Mais uma vez a emoção
tomou conta de mim. Todo o meu corpo sentia aquela onda de sensações, que eu
não sei muito bem explicar. Os pelos se eriçam, o coração aperta, as lágrimas
rolam face abaixo. Não consigo controlar mesmo, chega mesmo a ser violento.
Os cânticos para os
orixás continuavam, as preces eram feitas com muita fé. O babalorixá conduz a
sessão. Todos de branco, o símbolo da
pureza; sentados de um e de outro lado da mesa, os guias ficam ali chamando
pelas suas entidades.
De repente, ouço um grito
alto, um palavrão. Um espirito não bem resolvido chega ali, vai mandando, aos
berros, que saiam da sua frente. A guia tem o rosto transtornado. A face
endurecida, os olhos esbugalhados, as mãos estão fechadas, parece que ela vai
bater em qualquer um que chegue à sua frente. Sai da mesa derrubando tudo, dá
duas voltas por ela dizendo “Sai da minha frente porra”! Não sei o que sinto neste momento, estou
assustada, mas vejo, de perto, aqueles olhos fixos e cheios de ódio quase se
fixarem nos meus.
De repente a guia
volta, está mais calma. Rezam todos o Pai nosso, o babalorixá agradece a visita
e pede luz para aquela alma, depois fala que continuará as preces interrompidas
por um espirito que ainda não encontrou a luz, Oramos outra vez.
Fico rezando o Pai Nosso
e a Ave Maria; percebo, agora, que de tanto não rezar, já não me lembro direito
da Salve Rainha e nem do Credo, falhas da memória e da fé, mas sei toda a Ave Maria
e o Pai Nosso, as orações que sempre faço.
Estou ansiosa, visto
branco e azul, fiz isto porque a festa era para o Marujo, quero vê-lo de
qualquer maneira, tenho grandes motivos para isto, conheço alguém que tem uma
fé inquebrantável nele. A fé é tamanha que a pessoa se dedica a coisas do mar,
e o seu marujo o acompanha, talvez por isso mesmo tenha tido tanto sucesso
profissional e tenha conseguido superar muitas coisas, inclusive alguns erros
lamentáveis, que deixaram marcas em muitos, mas isto não vem ao caso. O caso é
que estou aqui para ver o Marujo, porque queria ver como a entidade se comporta.
Ela gosta de beber. Já me disseram que já viram uma senhora, que eu até
conhecia, entretanto nunca tive oportunidade de vê-la manifestada, beber uma
grade de cerveja quente, e, ao retornar do transe, estar bem, sem ter mesmo
cheiro de bebida. Não sei se acredito ou
não, mas o fato é que isto me impressionou muito e eu queria ver. Sou que nem
São Thomé.
Os cânticos continuam,
mas o Marujo nada. Alguém se manifesta: é Oxum que chegou por ali, um canto lindo,
uma senhora que estava na plateia é quem recebe a entidade, fico mesmo
emocionada, o canto é lindo, ela não canta, na verdade murmura a música. Estou
mesmo emocionada, é lindo, parece que saio dali por alguns momentos, me vejo em
algum lugar com muita água, águas límpidas, claras, consigo ver, ao fundo, muitas
pedras. Há uma pedra grande na beira do rio, e ali está uma mulher linda,
vestida de azul e dourado, que canta aquela mesma música. O pelo do meu corpo
está eriçado, minhas mãos se juntam, rezo, peço para aquela entidade olhar
minha mãe, meu filho e todos da minha família. Ela vai embora, mas a sensação
continua.
Mais uma entidade se
manifesta. Reconheço a saudação, Sr. Boiadeiro, era assim que minha mãe dizia,
quando, mais jovem, frequentava a casa de Dona Zuzu, onde fui com ela muitas vezes,
desde o Alto das Pombas até no Nordeste de Amaralina. Ficava ali olhando tudo e sem entender muita
coisa, mas recebia as bênçãos dos caboclos, entre eles, o Boiadeiro, que quando
chegava alguém apressava-se em lhe dar o chapéu de couro. O cavalo é uma
senhora que está bem perto de mim,
levam-na dali e ela vai para a mesa.
Os cânticos, que eram
acompanhados somente pelas palmas ritmadas de todos, agora já se fazem
acompanhar dos atabaques, é uma crescente de emoções. Os sons dos atabaques ecoam na sala, parece
que também no coração dos guias e das suas entidades, que uma a uma se
manifestam, mas nada do marujo.
