no período da “graça”[5]
e o Padre Frutuoso Álvares, Vigário de Matoim, devia estar carregado de culpas,
ou queria delatar alguém que a tivesse, e o certo é que, no mesmo dia 21, compareceu
diante da Mesa Inquisitorial, que funcionou na sede da Companhia de Jesus.
Realmente, o padre
carregava muitas culpas, e se fosse denunciado, ao invés de por livre e
espontânea vontade confessar, ia pagar bem caro por isto, pois não é que:
[...]cometeu
torpezas, tocamentos desonestos com
algumas quarenta pessoas pouco mais ou menos, abraçando, beijando, a saber, com
Cristóvão de Aguiar, mancebo de dezoito anos[...],[...] E assim também tocou no
membro desonesto a Antônio, moço de dezessete anos[...] , [...] e assim também
teve congresso por diante ajuntando os membros desonestos um com outro sem
haver polução com um mancebo castelhano que chamava Medina de idade de dezoito
anos[...] [...] E assim com outros muitos moços e mancebos[...] .[6]
Quando tomei conhecimento
da confissão do padre, fiquei estarrecida, já tinha ouvido falar das práticas
pecaminosas, mas achava que era tudo mentira. Agora já podia esperar tudo da
Inquisição e da Sociedade. Comecei a pensar em algumas pessoas que, com
certeza, caíram nas malhas da Inquisição, mas nem ousarei falar no nome delas
nem mesmo com o Manoel.
Ainda andando pela Praça
da Sé e já descendo em direção ao São Bento, pois morava por ali, vou pensando
no que mais vai acontecer. Já ouvira
falar de muitas pessoas da sociedade, de tantos que tiveram filhos espúrios,
filhos resultantes de coitos nefandos, de mulheres que tinham conjunção carnal
com outras, mas na verdade levava tudo por um quilo. Não era muito dada às
conversas e preferia não comentar a vida e ninguém, até porque, agora começava
a me preocupar, definitivamente, com a Inquisição, apesar de, pessoalmente, não
encontrar nada que justificasse qualquer denúncia ou, melhor, que necessitasse
de alguma confissão da minha parte, sabe-se lá, podia ter alguma pessoa que não
gostasse de mim e aí teria a grande oportunidade de alguma vingança.
A cidade continuava em
polvorosa, as pessoas se olhavam desconfiadas, andavam pelas suas ruas
estreitas e sujas procurando notícias, afinal já tinham sido denunciadas muitas
pessoas, o Santo Oficio estava ávido de almas não cristãs, os cristão novos
estavam sendo caçados, este era o objetivo da Santa Inquisição, examinar os
crimes de judaísmo, proposições heréticas, luteranismo, leitura de livros
proibidos, feitiçaria e pacto com o
demônio, e fornecimento de armas aos indígenas, adoção de costumes indígenas.,
em relação a este último, muita gente deveria estar bastante preocupada,
principalmente os do Recôncavo.
Durante o período em que
a Inquisição aqui esteve, muitas cosias aconteceram, evidentemente que nada
deveria sair do recinto onde as reuniões aconteciam, mas sempre se ouvia algum
comentário. Um dia, entretanto, as coisas não correram muito bem, pois alguém
que não queria confessar culpas, ou ainda, não queria se ver denunciado, atira
dois estouros de ferro de espingarda contra a janela da casa da Inquisição onde
O Heitor Furtado dormia[7].
