terça-feira, 1 de abril de 2014

O vaso de murano

De onde está pode ver o vaso azul que comprou em Veneza. É um pequeno murano, uma miniatura daquele que povoou os seus sonhos desde os sete anos. Sim, é verdade, na casa de um seu tio rico tinha alguns vasos de murano: azuis, verdes, um colossal salmão. Os vasos ficaram para sempre em seu subconsciente.  Aliás, aquela casa tinha coisas que ela lembra até hoje e por elas  podia avaliar a fartura, riqueza da época áurea em que seus tios viveram. Havia quadros de famosos, Mulatas de Di Cavalcanti,  um enorme na sala com uma índia  que não se lembra de quem era, e muitos outros. Na lateral, subindo a escada havia um quadro lindo, mas era uma paisagem.  Dentro do gabinete mais um também com indígenas, salvo engano,o fundo do quadro era rosa. O gabinete! Ficava encantada com aquele canto da casa que não era muito freqüentado pela criançada; vivia trancado, afinal aquele era o lugar dos negócios e as crianças não podiam entrar. A escada de mármore, que conduzia ao andar dos quartos, era linda, o mármore branquinho era areado, quase que diariamente, pelas empregadas da casa. Recorda-se que era areado com pasta cristal, aquela rosinha.  Acabada a escada alcançava-se um hall onde se podia ver  cinco portas. Quatro quartos e o banheiro. Quatro quartos!  Aquilo era o máximo, quatro quartos e um somente para costura. Acreditem se quiserem: as famílias abastadas tinham costureiras particulares à sua disposição. Do lado esquerdo, após o quarto da costura, ficava o quarto das duas filhas do casal.  Chic! Muito chic mesmo.  Camas, guarda roupa, penteadeira, cômoda, tudo igual, era o máximo da arrumação. As colchas completavam o cenário e elas combinavam com as cortinas. A penteadeira tinha duas abas que podiam ser deslocadas para permitir que os utentes visualizassem as costas, os cabelos. A porta de frente era o banheiro, o qual mais parecia uma outra casa de tão grande que era, possivelmente hoje seria o tamanho de um loft, kitinete, quarto sala, sabe-se lá.  Do lado direito da escada mais duas portas, o do quarto dos meninos e a do casal.
O quarto do casal era uma coisa à parte mesmo.  Era enorme, tinha uma espécie de ante sala com poltronas, uma mesinha e, logo após grandes guarda roupas que tomavam as paredes de todos os dois lados, num outro vão ficava a cama de casal. Nunca tinha visto uma cama de casal daquele tamanho, era enorme mesmo. Ficava solta naquele vão enorme, mas era tão grande que não se notava que ela reinava sozinha ali. No lado esquerdo uma porta e aí a grande vedete, o banheiro. Imaginem vocês, há 52 ou 53 anos atrás ela viu a primeira suíte da sua vida, suíte com direito a banheira e tudo mais, a louça decorada era o máximo, havia flores azuis na pia, no vaso, na banheira, Ela ficava encantada com tudo aquilo. A cama, que algumas vezes ajudou sua mãe a arrumar, estava sempre impecável, guarnecida com colchas floridas e travesseiros e um rolo enorme, que fazia com que os travesseiros fossem colocados quase em posição vertical, o que dava um toque de elegância à cama. Uma porta lateral abria-se para a varanda que dava para a rua onde a casa estava localizada.
No andar térreo somente uma sala imensa, que abrigava a sala de visitas, então assim chamada, e a sala de jantar, onde uma imponente mesa com doze cadeiras e tampo de vidro trabalhado adornavam o ambiente. No centro daquela mesa, uma fruteira de cristal toda rebuscada e de três andares, que estavam sempre com frutas lindas e frescas.  No enorme móvel, que ficava na parede que fazia divisória com a cozinha, um relógio de pé insistia em marcar o tempo, parecia sempre estar disposto a dizer que tudo aquilo tinha um tempo certo, era preciso cuidado.
Um móvel menor, mais alto, era um bar, ali tinha muitas bebidas sempre. Eram duas portas mais altas de que a do móvel grande, porque este tinha gavetas e o bar não. Mais adiante, a cristaleira onde eram colocados os cristais, e olhe que eram muitos e lindos. Ela ficava extasiada  frente àquilo tudo.
Plantas ornamentais eram espalhadas pela casa, na subida da escada, em um pequeno pedestal de mármore, havia um feto, enorme e verde, lindo. À noite ele saia dali para tomar o ar e o sereno no jardim, ao amanhecer, antes mesmo dos donos da casa descerem, ele já estava no seu lugar de costume.
