terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Mito ou Realidade? As minas de Gabriel Soares


Estou em casa sozinha preparando, mais uma vez a ceia do final do ano.
 Lembro-me que, no ano passado, o senhor Garcia me apareceu sem mais nem aquela exatamente nessa mesma situação. Pensei comigo mesmo: Seria tão bom se aquele velho chato me aparecesse com alguma novidade da Bahia quinhentista! Sabia, entretanto, que isto seria quase impossível, até porque, da última vez que o senhor Garcia apareceu, foi quando me disse que ia reformar o seu testamento para me colocar nele como beneficiária. Lembram que ia me dar Arembepe? Penso que ele ficou muito aborrecido com a minha reação, ou então, ele se deu por morto mesmo, e se foi para o seu lugar no infinito e aceitou a sua morte e deixou o seu espírito descansar.
Continuei nos meus afazeres, mas, de repente, um calafrio imenso, os pelos eriçados e sentindo a presença de alguém ou alguma coisa estranha na casa.
- Bons dias! 
De imediato reconheci a voz do Senhor da Torre. Fiquei excitada e ao mesmo tempo apreensiva. Certamente o senhor Garcia não tinha qualquer problema em aparecer onde quer que fosse, bastava querer, mas fiquei inclinada a perguntar-lhe como me achou.
Eu tinha me mudado de casa e já estava mesmo achando que este era um dos motivos do desparecimento do Senhor Garcia. Olhe que tem horas que me acho louca mesmo, tenho de concordar com as pessoas que me acham assim e sem qualquer vergonha verbalizam este pensamento, e é bem assim eu me sinto em relação a esta estória com o Senhor da Torre.
=Bom dia Senhor Garcia, quanto tempo?
-Diga-me lá: por que não avisaste que mudaste de direção? Estivemos em tua casa em Arembepe algumas vezes e demos com os burros n´àgua.
Sorri com a expressão, e disse: Oh senhor Garcia eu não sei como encontrá-lo, aliás, da última vez que o senhor esteve comigo, disseste-me que estava no hospital da Misericórdia. Passei lá outro dia, no dia 04 de dezembro e até fiquei inclinada a entrar.
Pelourinho
Igreja da Misericórdia
Fiquei atônita, incrédula com o que acabei de falar, então eu iria entrar na Misericórdia para ver o senhor Garcia em pleno dia de Santa Bárbara e em pleno ano de 2019? Endoidei de vez, este homem conseguia me tirar do prumo mesmo.
- E ainda estou, disse-me ele, mas, como vês, vivo.
- Felizmente , felizmente. O que tem de novo para me contar? Antes, porém, esclareça-me em que ano estamos.
-Como em que ano estamos? Estas de borla comigo?
-Claro que não, mas preciso saber para tentar me localizar, inclusive no pedaço da madeira preta.
-Estamos em 1609. 
- 1609, quem é o governador?
Extas mesmo de borla comigo, então não sabes quem é o governador?
- Diogo Siqueira
E Francisco de Souza.?
- Também, é que mais uma vez o Rei dividiu o governo do Brasil, ficando aqui na Bahia o Diogo e, no Rio de Janeiro, o Francisco de Sousa
- Francisco de Sousa? Aquele que era um aficionado por minas?
Pelourinho
-Sim, ele mesmo, sabes que ele   tanto chafurdou na Corte, que terminou por ser nomeado para Governador do Sul, governo com sede no Rio e janeiro e ainda conseguiu a promessa de receber o título de nobreza ligado às Minas.
- No Rio de Janeiro?
-Sim, por que o espanto?
Ora, se ele tinha interesse em encontrar as minas que foram identificadas por João Coelho de Sousa, irmão de Gabriel Soares de Sousa deveria ficar perto do Nordeste, especificamente aqui em Salvador da Baia, ou em Sergipe, nunca no Rio de Janeiro.
- O importante para ele era estar aqui, não importa qual o lugar, até porque, também em São Paulo há perspectiva da existência de metais, não só lá como alderredor.
Sim, e ele em encontrou tais Minas?
Neste momento o Senhor Garcia deu uma larga risada. – Não ele não encontrou.
Agora quem ria era eu, mas ria por dentro, até porque o senhor Garcia não poderia saber se o Francisco tinha ou não encontrado tais minas, afinal ele falecera em maio de 1909. Francisco havia retornado ao Brasil em janeiro daquele ano e ido para o Rio de Janeiro, e pouco era o contato de ambos, bem como as notícias. Possivelmente, o Senhor da Torre não saberia do que acontecera entre janeiro e maio de 1909 com relação às minas.
- Mas diga-me lá Senhor da Torre, quem era mesmo João Coelho de Sousa
- Já disse-lhe: era irmão de Gabriel Soares de Sousa, este eu conheci muito bem, porque era um rico dono de engenho aqui mesmo na Bahia
“Gabriel Soares de Sousa, nascido em Portugal cerca de 1540 emigrara para a Bahia no fim da década de 1560. Durante uma permanência de dezoito anos na Bahia tornara-se um bem-sucedido plantador de cana e participou do conselho municipal em 1580. Seu irmão João Coelho de Sousa, descobriu depósitos minerais no interior da capitania, morreu antes de poder explorar essa mina, mas deixou a Gabriel um mapa que lhe indicava a localização. Em 1584 Gabriel foi à Corte com uma petição para a concessão dessa e quaisquer novas descobertas. Recebeu-a em 1590, ganhando a patente de Governador e Capitão-mor da Conquista e Minas do Rio São Francisco. Regressou à Bahia com 360 homens, comandou uma expedição ao vale superior do Rio Salitre na cabeceira do São Francisco. Morreu na viagem de regresso e foi enterrado no mosteiro beneditino da Bahia sob uma lápide com a inscrição “aqui jaz um pecador” (...) (RUSSEL WOOD 1939: 55-56).[1]
Como sempre, notei que o homem não estava gostando da conversa, que girava em torno de uma obra que não era dele. Ele adorava falar de si e das suas proezas. Gostava de endeusar-se, de falar da sua Tatuapara e da defesa que esta representava para a cidade do Salvador.  Falar de uma figura importante como era o Gabriel Soares[2] era muito para ele, acontece que não dava para mudar o assunto, e quando insisti mais um pouco, ele, como sempre, deu as costas e foi-se, sem saber o que eu tinha de falar para ele sobre estas minas e  da importância que teria o seu neto Francisco Dias D´Ávila para encontra-las.  Foi bom até, porque ele não iria acreditar mesmo que Francisco chegaria a tanto, todavia ele vai saber, porque eu tenho certeza que o Senhor Garcia, morrendo ou não efetivamente em maio de 1609, não deixará de aparecer para mim e eu terei a oportunidade de contar-lhe tudo o que o seu neto representou para a nossa Bahia, perenizando o nome dos GARCIA D´ÁVILA.[3]. 







[1] RUSSELL-WOOD, A.J.R. Fidalgos e Filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755(trad. De Sergio Duarte, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981, Coleção Temas Brasileiros, 20.
[2] Gabriel Soares de Sousa escreveu o Tratado Descriptivo do Brasil, (1587) uma das grandes fontes para o conhecimento da Bahia Colonial, pode ser encontrado na Biblioteca Digital do Senado Federal.
[3]  Ver.  O feudo: a Casa da Torre de Garcia d'Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Bandeira, Luiz Alberto Moniz. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 2000: 

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