Sim este era um grande atentado, e os
castigos seriam atrozes. O auto foi aberto e começou a devassa. Apurou-se que o
autor foi Estevão da Rocha Tenreiro, (confessou o crime) natural de Vila Moura,
Portugal, foi sentenciado e transportado para Vila Moura, cumprindo a sua
sentença que incluía, além de outras penitências, um ano de cárcere e mais ser
degredado para as galés, onde iria ficar a remar por todo o sempre.[8]
Mas a Inquisição
continuava com o seu papel e, durante o período da graça, muitas confissões e
denúncias ocorreram. Bastião Aguiar
confessa que teve contatos nefandos com seu irmão e com outros homens inclusive
com um de nome Antônio Lopes, que lhe penetrou no “vaso traseiro” inúmeras
vezes.[9] Jerônimo Parada confessa que, muitas vezes apalpara
“as naturas” de Frutuoso Álvares, com quem praticou sodomia, “metendo o seu
membro desonesto pelo vaso traseiro do clérigo como um homem faz com sua mulher
pelo vaso natural”. Realmente, com a
confissão deste último confessante, dá para entender a pressa do primeiro a se
confessar diante da Inquisição. Jácome Queiroz confessa ter tido coito anal com
duas jovens, informando a idade delas, “sete anos”, preocupando-se em
esclarecer que por estar cheio de vinho penetrou as mesmas pelo vaso traseiro,
no entanto, quando notou o que estava fazendo, de imediato se afastou sem
polução.[10]
As mulheres não ficaram
atrás e algumas delas, por vingança, por medo, por culpa mesmo, foram confessar
as suas culpas, uma delas, em especial, citada por muitas, e que não aproveitou
o período da “graça, ” foi processada e condenada: Felipa de Souza, além “das
penitências espirituais, foi açoitada pelas ruas da cidade e degredada,
perpetuamente, para fora da Bahia”.[11]
A Felipa de Souza foi
citada por muitas mulheres: Paula Siqueira que disse que a Felipa de Souza lhe
tinha escrito várias cartas de amores e requebros, além disto por dois anos,
esteve com ela aos beijos e abraços e depois disto teve ajuntamento carnal com
a mesma quando” ajuntando seus vasos naturais um com o outro, tendo deleitação
e consumado com efeito o cumprimento natural de ambas as partes, como se
propriamente foram homem com mulher”[12]
Dita Paulo Siqueira,
também deu informações a respeito de Paula Antunes, alegando que esta também
tinha amizade com Felipa de Souza, que segunda uma sua comadre de nome Isabel
Fonseca, namorava mulheres e tinha damas.[13]
Não satisfeita, ainda
falou de Isabel Rodrigues, a Boca-Torta, que lhe deu carta de tocar, bem como de
Beatriz de Sampaio, que lhe ensinara algumas palavras que deveriam ser ditas
andando em cruz, com a finalidade de que o seu marido se tornasse seu amigo: também
não poupou à Maria Vilela a quem acusou de fazer coisas para que o marido lhe quisesse
bem. [14]
Felipa de Souza, também
foi alvo da confissão de Maria Lourenço, com quem teve conjunção carnal, quando
“Felipa de Souza se deitou sobre ela de bruços com as fraldas delas ambas
arregaçadas e assim, com seus vasos dianteiros ajuntados, se estiveram ambas
deleitando até que a dita Felipa de Souza, que de cima
estava, cumpriu, e assim fizeram uma a outra como se fora homem com mulher”. [15] Confirmou ainda que a Felipa tinha amizade
desonesta e nefanda com Paula de Siqueira, com Paula Antunes e ainda com Maria
Pinheiro.
As delações e confissões continuaram
pelo período de “graça” e, quando este período aconteceu em relação ao
Recôncavo, muitas heresias foram descobertas, mas, no momento, tenho de chegar em
casa, o Manoel está me aguardando e, se ela me pega comentando coisas do Santo
Oficio, pode ser que queria me mostrar o meu devido lugar de uma mulher que,
mesmo não sendo casada, tem em relação ao homem com quem mora “portas a dentro”.
[1]
Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, por Frei Vicente do
Salvador escrita na Bahia em 1627,pp 101-102.
[2] Idem
p. 100
[3]
Para riqueza de detalhes deste Auto de Fé, ler MOTT, Luiz. Bahia- Inquisição e Sociedade, Salvador,
EDUFBA, 2010, Capítulo Primeiro, pp 19-28
[4]
Idem pp 21-22
[5]
Período de trinta dias fixados pelo Inquisidor para que confessassem suas
culpas, tal período começou no dia 29
de julho.
[6]
VAINFAS, Ronaldo (org.) Santo Oficio da Inquisição de Lisboa-
Confissões da Bahia, São Paulo, Cia. das Letras, 1997 (Retratos do
Brasil) pp 45-51
[7]
Auto que o senhor Heitor Furtado de Mendonça
visitador do santo ofício nestas partes do Brasil mandou fazer sobre as
espingardadas com dois estouros de ferro, que atiraram na janela desta casa da
Santa Inquisição. PT-TT-TSO-IL-003-051.00006. digitarq.dgarq.gov.pt, acesso em
20.05.2015
[8]
Idem.
[9]
VAINFAS, Ronaldo, ob cit. Pp 151-155.
[10] Ibidem,
pp 102-103
[11]
Ibid.Idem.pp. 104.-114
[12] Ibid.
pp 105-106
[13]
Ibid.p.108
[14] Ibid.
p, 113
[15] Ibid.,
pp157-158
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