quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Garcia D´Ávila XVII -Diogo Alvares Correa - Caramuru



Estava na lancha do amigo Juarez e, na volta do passeio pela Baía de Todos os Santos, para mim a mais linda de todas, pois é nela que posso passear de lancha e ver lugares maravilhosos em companhias agradáveis, paramos para um estimulante banho no Porto da Barra. ´É fantástico ver aquele pedacinho lindo de Salvador do mar.   Lindo de viver! Pena que nem todos possam admirar e ter esta sensação que tenho agora.  Fico olhando aquela beleza toda e penso nos portugueses. Porra! Num momento deste por que tenho de pensar nos portugueses? O racional responde imediatamente: Porque eles é que descobriram, povoaram e viveram neste espaço por muito tempo.
É tem lógica o meu pensamento, tenho de lembrar deles mesmo e da sorte que eles tiveram de encontrar um lugar tão maravilhoso como este. Deixo-me levar pelos pensamentos e lembro de quando pequena na escola primária ouvia falar de Caramuru. Sim, Caramuru – Diogo Alvares Correa, o naufrago que conseguiu dominar os indígenas com o fogo. Será isso mesmo, pergunto-me?  Já nem lembro direito, mas seis que ele fez fogo e os índios acharam que ele era um feiticeiro.
Fico tentando me lembrar qual foi mesmo a história que me contaram no primário, e, de repente: O Senhor da Torre! Sim, ele, ele poderá me contar muito sobre o Caramuru, afinal ele conviveu com ele e sua filha desposou um de seus netos, portanto eles eram quase parentes, faiam parte de uma família.
Disse para mim mesmo: Amanhã vou chamar o Sr. Garcia, e se ele não aparecer, eu vou no Castelo da Torre para ver se encontro com ele. Sei que ele é de veneta, só aparece quando quer, mas estou muito curiosa, e então vou insistir.
Nem bem tinha acabado de pensar nisto quando vejo o Sr Garcia refestelado no banco da lancha, quase sentado no colo de Carlos: tomei um susto da zorra, embora soubesse que só eu poderia vê-lo, todavia, o senhor Garcia me deixava para lá de inquieta, e naquele espaço, mais ainda.
Ele, de onde estava, quase à minha frente me olhava de uma maneira bem estranha certamente porque eu estava de biquíni e com uma saída de praia completamente transparente que deixava ver as minhas formas, embora não esplendorosas, mas ainda com formas.
-Não tens vergonha de andar nua assim?
Como responder ao senhor Garcia, as pessoas ali iam achar que eu estava maluca. O certo era fingir que não o estava vendo, muito menos o excitando.
-Não estas a ouvir-me? Já gritou o senhor Garcia, visivelmente aborrecido. Fiquei olhando fixamente para o lugar onde ele estava; Fiquei tão séria, que Carlos achou que eu estava olhando para ele e também perguntou? -O que é? Por que está olhando fixamente assim para mim?
Puta merda! Que situação. Se eu respondesse a Carlos, certamente o senhor Garcia ia achar que eu estava respondendo a ele, se eu respondesse ao senhor Garcia, Carlos ia achar que a resposta era para ele, que dilema miserável. Resolvi não responder a ninguém.
O Senhor Garcia levantou-se e veio sentar junto de mim. Agora é que a porra vai pegar, pensei eu, ele vai querer me sacanear e eu vou ter de ficar aqui quietinha, sem qualquer reação.
-Vocês sabiam que isto aqui chamava-se Vila do Pereira?
-Todos olharam para mim. Pois é, aqui, viveu Caramuru com as suas mulheres indígenas.
-Vila do Pereira! alguém perguntou. Não seria Vila Velha?
- Sim, mas antes era a Vila do Pereira, e assim era chamada porque o primeiro donatário da capitania  Francisco Pereira Coutinho criou a Vila que tomou o seu nome- Vila do Pereira, bem aqui na ladeira da Barra.