Os guias que estão
manifestados saem da mesa, vão vestir as suas vestes. Muitos caboclos se fazem presentes, mas o
boiadeiro se manifesta em mais guias, é realmente interessante. Tomo um banho de pipoca.
Fico olhando o rosto de
cada uma das pessoas que estão manifestadas, olhos fixamente para os rostos
delas, e tudo diferente. De repente um susto:
há uma moça, tem um rosto lindo, que está com um charuto na mão, de
repente ela coloca o lado que está queimando dentro da boca, fico parada,
estática, não consigo desviar minha atenção dela, e ela tira o charuto em brasa
da boca como se nada estivesse acontecendo. Penso comigo: ela deve ter queimado a boca toda, mas não é
assim, ela faz isto inúmeras vezes, fuma ao contrário, a fumaça sai pela ponta
do charuto que ficou do lado de fora. Fico
extasiada, incrédula, mas aquilo é verdade, eu estou vendo mesmo, não há
dúvida.
De repente o babalorixá,
que por incrível coincidência chama-se Fabio, começa a falar algo, percebo que
não é mais ele, e alguém me diz: “O marujo chegou”! Fico a olhar para o homem, não tiro os olhos
dele de maneira alguma. Ele vem andando
cambaleante pela sala toda. Vai aos quatros cantos da casa e faz uma
reverência, depois alguém lhe dá um cigarro aceso, que fica direto na sua mão.
Alguém me fala: “Só fuma Carlton”. Dou risada e digo que o danado é
exigente. Outra pessoa traz uma caneca
de metal e cerveja. Ele pega a caneca e coloca no lado direito da sala, diante
de um altar, onde já se encontra uma garrafa de rum, eu acho, e começa a
cumprimentar as pessoas. Sou eu a segunda pessoa a ser abraçada. O abraço é muito
forte, balanço, não seguro o soluço, aperto o corpo do guia, e ouço ele dizer
no meu ouvido “A moça tem o pé no barro”. Ele se afasta um pouco e me pergunta:
“Você quer navegar comigo? Vai se
entregar mesmo sem medo?” Olho sem
entender direito, mas digo que sim”. Ele me abraça outra vez e segue cumprimentando
as demais pessoas. Fico com as palavras
na cabeça, mas sigo os passos do marujo que tem uma dança bem bonita, é um vai
e vem para os lados, cambaleante; os seus movimentos lembram os movimentos das
pessoas em barcos. Estou impressionada.
Servem bebidas: é cerveja, todos bebem, tantos alguns orixás presentes quanto a
plateia.
A amiga que está
comigo, pinguça como eu, também bebe. Estou
mesmo envolvida em tudo aquilo, atenta, incrédula, mas envolvida, sensações
diversas percorrem o meu corpo.
Um caboclo chega no
recinto. O homem do meu lado diz que é Eru.
Dou risada e lembro de minha mãe e de Camaçari, na casa do pai de Santo
que minha mãe ia e levava, a mim e a Tininho, os dois guarda costas dela. Seu Gerônimo era um homem alto,
cabo-verdiano, como se costumava dizer, e havia um outro homem na casa, um
senhor alvo e ruivo, diziam que ele era
filho de seu Gerônimo, mas para mim a informação era errada, pois na minha cabeça era impossível que uma pessoa da pele negra
tivesse um filho da pele branca, bom,
mas o fato é que diziam que o Geraldo, este era o nome dele, era filho do homem, talvez na minha inocência
não entendesse que era filho de santo, e não filho natural, é o que tenho certeza hoje. O certo é que seu Geraldo recebia o caboclo
Eru. Porra, era um Deus nos acuda quando o caboclo chegava. As crianças, ai
incluindo eu e Tininho, tinham de ser escondidas, diziam que ele comia elas.
Pense aí o medo. O danado do caboclo
metia medo mesmo, era brabo, como o de ontem, dizia que não gostava de risada,
de brincadeira. Seu Geraldo, ou melhor,
a entidade, matava um galo torcendo o pescoço, uma galificina no terreiro, e as
crianças não podiam ver isto, todas colocadas em lugar que não vissem estas
cenas, metiam a gente até mesmo embaixo das saias, puta merda! Pensem aí,
aquelas velhas suadas!!!!!!!!.
De fato, o Eru chegou
dizendo exatamente que não gostava de risada, mas que ele não era um caboclo
ruim. Cânticos em sua homenagem são
feitos, “Eru. Eru, o caboclo que come cru” Este come cru faz com que eu volte
ao terreiro em Camaçari, e o come cru me dá a nítida sensação que sou eu que
vou ser comida.