A cozinha era gigantesca.  Toda cheia de armários, tudo combinado: fogão no lugar certo, duas geladeiras nos seus lugares, duas pias.  Ela ficava olhando aquilo tudo com um misto de curiosidade, espanto, inveja. Na sua casa não tinha nada disto, muito pelo contrário, na sua casa se lavava pratos em bacias, o banho era em bacias imensas para que a água fosse aproveitada para o proximo banhista ou para jogar no sanitário. Depois da cozinha varandas, varandas imensas, uma espécie de copa avarandada onde outra mesa, com muitos lugares, servia para as refeições intimas  da família.
Pela manhã a mesa estava sempre arrumada: frutas, pão, aipim, inhame, batata doce, mingau de aveia, cuscuz, leite, café, banana da terra cozida, jámon, queijos, ovos dentre outras coisas.  Era realmente farta aquela casa. A dona da casa descia de roupão, ela não fazia nada, portanto, quando o “patrão” saísse ela voltaria para os aposentos, talvez para dormir ou  encontrar a roupa adequada para o evento do dia: eles tinham muitos compromissos. O “patrão”  foi diretor de hospital, presidente da associação comercial, presidente de clube recreativo e muitas outras coisas. Ela o acompanhava nessas ocasiões.
A varanda de entrada tinha cadeiras e poltronas de madeiras, ela sempre gostou daquelas poltronas, eram largas e fundas e quem era pequeno, como ela, ficava com as pernas balançando no ar e toda recostada no fundo da cadeira, era uma grande dificuldade para sair. No jardim, muito bem cuidado, plantas variadas, roseiras, samambais, palmeiras,  bananeira de jardim. Na parte lateral da casa a continuação do jardim lhavia a um viveiro de pássaros, era uma gaiola gigante, com muitas aves lindas: periquitos de cores várias, e outros pássaros que não lembra o nome.  O papagaio ficava em uma gaiola solitária na varanda perto da cozinha, de onde via tudo e falava tudo que conseguisse captar. Havia, também, um áquario com peixinhos coloridos, que fazia uma espécie de fosso embaixo do local onde onde estava colocada a enorme gaiola, como se fosse para dificultar os passários de saírem, como se isto fosse possível.
Havia um subsolo, sim havia. Ali era a área de serviço e o dormitório dos empregados. Um vão enorme com camas colocadas uma ao lado da outra. Sempre que descia ali via as camas rigorosamente arrumadas, tudo no seu devido lugar. Se a patroa não se dignava a descer ali, a sua governanta não deixava a peteca cair. Mais abaixo, uma pequena roça, uma horta e mais dependências de empregado, agora dos homens.
Tudo perfeito e deslumbrante para ela, que se encantava como carro que havia na casa, um só não, lembra que havia dois. Um era um automóvel lindo, lembra que o carro era verde, tinha uma frente ampla, mas não tinha fundo comprido, era batido no fundo, por dentro o painel era todo de madeira, com aquela marcha que ficava na lateral do volante imenso. O Outro carro era uma espécie de caminhonete, mas toda fechada e parecia que tudo era de madeira. Nesse último carro, porque era maior, fez alguns passeios.
Sim, lembra destes detalhes todos; outros existiram, mas o tempo passou e ela esqueceu, no entanto, um deles ela jamais esquecerá, tanto que, quando foi a Veneza  comprou uma miniatura  do belo vaso de murano que ficava na sala em cima de um dos móveis. Queria o verde, não havia, isto é, não no preço que poderia comprar e do tamanho que poderia  levar, mas sim o azul, que a fez lembrar de tantos detalhes, retornando a um tempo em que  os ricos achavam que sempre o seriam, que ostentavam sua riqueza como se ela fosse perene, em que se gastava sem se pensar no amanhã, em que muitas mulheres  apenas se preocupavam em achar um bom partido para continuarem com a vida que tinham dentro da casa dos pais. O tempo passou, as condições mudaram; os muranos se foram, as telas desapareceram, o mármore das escadas, se ainda existe, é pisado por outrem . O patrão morreu, a patroa resiste, já viu os seus dois filhos homens falecerem, vive com uma das filhas, que não encontrou nenhum bom partido, ambas solitárias sofrendo as suas dores interiores e, possivelmente, lembrando de um tempo que não voltará jamais, o tempo que aquele relógio de pé insistia em mostrar, mas que ninguém da casa prestou atenção.  

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