quinta-feira, 23 de junho de 2011

A que foi sem nunca ter sido

Acaba de voltar de uma festa, era a madrugada do dia 23 para o dia 24 de Junho. Tinha dançado com os nativos do lugar, como sempre o fazia. Devia ser meia noite e meia quando chegou a casa e foi dormir. O celular estava em baixo do travesseiro por todos os motivos, primeiro porque ficava sempre sozinha numa casa imensa, segundo porque podia receber, a qualquer momento, ligações do outro lado, e foi o que aconteceu.
- Estava na festa?
- Estava o que?
- Na festa de São João
- Você estava onde?
- Na rua, na festa de São João aqui da aldeia.
Uma voz muito chateada pergunta:
-Você dançou com alguém?
- Claro que dancei! Então eu vou para uma festa de São João e não vou dançar?
Silêncio total, e um clic do desligamento do telefone.
Ela dorme tranqüila, até porque tinha tomado muitas e estava com sono. Pensa: amanhã eu ligo e ele já está melhor.
Acorda lá pelas sete da manhã, cumpre toda a sua rotina. Vai andar, volta, passa na praça vê o movimento. A praça esta imunda, copos plásticos espalhados, papéis, pelo chão, os resquícios da festa da noite anterior. Ainda há bêbados na rua, alguns dormem embaixo da amendoeira da praça, enfim, tudo sinaliza que ali houve mesmo um forró bom. Segue em direção a Igreja, que, como sempre, esta fechada, o que não impede que se aproveite a sua balaustrada para olhar o mar que está lindo. Fica ali uns instantes, olha o mar,  pede a Deus, como sempre, ajuda para si e para todos,  e volta para casa.
Limpa a varanda, porque o empregado não veio, limpa a casa, ajeita as coisas e começa a ligar para o número que lhe fez a ligação noturna
Uma, duas, três, quatro vezes e ninguém atende.
Continua nos seus afazeres, faz o que tem de ser feito, enfim, lê um pouco, não pode deixar de lado a leitura de nenhuma maneira, tem prazo para entregar o que esta fazendo.
O telefone fixo toca, ela quase se arrebenta para sair do lugar onde estava e chegar até ele, certamente era ele que ligava.
- Alô!
- Ta tudo bem, você ontem bebeu muito e fiquei preocupado.
- Claro que tá tudo bem. Já andei, já fiz tudo, to estudando.
- Você tá lembrada que vem almoçar aqui em casa?
- Porra, desta parte eu não me lembrava não, mas tudo bem. A que horas?
- Lá pelas duas, antes passe no campo, pois tem muito licor para tomar, muito amendoim para comer.
- Tá bem, mais tarde apareço
Continua a tentar falar com o outro lado. O tel. chama, chama; uma duas, três, quatro, cinco vezes, chama que chega a desligar.
- Puta que pariu! O homem se aborreceu mesmo, pensa consigo
Tenta não insistir, não ligar, pensa que mais tarde ele liga, volta a estudar, mas não se concentra, começa a ficar muito angustiada, porque queria mesmo falar com ele, fazê-lo entender que não tinha problema algum em ter dançado com os nativos, ah se ele visse os tipos! Nem ia pensar em nada, muito pelo contrário, ainda ia, no seu estilo, gozar a cara dela.
Levanta e tenta outra vez ligar. O telefone chama muitas vezes. Já estava prestes a desligar quando uma voz de mulher atende.
- Tô!
- Este telefone é do Sr. Vasco?
- Quem estar a falar?
Desliga o telefone e começa a pensar mil coisas. Ah sacana, só foi dar uma colher de chá e ele já apronta, agora vou ligar até ele mesmo atender,É e é o que faz. Liga muitas vezes e ninguém atende, já começa a achar que a ligação que fora atendida fora errada, discou numero errado. Liga mais uma vez.
- Tô
A mesma voz de mulher que atendera antes.
- Este telefone é do Sr. Vasco?
- É sim. Quem queria falar com ele?
- Uma amiga.
