sábado, 20 de janeiro de 2018

Garcia D´Ávila VII - Falando de Mem de Sá

O Sr. da Torre demorou a voltar a parecer, quando, após uns quatro meses de ausência, adentrou ao meu quarto, como sempre, quase caio, porque a presença dele me assustava mesmo, depois de quase dois anos de aparições eu ainda não estava acostumada com aquele senhor prepotente, audacioso, safado que sempre aparecia em horas pouco convenientes.  Neste dia ele me pegou quase nua, estava de calcinha mudando a roupa e o miserável aparece e fica em frente a mim a me olhar com uma cara voraz. Nem mesmo sabendo que ele não era matéria, ficava completamente atordoada. Pensei comigo, hoje vou atordoá-lo um pouco.
-Bons dias Sr. D`Ávila. Que ventos o trazem aqui.
- Podes não crer, mas sinto saudades tuas, das tuas conversas, da tua maneira de falar sobre mim. Tenho ganas de levar-te para Tatuapara e não deixar mais que te afastes de mim!
Caraças, pensei eu. Filho da mãe, eu que pensava em atordoa-lo, é que fiquei atordoada. Será que o Sr. Garcia estava se apaixonando por mim! Que lástima Meu Deus, agora eu era apenas uma obsessão de um espírito! Que final de vida amorosa para uma pessoa de 60 e poucos anos. KKKKK: É, só rindo.
Para quebrar esta leva de pensamentos horríveis e tenebrosos perguntei ao Sr. Garcia:  então, estavas com alguma rapariga? Vais casar outra vez?
-Casar! Eu, és parva: nesta idade vou lá mais me casar com ninguém, além do mais tenho tantas mulheres quanto quiser, as minhas índias sempre gostaram, e gostam.   de fornicar comigo, não preciso de uma mulher, mulher só serve para dividir nosso patrimônio, atordoar nossas cabeças e dar dinheiro aos padres: não te lembras o que a Mecia fez? Até hoje tento reverter esta situação.
- Ah senhor Garcia se o Sr. conhecer a Dona Maria Augusta Sobral, o senhor muda de opinião.
-E quem é esta tal de Dona Maria Augusta Sobral?
- Ela chegou recentemente da metrópole, é de Évora, Alentejo, agora está viúva e tem muito dinheiro, fala alemão, francês, é muito prendada, é uma verdadeira dama.
-E que diabos vem uma mulher desta fazer neste inferno?
-Ficou viúva, tem muito dinheiro e quer fazer um engenho.
-E onde está esta mulher agora? Não que tenha interesse, mas sempre é bom conhecer um rabo de saia novo.
- Neste momento eu não sei, mas penso que ela é hóspede do Governador
-Desgraçado, não me disse nada e estive com ele ontem. Mas diga-me lá, como se mantem tão bem informada das coisas que se passam na Baía?
-Já vos falei, eu leio muito e tenho acesso à documentação do tempo que o Senhor era o Grande Senhor da Torre de Tatuapara, vereador da Câmara, o homem rico e influente nos destinos desta terra.
- Tu sabes bem levantar a moral de um homem.
- Deixe de modéstia Sr. Garcia, o Sr. era um retado mesmo
-Era o que?
Ri, só me apercebi do palavreado que usara com a interrogação dele.
-Poderoso Sr. Garcia, muito poderoso, destemido, aventureiro, ganancioso, determinado.
O homem estava com cara de pavão, ele gostava mesmo destes elogios: quanto pior, eu estava falando a verdade, era mesmo tudo isto, cheio de defeitos, pois era mais de que prepotente, tratava mal seus indígenas escravos, trabalhava sempre em seu favor e dos “homens bons” e ricos da terra, sem se preocupar minimamente com os seus indígenas, com a exploração deles, com a invasão das suas terras, com a dizimação de aldeias inteiras.
Sr. Garcia, como era o seu relacionamento com Mem de Sá, olhe que passou bem tempo por estas bandas.
-Sim, sim, ele faleceu aqui e foi enterrado na Igreja dos Jesuítas.
-Na Catedral?
-Não, na Igreja dos Jesuítas, na Igreja do Colégio
Bom, eu sabia que era na Catedral, mas para que discutir:  a Igreja era a mesma mesmo, se não a mesma, fora ali a dos jesuítas.
-Sim, senhor Garcia como era o Mem de Sá?
- Um homem enérgico, já chegou aqui com todo folego, veio para o lugar de Duarte da Costa, encontrou os índios num tremendo levante, além dos franceses no Rio de Janeiro. Ele aqui chegou em 1557 e foi um grande administrador, “ele era um letrado que, dentro da hierarquia do serviço real, conseguira atingir um cargo na Casa de Suplicação e recebera o título honorifico de Conselheiro do Rei”( SCHWARTZ,1979:29) Isto significa que ele chegou aqui todo poderoso e realmente não fez por menos, comunicou de logo ao rei que a “terra estava cheia de exilados e malfeitores, muitos dos quais mereciam a pena de morte, por terem como única ocupação tramar coisas más”[..] [...]Quando  não estava ocupado com assuntos militares o governador geral devotava muito tempo e energia à supressão do vício, da usura, do descaso para com o dever e da má administração.(SCHWARTZ,1979:30).[1]
- É parece que o Mem de Sá era mesmo um homem muito preparado e governou bem o Brasil.
- É, mesmo tendo trazido para cá o mamposteiro.
-Mamposteiro? O que é isto?
- Um funcionário civil designado para cada capitania a fim de proteger e resguardar a liberdade dos índios,[2] isto desagradou muitos, mui principalmente a mim.
- Mas. soube, pelo Gabriel Soares de Sousa, que ele e o seu comandante Vasco Rodrigues de Caldas acabaram com os índios, queimando umas trinta aldeias.[3]
- Por quem soubeste disto?
-Por Gabriel Sr. Garcia, ele escreveu um tratado sobre o Brasil, aliás já lhe falei dele, porque o senhor é bem citado no livro, isto ele fez em 1587.
-É o Mem de Sá foi bem duro com os índios, afinal ele tinha de demonstrar força para amedrontar os indígenas, que são impossíveis mesmo.
 -Todavia parece que ele era muito respeitado pelos jesuítas. O Sr sabe que José de Anchieta fez um poema para êle?
-Não, não sabia, esses jesuítas adoram babar o ovo das autoridades e dos ricos, afinal vivem da caridade deles.
Sinto uma ponta de inveja e sarcasmo nas palavras do Sr da Torre, mas fui em frente e li alguns trechos do poema para êle,  que ficou bem incomodado:

 “Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te contemplou! quanto bem trarás a seus povos
abandonados! com que terror fugirá a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!

 “Assim se expulsou a paixão de comer carne humana,
a sede de sangue abandonou as fauces sedentas;
e a raiz primeira e causa de todos os males,
a obsessão de matar inimigos e tomar-lhes os nomes,
para glória e triunfo do vencedor, foi desterrada.
Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crime
afastam as mãos os que há pouco no sangue inimigo
tripudiavam, esmagando nos dentes membros humanos.
Há pouco a febre do impuro lhes devora as entranhas:
imersos no lodaçal, aí rebolavam o fétido corpo,
preso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.
Agora escolhem uma, companheira fiel e eterna,
vinculada pelo laço do matrimônio sagrado
que lhe guarda sem mancha o pudor prometido.”

“Como quando as baleias sobem do fundo do abismo
e se acolhem às enseadas do litoral brasileiro
na quadra em que se entregam ao serviço da espécie:
então travam combates ferozes ao soçobro das ondas
e lançam até as nuvens jatos de água espumante:
Atônitos na praia os homens assistem à luta gigante
dos monstros descomunais entre as vagas encapeladas.
Elas desfecham golpes tremendos e horrendas feridas
com as caudas e dentes agudos, até que as ondas vomitem
os cadáveres monstruosos às areias da praia.
Assim nossos índios, em pleno mar, a braços com as ondas
vibram golpes terríveis: a uns despedaçam, a outros
já semimortos puxam-nos, enlaçando-lhes os longos cabelos
com a mão esquerda, enquanto com a direita cortam as vagas
e vitoriosos arrastam até as praias a presa,
indo depor aos pés do Chefe os corpos de seus inimigos,
e despedaçando aos semivivos os crânios com os rijos tacapes.”

 “O Governador ouviu com bondade essas palavras
e respondeu: “Se vos fiz guerra cruel de extermínio,
devastando os campos e lançando em vossas moradas
o incêndio voraz, levou-me a isso vossa audácia somente.
Já agora, esquecidos os ódios, vos concedemos contentes
a aliança e a paz que quereis e sentimos vossa desgraça.
Porém, deveis vós observar as leis que vos dito.”
Manda então que refreiem suas rixas contínuas
que expulsem do peito a crueldade e o hábito horrendo
de saciarem o ventre, à maneira de feras raivosas,
com carnes humanas. Também lhes ordena que guardem
os mandamentos do Pai celeste e a lei natural
e ergam igrejas ao eterno Senhor das alturas
em seu torrão natal; aí serão instruídos
na lei divina e de vontade abraçarão com os filhos
a fé de Cristo, porta única do caminho do céu,
Além disso, tudo quanto roubaram dos Cristãos às ocultas
ou por assalto, em tantos anos, os próprios escravos
mortos ou devorados, tudo pagarão e mais os tributos.”[4]

Bom, como o Sr Garcia não gostava muito de ouvir elogios feitos para outra pessoa, levantou-se e foi-se, nem mesmo deu até logo.

Eu voltei ao que estava fazendo, me perguntando: Por que eu? Por que não escolheram outra pessoa para conversar com este sujeito? Ele é muito temperamental, e eu fico apreensiva por todos os motivos.





[1] SCHWARTZ. Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial – A Suprema Corte da Bahia e seus Juízes – 1609-1751, SP, Perspectiva, 1979
[2] Idem,pg 30
[3] SOUSA, Gabriel Soares de Tratado Descriptivo do Brasil.pg 132, 1587

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