De onde está pode ver o vaso azul
que comprou em Veneza. É um pequeno murano,
uma miniatura daquele que povoou os seus sonhos desde os sete anos. Sim, é
verdade, na casa de um seu tio rico tinha alguns vasos de murano: azuis,
verdes, um colossal salmão. Os vasos ficaram para sempre em seu
subconsciente. Aliás, aquela casa tinha
coisas que ela lembra até hoje e por elas podia avaliar a fartura, riqueza da época
áurea em que seus tios viveram. Havia quadros de famosos, Mulatas de Di
Cavalcanti, um enorme na sala com uma
índia que não se lembra de quem era, e
muitos outros. Na lateral, subindo a escada havia um quadro lindo, mas era uma
paisagem. Dentro do gabinete mais um também com indígenas, salvo engano,o
fundo do quadro era rosa. O gabinete! Ficava encantada com aquele canto da casa
que não era muito freqüentado pela criançada; vivia trancado, afinal aquele era
o lugar dos negócios e as crianças não podiam entrar. A escada de mármore, que
conduzia ao andar dos quartos, era linda, o mármore branquinho era areado,
quase que diariamente, pelas empregadas da casa. Recorda-se que era areado com
pasta cristal, aquela rosinha. Acabada a
escada alcançava-se um hall onde se podia ver cinco portas. Quatro quartos e o banheiro.
Quatro quartos! Aquilo era o máximo,
quatro quartos e um somente para costura. Acreditem se quiserem: as famílias
abastadas tinham costureiras particulares à sua disposição. Do lado esquerdo,
após o quarto da costura, ficava o quarto das duas filhas do casal. Chic! Muito chic mesmo. Camas, guarda roupa, penteadeira, cômoda,
tudo igual, era o máximo da arrumação. As colchas completavam o cenário e elas
combinavam com as cortinas. A penteadeira tinha duas abas que podiam ser
deslocadas para permitir que os utentes visualizassem as costas, os cabelos. A
porta de frente era o banheiro, o qual mais parecia uma outra casa de tão
grande que era, possivelmente hoje seria o tamanho de um loft, kitinete, quarto
sala, sabe-se lá. Do lado direito da escada
mais duas portas, o do quarto dos meninos e a do casal.
O quarto do casal era uma coisa à
parte mesmo. Era enorme, tinha uma espécie
de ante sala com poltronas, uma mesinha e, logo após grandes guarda roupas que
tomavam as paredes de todos os dois lados, num outro vão ficava a cama de
casal. Nunca tinha visto uma cama de casal daquele tamanho, era enorme mesmo.
Ficava solta naquele vão enorme, mas era tão grande que não se notava que ela
reinava sozinha ali. No lado esquerdo uma porta e aí a grande vedete, o
banheiro. Imaginem vocês, há 52 ou 53 anos atrás ela viu a primeira suíte da
sua vida, suíte com direito a banheira e tudo mais, a louça decorada era o
máximo, havia flores azuis na pia, no vaso, na banheira, Ela ficava encantada
com tudo aquilo. A cama, que algumas vezes ajudou sua mãe a arrumar, estava
sempre impecável, guarnecida com colchas floridas e travesseiros e um rolo
enorme, que fazia com que os travesseiros fossem colocados quase em posição
vertical, o que dava um toque de elegância à cama. Uma porta lateral abria-se
para a varanda que dava para a rua onde a casa estava localizada.
No andar térreo somente uma sala
imensa, que abrigava a sala de visitas, então assim chamada, e a sala de
jantar, onde uma imponente mesa com doze cadeiras e tampo de vidro trabalhado
adornavam o ambiente. No centro daquela mesa, uma fruteira de cristal toda rebuscada
e de três andares, que estavam sempre com frutas lindas e frescas. No enorme móvel, que ficava na parede que
fazia divisória com a cozinha, um relógio de pé insistia em marcar o tempo,
parecia sempre estar disposto a dizer que tudo aquilo tinha um tempo certo, era
preciso cuidado.
Um móvel menor, mais alto, era um
bar, ali tinha muitas bebidas sempre. Eram duas portas mais altas de
que a do móvel grande, porque este tinha gavetas e o bar não. Mais adiante, a
cristaleira onde eram colocados os cristais, e olhe que eram muitos e lindos.
Ela ficava extasiada frente àquilo tudo.
Plantas ornamentais eram
espalhadas pela casa, na subida da escada, em um pequeno pedestal de mármore,
havia um feto, enorme e verde, lindo. À noite ele saia dali para tomar o ar e o
sereno no jardim, ao amanhecer, antes mesmo dos donos da casa descerem, ele já
estava no seu lugar de costume.
