quinta-feira, 30 de maio de 2013

O Harém do Galdêncio

O galinheiro estava em alvoroço, o galo do pedaço estava apático, já não procurava mais as galinhas, que se insinuavam, enquanto ele fugia com evasivas idiotas.  A uma ele dizia que tinha que fazer ronda, defender o galinheiro de intrusos, a outra dizia que tinha que olhar os pintinhos recém chegados, a uma outra que ele tinha de fazer entrevistas com os frangos para saber quem poderia, no caso dele faltar, assumir o seu lugar, enfim, desculpas esfarrapadas, que as frenéticas galinhas não aceitavam e cacarejavam durante todo o dia, todas desesperadas e desconfiadas das saídas estratégicas do galo, que desaparecia no decorrer do dia sem que ninguém o localizasse nas proximidades.
O dono do galinheiro já estava cansado de correr até ali para ver o que estava acontecendo, para ele, na sua inocência galinsexual, havia algum invasor na área, e lá vinha ele com a sua espingarda para espantar quem quer que fosse.
O negócio estava tão violento que ele resolveu chamar o veterinário. Alguém, cientificamente, tinha de explicar aquele alvoroço diário, que vinha acontecendo de uns meses para cá, inclusive em relação à diminuição da produção de ovos e, consequentemente, de pintos.
O galo, exibido, quando o dono chegava perto do galinheiro, começava a cantar, abrir as suas imponentes asas coloridas  e se punha a correr de um lado para outro circundando todo o galinheiro, mostrado o seu serviço. Nestes momentos, as galinhas cacarejavam mais ainda, diziam uma para outra que aquele filho da mãe não cumpria as suas obrigações sexuais, de marido e ficava se mostrando para o patrão daquela maneira.
Galinhalda, a mais antiga das esposas, convocou uma reunião de urgência, falou com a mais fofoqueira delas, a Galianete, a terceira ou quarta que chegou no galinheiro e tinha mania de investigadora, pois questionava tudo, queria saber da vida de todos, e ainda queria acompanhar o marido, quando este tinha alguma missão quase impossível para resolver; faladeira e curiosa era a indicada para  arregimentar as demais esposas.  Galinhalda escolheu a data e, como estava próxima do aniversário do galo, fez com que todas pensassem que que o assunto seria a festa, que todos os anos era feita em homenagem ao “macho do poleiro”, teve o cuidado, entretanto, de solicitar que elas comparecessem  sem a família, porque se elas todas resolvessem trazer a prole  o negócio não ia dar certo, a reunião ia falhar, o assunto não iria ser resolvido com  as mães com os filhos embaixo das asas.
No dia designado a fila se formou na porta da entrada do poleiro de Galinhalda, que de óculos “ray ban”, com lente especial, recebia uma a uma catalogando os nomes, data de nascimento, data do casamento oficial ou não, enfim, dados importantes, a critério dela, para que se chegasse a uma conclusão técnica a respeito da abstinência do “galo”.
A primeira que chegou foi a Galinhária.  Vinha se arrastando quase, já estava bem velhinha.  Quando jovem  costumava ciscar no terreiro alheio, e foi exatamente por isso que conheceu o Galdêncio, era este o nome do infeliz. Ela deixou o seu terreiro e foi se abancar no dele. Para tê-la consigo ele brigou com muita gente, com os pais, que ainda vivos, não se conformavam com escolha, sabiam que teriam problemas futuros com o galinheiro de origem daquela galinha loura, que na verdade não era loura, aquelas penas eram   oxigenadas.  Como já era uma franga mais velha e experiente, já tinha rodado outros galinheiros da região, não tinha uma boa fama, os frangos da redondeza comentavam, já tinham pegado aquela franga, teve um que garantiu que   a comida rendeu alguns pintinhos, que ela dispensou, e cada um tomou o seu rumo.  Ela até sumiu por uns tempos também, mas voltou, e ele, com pena, deixou que ela ficasse ali, com a condição de não tentar comer os franguinhos novos e nem colocar caraminholas na cabeça das franguinhas; ela, como não tinha mais com quem contar, se conformou e ali ficou, mas ainda se sentindo um pouco dona do pedaço, tanto assim que foi logo a primeira a atender ao chamado.  Na verdade as galinhas não gostavam dela, mas por medo do macho, tratavam-na bem, mas, não tanto, pois sempre  havia alguma piadinha mostrando-lhe o seu devido lugar.
