Eu
estava muito apreensiva em relação ao próximo encontro com o Sr. da Torre. Não
podia sequer imaginar qual seria a sua reação quando me encontrasse outra vez depois do acidente do barco, aliás, nem sei mesmo se ele vai aparecer outra vez,
o que seria uma pena, porque se isto acontecesse eu não saberia mais nada sobre
o Caramuru e nem sobre outras coisas, fatos acontecidos na época.(1550-1609).
Estávamos
exatamente na parte em que ele ia me dizer porque ele ganhou a alcunha de
Caramuru. Eu estava tão incrédula de uma nova visita que resolvi fazer, eu
mesmo, minha pesquisa e esquecer a contribuição do Sr. da Torre.
Entretanto
o homem era imprevisível, e logo que comecei a fazer o texto com as descobertas que fiz através dos muitos
autores que escreveram sobre Caramuru, o homem apareceu:
-
Quer dizer que você e o seu marido queriam me matar?
-O
que é isto Sr. Garcia, quem poderia adivinhar que a outra lancha ia passar e
fazer uma marola tão intensa? O Senhor viu que todo mundo se desequilibrou, mas
o senhor estava muito próximo da lateral
e o resultado foi o que ocorreu.
-Se
eu não fosse um exímio nadador, agora estava sendo comido por peixes.
-
O Que é isto Senhor Garcia! O Sr é imortal
Acho
que ele não entendeu bem o que eu disse, ou então fingiu que não entendeu. Não
sei, este homem é dissimulado, e a gente não pode confiar muito nele. Quanto pior, quando estava mesmo com cara de
poucos amigos e sem esquecer o que tinha acontecido. Continuei falando que ele
era imortal, que o seu nome até hoje era lembrado como um dos grandes e
poderosos homens da Bahia Colonial, enfim, queria dar corda ao narcisismo do
Sr. Garcia. Falei muito, falei do quão ele era importante, do quanto sua
Tatuapara foi determinante nas tentativas de invasões, como ele construiu o seu
grande latifúndio. Não falei em momento algum das derrotas, só queria encher a
bola dele. Ele, olhando fixamente para mim, parecia entender o meu jogo, mas o
narciso falou mais alto e ele começou a rir e a fazer questionamentos e
argumentações.
-Não
sei quem são estas pessoas de quem fala! Parece que falas comigo como seu eu já
tivesse morrido.
Ri
por dentro, mas fiquei caladinha, hoje eu não contrariava este homem de maneira
alguma. De que falávamos mesmo senhor
Garcia no nosso último encontro.
-
Não te recordas, andavas tão interessada no assunto.
Sorri,
o homem era um jogador e deixei que ele pensasse que estava vencendo aquela
partida.
-
Sei lá Senhor Garcia, quando o senhor está por perto a variedade de assuntos é
muito grande, o Senhor pode falar-me de tantas coisas relacionadas com a Salvador,
com a governança, com a Igreja, usos e costumes da época, que não posso me
fixar em um só assunto.
- É, conheço mesmo muita coisa desta terra
- É, conheço mesmo muita coisa desta terra
-Pois
então, qualquer coisa que o senhor me fale é de uma importância extrema, assim,
como não me lembro do que falávamos mesmo, o senhor pode falar o que quiser, eu
fico aqui sentadinha à sua disposição e toda ouvidos.
-
Quantos anos tens?
A
pergunta me pegou desprevenida e falei: 65
O
senhor Garcia deu uma bela risada. Estás de borla comigo? Tu es muito jovem para
ter esta idade. Não tens nem mesmo 30.
Fiquei
a olhar o homem meio incrédula. E comecei a perguntar-me: - Como será que ele
me vê? Será que ele me vê mesmo assim tão nova?
Senhor Garcia, qual a cor da roupa que estou a vestir?
-
Que pergunta é esta? Não sabes a roupa que vestes?
-
Anda lá Senhor Garcia, diga-me qual a cor da minha roupa, quero apenas tirar
uma dúvida.
-
Estás com alguma problema na vista? Então não reconheces mais as cores,: Estas
com um vestido de cor azul, aliás, um
vestido que deixa-te muito atraente, e nem sei como aquele homem que dizes que
é o teu esposo deixa vestir-te assim.