As danças continuam,
cada uma mais bonita que outra, os orixás chegam em frente aos tocadores do
atabaque e iniciam o seu cântico, os toques são diferentes, as danças de cada
um também. Acho engraçado que eles
também mandam parar aquela, para pedir uma outra, é muito, mas muito
interessante mesmo.
Agora é o boiadeiro de
um dos guias, que é um homem, que vem cumprimentar as pessoas, ele chega até mim
me dá um forte abraço, fala algo comigo que eu não entendo. Alguém me diz o que
é, agora já não me lembro. De repente ele me diz: “Você realizou um sonho não
foi?” Associo ao doutorado e digo que sim, e, automaticamente, digo que vou
realizar outros, e ele diz que vou mesmo, aí eu já tô pensando na viagem. Ele
fala alguma coisa de viagem, mas eu não entendo direito. Me diz que todos os
meus caminhos estão abertos, aliás, sempre ouço isto, seja no Tarot, na Umbanda,
enfim, os caminhos podem mesmo estar abertos e devem estar, o problema é que
para percorre-los falta dindin, só isto.
Estou do lado de fora
da sala, bebo cerveja com o pai de Felipe, um antigo funcionário da Justiça, do
meu tempo por lá, ele gosta de falar de mim para as pessoas, acho engraçado,
apenas acho engraçado; faz questão de falar do meu doutoramento duplo, doutora
e doutora, fico olhando a cara das pessoas, alguém fala comigo a respeito de um
processo, eu defendo os advogados e coloco a culpa na Justiça, e efetivamente
é. Eles questionam que outros entraram depois e já receberam. Digo a eles, mais
uma vez, que tudo depende da Vara, do Juiz, enfim, eles concordam que os
processos não estão no mesmo lugar. Uma
conversa descabida para o local, mas como a propaganda foi feita, eu tenho de ser,
ao menos, gentil. O que penso que fui.
De novo o boiadeiro vem
falar comigo. Fala que eu preciso fazer
uma amalá, eu acho que e este o nome, diz que eu fiz, mas que eu coloquei no
lugar errado, é preciso concertar este erro. Digo que vou fazer, e vou mesmo,
se não ajudar, também, não atrapalha. Manda que eu banhe as pernas de minha mãe com
pata de vaca, vou procurar e vou mandar para casa dela. Fala de meus filhos e netos, acho
interessante.
Pergunto no ouvido uma
coisa, e ele só faz me olhar e diz “Você tem alguma dúvida”. Acho interessante
porque ele diz exatamente o nome da pessoa a que me reportei na pergunta. Fico boquiaberta.
Recebo um prato de
comida. Tem farinha, arroz, bode e
galinha. Como tudo, tá gostoso. Não identifico a carne, só depois é que soube
que era bode, o certo é que tava bom. Fico por ali, vejo os caboclos
conversando entre si, muito interessante mesmo, vejo eles falarem com as
pessoas. O boiadeiro fala comigo outra vez, diz que tudo vai dar certo na
faculdade, que eu não me preocupe, e que eu vou escrever outro livro, diz que
eu preciso fazer um livro sobre aquilo ali, fico olhando boquiaberta para o
guia manifestado, um livro sobre aquilo ali. É realmente vou fazer, se isto já
estava nos planos, agora vou tentar mesmo, vou ligar isto tudo ao trabalho que
já fiz, e ver se consigo associar estas práticas, com a aplicação da justiça
tradicional.
O marinheiro chama
todos, diz que está na hora de ir embora, que ele tem de navegar mais um pouco,
um a um os orixás seguem o marujo, vão novamente tomar assento nos seus lugares
na mesa. Cada um se despede com o seu peculiar grito de saudação, ou de guerra,
quem sabe, e, mais uma vez, rezamos o Pai Nosso e Ave-Maria. Acabou a prática.
Volto para casa com a minha amiga e dou carona a Vu, e digo a ela para ela
fazer o que o orixá mandou. Ela comenta sobre o que o caboclo disse a ela a
respeito da irmã e da filha, dizendo que realmente foi verdade. E eu falo para
ela fazer o que o orixá mandou e complemento: ou você crê ou não: se você crê
faça o que ele mandou. Vou fazer meu “amalá”, vou sim e, certamente, voltarei a
navegar nas águas do mar do senhor marujo, eu e aquele que tanto acredita nele.
E que Deus nos acompanhe, como bem disse o
guia, quando da nossa saída.
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