Galinhária chegou e tomou acento num dos lugares, aliás, lugares que foram marcados por Galinhalda, que gostava de uma hierarquia, afinal, oficialmente, ela fora a primeira e fazia questão de demonstrar o seu status, não que isto lhe trouxesse qualquer vantagem ou atenção de Galdêncio, coisas de galinha mesmo, orgulho idiota de quem precisa de títulos para querer demonstrar poder que não tem.
A segunda a chegar foi a  Galinlina  tinha ares de estrangeira, alta, loura mesmo, com um corpo belo. Era elegante, chamava atenção de todos, os franguinhos ficavam doidos a cada passada dela, olhavam-na disfarçadamente, caso contrário o pai teria alguma reação violenta, porque ele era muito ciumento com as suas galinhas, ninguém podia sequer, olhar, passar uma asa, uma pena, tudo era motivo de briga violenta, expulsão do terreiro, enfim, coisa de macho traído, galicorno.   Ali as regras eram claras, se pé de galinha não matava pinto, filho de galo não comia galinhas no mesmo terreiro, e a vida ia seguindo assim, com todos observando o costume, que era passado de pais para filhos há séculos, a regra era aceita e observada, os poucos que dela fugiram foram expulsos e terminaram comidos, ou pelos humanos, ou por animais que circulavam pelos arredores e que eram fascinados por carne de frango novo.
Galinlina teve alguns problemas de adaptação no terreiro, porque ela também já pertencera a outro terreiro e fora, sem qualquer cerimônia, conquistada por Galdêncio, que a trouxe para o galinheiro já com um frango embaixo das asas. A estória durou pouco, tempo suficiente, entretanto, para  a reprodução de  uma franga e um frango, que,  um dia, se foram do galinheiro: uma para o estrangeiro, o frango para sua cidade natal, mas a mãe ficou  ali nas proximidades do galinheiro, até que  foi convidada a, novamente, fazer parte do harém, o que aceitou de pronto, estava mesmo ficando velha e já não  podia disputar espaço com tanta franga nova, agora  ela já era chamada de  “gaveiranha”   (galinha velha e piranha), o que não recomendava bem para o Galdêncio, que assim tentou proteger a sua reputação.
E lá vai a fila andando, agora quem dava as caras era Galianete, esta já se sabe das suas qualidades, foi a responsável pela divulgação da convocação. Chegou, como sempre, chegando; não dava para não perceber a sua chegada, tinha um riso lindo, um belo rosto, e um bico ferino. Não reproduziu, e parece que isto lhe deixava irritada e diminuída perante as demais esposas  do Galdêncio. Sofreu um pouco na mão dele, mas não se intimidou e, apesar de dar umas escapadelas, pois se envolveu até mesmo com os parentes da Galinhalda, ficou ali e, de vez em quando, num ato de generosidade do Galdêncio tinha a sua chance.
A próxima, como sempre, vinha cheia de orgulho, parecia ter o rei na barriga. Entrou no terreiro trazida por Galdêncio com toda a pompa, vinha ainda de véu e grinalda, a aliança pendurada no pescoço trazia pedras encrustadas. Galinice sonhou em ser um dia a dona do pedaço, a preferida, a escolhida, qualquer coisa assim, mas terminou como todas as demais, encostada, ou melhor, teve um final pior de que o das outras, pois o Galdêncio comeu a sua grande e melhor amiga, é o que contam, e ainda a trouxe para o seu terreiro, forçando uma situação insustentável e que deu muitas cacarejagem, mas, enfim, tudo se aquietou. Tem um filho que lhe é de uma fidelidade imensa o Franguei, que lhe devota uma profunda atenção e nutre um grande desprezo pelo pai, mas ela não deixou a pose, mesmo perdendo o seu status, que ela pensava ter, de primeira dama para a melhor amiga, que ela, infelizmente, tinha de engolir no dia a dia do galinheiro. Chegou, olhou com superioridade para as que já estavam nos seus lugares e muito a contra gosto tomou o seu assento na cadeira de número quatro.