- Uma amiga tem nome não é?
Desliga o telefone puta da vida, e pensa: este sacana vai ter de atender, não dá para parar agora, vou ligar outra vez.
Liga muitas vezes, muitas mesmo, desiste, fica retada, mas desiste.
De repente uma ligação.
Alô.
Do outro lado: - Aqui quem esta a falar é a filha do Sr. Vasco. Eu não sei qual a ligação que tinhas com o meu pai, mas ele faleceu hoje pela manhã, favor não ligar mais, respeite a dor da minha mãe.
Toma dois sustos: o primeiro por saber da morte, segundo pelo “respeite minha mãe”
Então ela ia desrespeitar ninguém, nunca teve este feitio e agora vem uma pessoa qualquer, que ela desconhecia, lhe dizer isto. Fica achando que tudo não passa de uma grande brincadeira, mas, mesmo assim, fica desesperada. O que fazer? Como agir? Lembra da amiga e do número de telefone do trabalho dele.  Liga
- Alô! Inês, tá tudo bem?
A outra feliz pela ligação: - Olá, está tudo a correr bem? E tu, como estás? Fez muita festa no São João daí?
- Um pouquinho.
- Que tens? Sua voz ta esquisita.
- Inês, você tá sentada? Se não estiver, sente-se.
- O que aconteceu?
- Vasco faleceu.
- O que?
- Isto que você ouviu. O Vasco faleceu hoje pela madrugada; e conta toda a estória e pede que ela ligue para aquele número e procure saber se isto realmente era verdade.
A amiga, coitada, toma um susto, talvez pior de que o dela, fica muito agoniada e diz que assim que tiver qualquer noticia liga.
Bom agora ela já não estuda, não faz nada, fica só a pensar naquela noticia. Será mesmo verdade? Não, qual o que! Isto é brincadeira de alguma sacana; então um homem jovem, com 53 anos, bonito, que amava a vida, ia morrer assim, sem mais nem menos? Claro que não.
O telefone toca. Ela vai atender aflita. Quer que digam que foi uma brincadeira mesmo.
- Diga lá Inês. O que aconteceu?
- Infelizmente é verdade. Vasco faleceu mesmo hoje pela manhã. E relata o que o na empresa lhe disseram:
- À horas ele não apareceu para trabalhar, tinha de ir à obra e depois tinha um encontro marcado na Secretaria de obras onde iria falar com alguém para agilizar a documentação do projeto. Não apareceu e o chefe ligou. A filha diz que ele está dormindo e o homem pede que ela o acorde, porque ele tinha uma coisa muito importante para fazer e estavam todos a espera. A filha, segundo o relato, deixa o telefone e vai chamá-lo. O homem diz que só ouviu o grito: ele está gelado!
Agora era mesmo real. Ela não sabe que reação ter, se chora, se ri, sei lá. Nunca perdera ninguém nestas condições.
Fica ali, como sempre, sozinha, curtindo uma dor que não percebe muito a razão. Questiona Deus:  por que, agora que eu pensava que tinha encontrado alguém certo, que ia me fazer feliz, você o tira assim? Por quê?
Não tem o que fazer. E vê que a hora do almoço se aproxima. Veste a roupa e sai andando nas ruas, que neste dia, não tem o mesmo colorido dos demais, tudo esta cinza, nem vai chegar perto do mar, porque ele, também, deve ter ficado cinza.
Chega à casa do irmão e este lhe pergunta: O que você tem? Tá com uma cara: Vá lá, diga logo o que se passa.
E ela diz: Pois, você esta diante de uma futura esposa; agora viúva. O meu pretendente a marido acaba de falecer. Foi-se antes de ter sido.
O irmão apenas a abraça; choram ambos, cada um sabendo o seu motivo. Ela porque está, mais de que nunca, só outra vez. Perdera, mais uma vez, a esperança de ser feliz;  ele, por saber a importância daquele fato na vida daquela a quem ama  e que tantas vezes viu sofrer.
  

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