-
Ora senhor Garcia, as vezes ele nem nota
o que que visto e dizendo isto encaminhei-me para o espelho que ficava na sala
e vi que estava de shorts e uma camiseta. Kkkkkk, ri mais ainda. e descobri que
o Garcia D’ Ávila me via da maneira que ele queria me ver, com a roupa que ele
queria e com as maneiras que ele queria, isto me deixou intrigada e fascinada
ao mesmo tempo, tanto que falei para mim
mesmo: vou estudar o espiritismo para ver se descubro algo que possa me
explicar isto.
Por
que está a rir? Falei alguma bobagem?
-
Claro que não, o senhor não fala bobagens Sr Garcia, o senhor é um homem sério,
responsável, cheio de atividades e não teria como falar bobagens, mas o senhor
ainda não me disse do que falávamos no nosso último encontro.
Claro
que eu sabia que falávamos de Caramuru, mas eu queria mesmo era mexer com os
brios do Senhor da Torre, e fiquei dando-lhe muita corda, mas eu tinha de dar
um jeito de entrar no assunto que me interessava.
-
Senhor Garcia, o Senhor sabe que estive em Viana do Castelo?
-
Estivestes onde?
-
Em Viana do Castelo Senhor Garcia, lá no Norte de Portugal. E sabe o que
descobri lá?
-O
que descobristes lá?
Uma
estátua do Diogo Alvares Correia e de sua Mulher: a Catarina Paraguaçu.
-
Estás a brincar comigo? O que pensas e onde estás que inventas uma asneira
desta. Então o Caramuru iria ter uma estatua em Viana do Castelo?
-
Sr da Torre, eu não costumo brincar, quanto pior com o senhor. Estou a falar
sério, se quiseres posso vos mostrar uma gravura desta estátua.
-De
onde tiraste isto?
-
Ora senhor Garcia eu não estou a dizer que fui a Viana, eu vi a estátua, e se
não tivesse ido poderia saber de tudo na minha madeira preta, como o senhor
chama o meu computador.
-Es
mesmo uma bruxa, não sei porque ainda procuro-te para conversar, o que devia
fazer mesmo era entregar-te ao Visitador.
-Tenho
certeza que nunca faria isto comigo. E fui pegar o computador: Será que ele vai
conseguir ver a fotografia da estátua? Será que ele consegue ver isto? Muita
modernidade para um homem do século XVI.
-
Não, não quero ver nada, agora se esta estátua existe mesmo, existe a troco de
que?
Senti
logo a facada, o homem desdenhava da história, porque era por demais
convencido. Imagine o Caramuru,
aquele homem que vivia entre indígenas,
casou-se com uma delas, teve vários filhos, tinha costumes indígenas, ia lá ter
uma estátua em Viana: e ele não tinha nada, nenhuma homenagem, ele o rei do
gado da época colonial, o desbravador de sertão, o homem dos currais, um homem
bom da cidade: Hum, isto era mesmo demais para ele aguentar.
-
Senhor Garcia, Caramuru, tal qual o senhor, foi um personagem muito importante
na nossa história. Poderíamos dizer que
Caramuru foi responsável pelo surgimento de uma “raça” brasileira, um povoador.
Aliás o senhor bem sabe como ele ajudou o Tomé de Souza e tantos outros que
aqui estiveram antes dele.
- Um português que se esqueceu dos seus
costumes e virou um indígena, foi isso que ele foi.
-É
Senhor Garcia, mas foi este português que recebeu uma carta do Rei Dom João
III, carta do qual o senhor deveria ter conhecimento, porque nesta missiva o
Rei apresentava Tome de Sousa ao Diogo Alvares e solicitava a sua ajuda em tudo
o que fosse necessário.
O
Senhor Garcia me olhou com muita raiva, e eu quis sacanear um pouquinho.
-
O Senhor alguma vez recebeu uma carta diretamente do Rei?