A quinta se aproximava, penas castanhas anunciavam a sua chegada, era bonita, sempre o foi, estava mais velha, mas nada que ofuscasse a beleza da sua juventude, que todos podiam notar somente em olhá-la hoje.  Estava com um roupa curta, afinal ela ainda queria agradar ao Galdêncio, que gostava que ela mostrasse as pernas, que eram, efetivamente, bonitas, hoje já apresentavam alguns sinais dos tempos, gomos de celulite já começavam a macular o que deveria ser imaculado sempre, mas elas ainda chamavam atenção.  Falou com todos e se dirigiu para o seu lugar, marcado com o número cinco. Ela não se incomodou com o número, sabia exatamente da sua posição no ranque, o que não gostou foi exatamente de estar acomodada junto da sua ex-amiga, não sabia qual poderia ser a sua reação, mas teve de se conformar, regras são regras e Galimira sentou-se ali, todavia  ficou sempre na defensiva.
Galinhalda olhava para todas, mas ainda estava faltando gente. Perguntava-se, e, naturalmente, todas faziam a mesma pergunta interiormente: Será que a Galinova não vem? Elas bem que souberam do boato de que ela tinha abandonado o terreiro, e um dos pontos da pauta era exatamente este, o fato do abandono do galinheiro por parte de Galinova, a mais jovem delas, que teve autorização até para estudar a mente das demais, fez até mesmo especialização. Dizem, as más línguas do galinheiro, que o título foi comprado, que a monografia de final de curso foi feita por terceiro, mas o fato é que ela tinha especialização em coisas da mente, mui principalmente, da mente das “ galinhesposas galdêncio” e, de vez em quando, queria aplicar estes conhecimentos nas demais consortes do seu consorte; o título da monografia: “Galinhas no poleiro galdêncio – uma harmonia imposta”.
Aguardaram um pouco e, de repente, aparece a Galinova, mas ela não estava só, vinha acompanhada do Galdêncio. Todas se entreolharam, aquilo era mesmo uma traição sem precedentes, pois não e que todas estavam ali para discutir qual o motivo da apatia sexual do  Galdêncio  e ela vem exatamente com ele!!!!!. O que ela queria mostrar? Que ele só estava comendo ela, que era ela, sozinha, a dona do pedaço?  O alvoroço foi geral. Os cacarejos  viraram  cacalavrões.  Chamá-la de galinha não adiantava,  afinal ela era mesmo uma,   chamaram-na de galinranha, galinhuta, galincana, galingraça ela não estava nem aí, desfilava de asas dadas com o Galdêncio que, como sempre, mostrava o seu desdém, o seu cinismo o seu desprezo pelas suas consortes. Todas perceberam que a reunião estava cancelada e que nada ia mudar, entenderam perfeitamente o recado.
Quando cabisbaixas se dirigiam à porta de saída, algo inesperado acontece: uma poeira ao longe começa a aproximar-se rapidamente, muita zoada no galinheiro, todos abrindo espaço para quem vinha ali levantando a poeira daquela maneira.  Quando a distância estava menor, todos puderam vislumbrar um frango lindo, coxas grossas, penas que começavam castanhas e terminavam com tons vermelhos, e com algumas mechas pretas: a crista ereta, demonstrava toda a sua juventude. Vinha correndo muito, dir-se-ia que quase voava. Ofegava quando  chegou junto a todos. Aí o inesperado, o impossível, o inusitado: “Galdêncio! Soube que estavam armando um complô contra você e, assim que soube, sai do terreiro e vim te salvar, não vou deixar que matem o meu grande amor, vamos embora deste galinheiro sujo, com tantas galinranhas que só querem se aproveitar de você; eu já tenho o espaço reservado para nós lá no gaylinresorte, onde fomos o ano passado, você lembra não é?”
Todas atônitas e incrédulas viram Galdêncio soltar a asa de Galinova e tocar na crista do frango, num afago digno de cenas de filme de amor, e, ato continuo, de asas dadas seguiram juntos sob olhar de todos e todas, que, entre indignados e incrédulos, acompanharam os dois até onde a vista pode alcançar, sem nenhuma palavra, sem nenhum comentário. Naquele momento as palavras seriam demais, estava tudo explicado, não havia qualquer  dúvida do que estava acontecendo, e o galinheiro ficou falado por muito tempo, as galintraídas não arrumaram  nenhum  outro galo para lhes fazer delícias, foram condenadas por todos, afinal:  galinha que se preza não perde galo para frango!!!!!!!! 

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