O senhor Garcia olhava-me atento, parecia querer dizer-me alguma coisa, mas ficava só a me olhar. Talvez porque não visse as outras pessoas, ou talvez porque estivesse mais interessado pelo que estava vendo por baixo da minha saída de praia, sei lá, mas ele estava quieto, mas isto durou muito pouco, porque de repente ele levanta-se fica bem em frente a mim e diz:
Não sabes de nada sobre o Diogo. Sabes como ele chegou aqui?
- Dei risada e disse, certamente chegou em uma nau: não tenho a menor dúvida. O  Senhor Garcia não gostou muito da brincadeira e chegando perto de mim sussurrou:
-Se vais brincar e procurar graça vou embora e não digo-te mais nada.
 Eu, sinceramente, estava curiosíssima, mas naquele momento preferia que ele fosse embora mesmo. Mas não podia perder aquela oportunidade e aí fiquei séria e quieta, procurando ser o mais natural possível para os demais que estavam na lancha.
- [...] foi este Diogo Álvares Correa, natural de Vianna pessoa nobre, e de linhagem conhecida na Provincia de Entre Douro, e Minho. Era moço, e o desejo que levava a outros muitos sujeitos da sua qualidade naquele tempo a sahir de suas pátrias, e buscar nas novas Capitanias do Reyno alguma aventura, o arrastando para a Índia em companhia de um tio seu, que em certa Náo fazia para la a sua derrota. Outros dizem , que esta viagem era para a Capitania de S.Vicente no mesmo Brasil [...].[...] mas ou fosse para esta ou aquella, a sua Náo se veyo meter na grande boca da Enseada da Bahia, afastada de ventos contrários, onde sobrevindo-lhe outra tempestade, deo com ella, quebrados os mastros e perdido o rumo nos baixos, que ficão a Leste da sua barra, a que  o  Gentio chamava Mairaguiguig; em fronte donde se mete no mar o Rio Vermelho, humma lagoa distante da ponta que dizer do Padrão[1] . Aqui tiveram todos com a perda da Náo, lastimoso naufrágio, do qual os que se livrarão com vida não escaparão de serem presos do bárbaro Gentio Tupynambá, que habitava aquela Costa, e ali acudiu fazendo pilhagem, não só no que a despedaçada Náo lançava às prayas muito melhor dos miseráveis naufragados, que recolhidos ás suas estocadas, lhes foram servindo de gostoso manjar por repetido dias[...][2]
Impaciente perguntei: Sr Garcia, onde o Caramuru entra nesta história.
O Senhor da Torre me deu uma olhada que me fez gelar! O homem tinha mesmo o poder de me deixar trêmula. O pior é que eu tinha de falar com ele sem que ninguém percebesse, pois ninguém acreditaria que estava falando com um morto ali na lancha, o fato é que todos estavam estranhando o meu comportamento. Carlos chegou a me perguntar:  O que foi que você disse, não entendi.
- Quem é este que ousa interromper-me e desviar a tua atenção de mim?
- Meu marido senhor Garcia! meu marido.
-Como é? ´
É isto mesmo Sr Garcia, o Senhor sempre disse que não acreditava que fosse casada, mas, efetivamente sou, e é este o meu esposo.
Tive a impressão que ele ia desaparecer depois da cara que fez, mas ao contrário, ficou ali a me olhar de uma maneira muito especial e a se chegar mais e mais a mim. A impressão que tive é que ele ia atravessar o meu corpo, passar por dentro de mim, tal a proximidade que ele impôs. 
--Se quiser continuo a história.
A voz do Senhor Garcia soou diferente, parecia querer seduzir-me, estava macia, sem qualquer conotação de agressividade. Uma luz se acendeu e eu entendi a jogada daquele malandro: Se ele continuasse a falar sobre Caramuru eu iria dar atenção total a ele e Carlos ia ficar lá entretido com os amigos e me deixaria quieta, e efetivamente foi o que ocorreu. Vi o riso cínico do Senhor Garcia ao recomeçar a narrativa.