A cozinha era gigantesca. Toda cheia de armários, tudo combinado: fogão
no lugar certo, duas geladeiras nos seus lugares, duas pias. Ela ficava olhando aquilo tudo com um misto
de curiosidade, espanto, inveja. Na sua casa não tinha nada disto, muito pelo
contrário, na sua casa se lavava pratos em bacias, o banho era em bacias
imensas para que a água fosse aproveitada para o proximo banhista ou para jogar
no sanitário. Depois da cozinha varandas, varandas imensas, uma espécie de copa
avarandada onde outra mesa, com muitos lugares, servia para as refeições intimas da família.
Pela manhã a mesa estava sempre
arrumada: frutas, pão, aipim, inhame, batata doce, mingau de aveia, cuscuz,
leite, café, banana da terra cozida, jámon, queijos, ovos dentre outras
coisas. Era realmente farta aquela casa.
A dona da casa descia de roupão, ela não fazia nada, portanto, quando o
“patrão” saísse ela voltaria para os aposentos, talvez para dormir ou encontrar a roupa adequada para o evento do
dia: eles tinham muitos compromissos. O “patrão” foi diretor de hospital, presidente da
associação comercial, presidente de clube recreativo e muitas outras coisas.
Ela o acompanhava nessas ocasiões.
A varanda de entrada tinha
cadeiras e poltronas de madeiras, ela sempre gostou daquelas poltronas, eram
largas e fundas e quem era pequeno, como ela, ficava com as pernas balançando
no ar e toda recostada no fundo da cadeira, era uma grande dificuldade para
sair. No jardim, muito bem cuidado, plantas variadas, roseiras, samambais,
palmeiras, bananeira de jardim. Na parte
lateral da casa a continuação do jardim lhavia a um viveiro de pássaros, era
uma gaiola gigante, com muitas aves lindas: periquitos de cores várias, e
outros pássaros que não lembra o nome. O
papagaio ficava em uma gaiola solitária na varanda perto da cozinha, de onde via
tudo e falava tudo que conseguisse captar. Havia, também, um áquario com peixinhos coloridos, que fazia uma espécie de fosso embaixo do local onde onde estava colocada a enorme gaiola, como se fosse para dificultar os passários de saírem, como se isto fosse possível.
Havia um subsolo, sim havia. Ali
era a área de serviço e o dormitório dos empregados. Um vão enorme com camas
colocadas uma ao lado da outra. Sempre que descia ali via as camas
rigorosamente arrumadas, tudo no seu devido lugar. Se a patroa não se dignava a
descer ali, a sua governanta não deixava a peteca cair. Mais abaixo, uma
pequena roça, uma horta e mais dependências de empregado, agora dos homens.
Tudo perfeito e deslumbrante para
ela, que se encantava como carro que havia na casa, um só não, lembra que havia
dois. Um era um automóvel lindo, lembra que o carro era verde, tinha uma frente
ampla, mas não tinha fundo comprido, era batido no fundo, por dentro o painel
era todo de madeira, com aquela marcha que ficava na lateral do volante imenso.
O Outro carro era uma espécie de caminhonete, mas toda fechada e parecia que
tudo era de madeira. Nesse último carro, porque era maior, fez alguns passeios.
Sim, lembra destes detalhes todos;
outros existiram, mas o tempo passou e ela esqueceu, no entanto, um deles ela jamais esquecerá, tanto que, quando foi a Veneza comprou uma miniatura do belo vaso de murano que ficava na sala em cima de um dos móveis. Queria o verde,
não havia, isto é, não no preço que poderia comprar e do tamanho que
poderia levar, mas sim o azul, que a fez
lembrar de tantos detalhes, retornando a um tempo em que os ricos achavam que sempre o seriam, que
ostentavam sua riqueza como se ela fosse perene, em que se gastava sem se
pensar no amanhã, em que muitas mulheres
apenas se preocupavam em achar um bom partido para continuarem com a
vida que tinham dentro da casa dos pais. O tempo passou, as condições mudaram; os
muranos se foram, as telas
desapareceram, o mármore das escadas, se ainda existe, é pisado por outrem . O
patrão morreu, a patroa resiste, já viu os seus dois filhos homens falecerem,
vive com uma das filhas, que não encontrou nenhum bom partido, ambas solitárias
sofrendo as suas dores interiores e, possivelmente, lembrando de um tempo que
não voltará jamais, o tempo que aquele relógio de pé insistia em mostrar, mas
que ninguém da casa prestou atenção.
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