Fuzilando-me
ele respondeu que ele recebia ordens diretamente de Thomé de Sousa, não
necessitando falar com o Rei, até porque o Thomé de Souza e os demais
governadores em os representantes do Rei na colônia. Por outro lado, a esta
altura, ele um homem poderoso, não recebia ordens de absolutamente ninguém,
-
Sim senhor Garcia, mas a importância de Caramuru é mesmo enorme para a nossa
história e o senhor não deveria desdenhar disto, afinal a sua filha casou-se
com um neto dele, e o sangue dele corre
nas veias do seu neto. As filhas dele casaram com pessoas importantes a exemplo
do Dias Adorno
-
Não me lembro de ter visto esta carta e nem a sua entrega por Thomé de Sousa.
Ah
Senhor Garcia, preste atenção ao que El Rey escreveu:
Diogo
Alvares
Eu, El Rey vos envio muito saudar.
Eu ora mando Thomè de Souza, fidalgo da minha casa a essa Bahia de Todos os
Santos por capitão governador d’ella, e para na dita capitania e mais outras d’esse
Estado do Brasil prover de justiça d’ella, e do mais que ao meu serviço cumprir
e mando, que na dita Bahia faça uma povoação, e assente grande e outras coisas
de meu serviço. E porque sou informado pela muita prática e experiência, que
tendes d’essas terras , e da gente. E costumes d’ellas, e sabereis bem
ajudar e conciliar, vos mando, que o
dito Thomé de Souza lá chegar, e sabereis bem ajudar e conciliar, vos mando que
o dito Thomé de Souza lá chegar, vos vades para elle, e o ajudeis no que lhe
deveis cumprir, e vos elle encarregar, porque fareis nisso muito serviço: e
porque o cumprimento, e tempo de sua chegada a ela abastada de mantimentos da
terra para provimento da gente, que com ele vai, escrevo sobre isso a Paulo
Dias, vosso genro, procure por se haverem, e os vá buscar pelos portos d’essa
capitania de Jorge Figueredo. Sendo necessária vossa companhia e ajuda,
encomendo-vos que o ajudeis no que virdes que cumpre, que o fareis. Bartolomeu
Fernandes a fez em Lisboa a 19 de novembro de 1548 – Rei
Subescrito – por El Rey a Diogo
Álvares, cavaleiro da minha casa na Bahia de Todos os Santos.[1]
- Nunca
ouvi falar dessa carta, e não lembro de ter visto o Thomé de Souza entregar
qualquer documento ao Caramuru.
-Sem dúvida Senhor Garcia, o
senhor não viu esta entrega porque a carta não foi trazida por Thomé de Sousa,
ela chegou antes dele, trazida por um cavaleiro do Rei – Gramatão Telles, que
aqui chegou em 1548, portanto, antes do
senhor e do Thomé de Souza, a carta era uma espécie de apresentação do Thomé de
Sousa e a solicitação para que o Caramuru ajudasse em tudo o que necessário.
Senti que o senhor da Torre estava
ficando muito aborrecido, ele não conseguia esconder a inveja, e eu resolvi
parar por ali, pois ainda tinha muita coisa par falar sobre o Caramuru, e sei
que ele não ia gostar nem um pouquinho.
Não precisei de fazer nada, para
mudar o assunto e nem desagrada-lo, pois de repente ele desapareceu da minha
frente, sem sequer dizer até logo. Como sempre, fiquei com a cara de boba e a
espera que ele, no dia que quiser, retorne. Não tem jeito, o homem é
voluntarioso e temos de ficar à sua disposição.
Me lembro, entretanto, de uma
noticia que li em um jornal de Viana do Castelo, numa grande coincidência. Lá,
neste momento, existe uma polemica a respeito da estátua de Caramuru e da sua
índia Paraguacu, pois ela vai ser retirada do local onde se encontra há longos
anos, para um outro local que está sendo construído para esta finalidade.
Gostei desta coincidência!
[1]
JABOATÃO, Frei Antonio de S. Maria. Catalago Genealogico das Principais
famílias que procederam de Albuquerques e Cavalcantis em Pernambuco e Caramurus
na Bahia. In Revista Trimensal do Instituto Historico e Geographico Brasileiro,
Tomo LII, Parte I, pp7,8. Rio de Janeiro. Typographia, Lithographia e
Encadernação a Vapor de Lacmmart, de C,
1889. A revista pode ser acessada em .https://upload.wikmidia.org/wikpedia/Commons/5/5b/IGHB_revista_1889..
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