- [...] Menos Diogo Alvares Correa, que com a sua sorte, ou a sua viveza, ou tudo junto, com superior destino, lhe administrou para uso meyos oportunos. Era moço, esperto, ágil e de entendimento claro, e vendo aquella gente muy ocupada na colleta dos vários despojos da perdida Náo, introduzido com elles os ajudava a comboyar para onde via eles as hião acomodando e assim começou a fortuna a traçar a sorte de Diogo Alvares[...] (JABOATAM: 1858; 37)
- Sim senhor Garcia, mas onde está o momento em que os indígenas começaram a respeitar o Diogo e o alcunharam de Caramuru?
-Estás muito apressada: calma, chegaremos lá. Eu não estou com nenhuma pressa de sair daqui, e tenho muita coisa a dizer-te sobre o Caramuru.
Esta última frase me deixou apreensiva e só confirmou o pensamento que tive antes: o Sr. Garcia estava jogando e sabia que sairia vencedor, porquanto tinha certeza que a minha curiosidade histórica era maior que qualquer coisa.
- Bom, dentre as coisas que foram resgatadas do naufrágio, estavam armas e pólvora e o Diogo [...] já mais alentado do primeiro susto, teve advertência para recolher entre os despojos algumas armas de fogo, barriz de pólvora e cunhetes de balas, tudo prevençoens já de sua astúcia e já de humm presagioso e  vindouro futuro. Havendo já recolhido o Gentio ás suas Estâncias, tudo o que do naufrágio entendeo lhes poder servir, e eles também  mais  sossegados nas suas cabanas, tratou Diogo Alvares de preparar algumas daquelas armas, carrega humma, faz tiro com ella e acerta presa(seria uma ave ), dá com ella em terra, que meninos e mulheres se punhão a fugir, e os  mayores em espanto e admiração de verem e ouvirem humma tal coisa, e especialmente  o damno, o estrago que causarão as balas sem serem vistas. (JABOATAM; 1858:37).
A história era bem interessante mesmo, eu estava ansiosa para chegar  ao CARAMURU, mas o senhor Garcia parecia mesmo não ter nenhuma pressa, ficava contando  detalhes do naufrágio, dos indígenas, das pedras do Rio Vermelho, coisas que naquela momento não me interessavam muito, o que eu queria mesmo saber como foi que os indígenas, depois desta história começaram a chamar o Diogo de Caramuru.
O diabo do homem estava me sacaneando, fazendo suspense. Olhava para Carlos cinicamente, postava-se a minha frente galantemente, parecia querer que eu fizesse alguma comparação entre ele e Carlos; como se isto fosse possível. Ele todo cheio de roupas esquisitas, estatura não muito alta, bigode grosso, barba. Carlos de sunga, nu da cintura para cima. Kkkkkkk ri interiormente, pois até isto me fazia temer a reação do velho senhor da Torre.
Neste exato momento deu-se um movimento brusco na lancha causado por uma marola feita por outra lancha que passava muito próximo e  velozmente, todos se desequilibraram inclusive o Senhor Garcia que, desequilibrado, teve o seu corpo projetado pra fora da lancha; cheguei a dar um grito, que ninguém entendeu, e, embora soubesse que nada aconteceria ao Sr. da Torre, fiquei olhando ele nadar até  a praia, de onde gesticulava,  possivelmente dizendo impropérios, tenho certeza.  Uma pena, embora providencial, o que aconteceu. O que resta é esperar que o homem esqueça o que aconteceu e retorne para acabar de me contar a história de Diogo Alvares  Correa, como ele se tornou  o CARAMURU,  e toda a sua importância para o  Brasil e para o povo brasileiro.







[1] Ponta do Padrão onde localiza-se o Farol da Barra
[2]  JABOATAM, Frei Antonio de Santa Maria, Novo Orbe Serafico brasílico ou Crhonica dos Frades Menores da Provincia da Bahia, Lisboa 1761, Reimpresso por Ordem do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro, Rio de Janeiro, Typographia Maximiliano Gomes Ribeiro 1858. O português é original. Segundo o que consta da introdução, o Frei Jaboatam escreveu sobre Caramuru, com base em manuscrito que encontrou no Convento de São Francisco.

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